segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Adalbrecht, ato I - Uma noite qualquer na eternidade do mar de trevas.

Acho que sempre pertenci ao clã.
Minha lembrança mais importante data de meus seis anos de idade. Eu já era velho o suficiente para entender o que eu viria a me tornar. Independente de minha vontade, independente de quaisquer fatores. Eu não conhecia esperança e já há muito tempo havia deixado de sonhar com uma vida normal.
Todas as noites eram noites de lágrimas, cada minuto era um minuto de dor.
O mestre havia me convocado para o sepulcro. Era hora de mais uma lição. Enquanto eu descia pela escada parcialmente iluminada senti o aroma torpe de morte e sangue envolvendo minha carcaça de carne.
Eu já não sofria mais com a morte de estranhos, ou com a dor dos fracos. Os caminhos do abismo me mostravam que a dor e o fracasso eram o destino deles, independente de minha vontade. Eu era um aprendiz dedicado e um executor cruel. Não que eu tivesse muita escolha.
Quando alcancei o salão principal da cripta, levei um longo minuto para que meus olhos se acostumassem com a escuridão. Eu conseguia imaginar as formas das paredes e dos túmulos que decoravam essa sala de perjúrio e danação. Em cada um dos cantos, uma estátua de um dos mestres, e no centro, além dos dois túmulos, o fosso que era, e ainda viria a ser por muito tempo, a origem de meus pesadelos.
Era curioso pensar que em um dos túmulos estava a única criatura que fez com que o mestre sorrisse. Um dia ela traiu o abismo e tentou usurpar o poder dele, e agora ela descansará eternamente com uma estaca no peito.
Ela é minha avó. O mestre um dia foi meu bisavô. Ele deixou de ser qualquer coisa reconhecível quando prometeu sua alma ao abismo.
Após um passo lento e calculado, me ajoelhei no chão úmido e sujo e esperei pela ordem do mestre.
Ele desceu do teto em sua forma magistral de sombra. Deslizando por meu corpo com a graciosidade de suas duas dimensões.
Deus, como era frio.
Após uma análise cuidadosa de minha condição física, ele retornou a sua forma de carne.
Deus, como era lindo.

Concedi a mim mesmo a luxuria de contemplá-lo. Seu corpo nu era como uma escultura de mármore criada pelo mais cruel dos artistas. Cada uma das grossas veias saltadas parecia mal suportar o sangue escuro e viscoso que ele carregava, dando-lhe um aspecto dantesco e ao mesmo tempo angelical. Suas coxas roliças e poderosas despertavam em mim um desejo insano e pecaminoso que eu mal começava a compreender.
Ele avançou subitamente, levantando meu queixo com o polegar e levando meu rosto de encontro ao dele.
Era difícil definir o que eu sentia quando o fitava. Seus cabelos dourados caiam sobre o ombro com a doçura de uma nuvem de algodão doce. Os lábios largos e arqueados possuíam um leve tom púrpura que sugeria doença e líbido. E seus olhos. De todas as atrocidades obscenas que já presenciei, seus olhos eram o que me machucava mais.

As duas orbitas negras declaravam a quem quisesse ouvir que meu mestre era um acólito do abismo. A escuridão viva que residia em sua face nada mais era do que um reflexo do mundo que ele contatava com sua devoção insana e sua magica maligna. Afinal, era o abismo, o nada imortal que a tudo irá consumir.

Os olhos azeviche faiscaram em um púrpura febril quando ele violou minha vontade e ordenou que eu descesse ao fundo do fosso. Só fiquei com medo por um segundo. Depois dele minha vontade ruiu e a escuridão tomou minha mente.
E nunca- nunca mais -, a escuridão a abandonou.

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