quinta-feira, 27 de junho de 2019

O guardião de meu irmão

Alvo contemplou o semblante soturno de seu senhor com um misto de desprezo e respeito. Ambos estavam nus no escuro, como era seu costume, saboreando o silêncio da morte e o cheiro adocicado do vitae do Cainita abatido no último ataque.

Rastrear um Nosferatu no Rio de Janeiro era uma tarefa bastante árdua mas não impossível para mortos de sangue refinado. Belisário, um ancião do clã e casa das sombras, fez do jovem a seus pés um exemplo do que há de cair sobre aqueles que se põe entre um guardião e sua presa.

“Observe” disse Bel. “A carne é escura, mas não completamente decomposta. Ele não deve ter mais de uns poucos anos de morte”.

Alvo segurou os dedos retorcidos do Nosferatu. As unhas sujas e amareladas não lhe foram de grande utilidade quando a noite se levantou e devorou suas pernas. Havia uma morbidez estranha e distante no tom de Belisário. Eles já haviam passado muitas noites em caçada - era seu trabalho, no fim das contas, mas a sobriedade da lição carregava um peso que para Alvo era novidade.

Belisário continuou “As coisas que você ouviu sobre a diretoria são verdade. Após a morte da Regente...É hora de sermos mais cuidadosos com nossos planos”.

Alvo se recordava. Muitos de seus contatos estavam silenciosos. Uns outros tantos haviam sido destruídos. Haviam boatos sobre vários Lasombra se unindo a Camarilla, o que soava como algo bastante estúpido.

“Eu recebi uma carta de nossos amigos” Bel continuou, referindo-se aos amigos da noite, o corpo governante do clã. “Para cada um de nós que se unir a Camarilla, um ancião do clã deve ser sacrificado.”

Então era verdade. Alvo sentiu um leve tremor em suas entranhas. Um formigamento de antecipação que em uma noite normal lhe causaria repulsa. Ele arrancou um dos dedos ossudos do Nosferatu e o esmagou no punho. Por um instante, pensou em gritar, rugir, deixar com que a besta o levasse para longe deste momento. O Ducti levantou os olhos e contemplou a noite sem estrelas antes de perguntar “Porquê?”

Belisario moveu-se lentamente para trás de Alvo e segurou seus ombros gentilmente. A carne era fria e incolor. “Cardeal Polônia levou a maior parte de nossas forças para o oriente. A guerra vai continuar a ser travada por lá até o sol apagar e a noite consumir tudo que existe”. Não havia teatralidade em sua voz. Era um lamento e uma maldição.

O ancião continuou “o sabá como você conhece existe por que os Lasombra inventaram a revolução. Quando eu tinha sua idade eu e meus irmãos matamos nossos senhores e nos libertamos de sua complacência e tirania. Nos banhamos em sangue antigo e por isso sobrevivemos as chamas da primeira inquisição. A guerra contra nossos avós é o motivo pelo qual existimos. Agora, a guerra tem um novo patamar. Eu sou o ancião que deve ser destruído para que nosso clã sobreviva.”

Muito do treinamento de Alvo fez sentido naquele momento. Quando ele foi arrancado de sua vida, de sua esposa, de seus filhos. Quando Belisário o feriu e o humilhou. Cada castigo e sermão foi parte de uma conspiração. O ódio aos senhores era a força motriz do clã - a cobiça, a inveja, a busca pela excelência onde quer que ela estivesse - eram ferramentas para preparar as crias da noite para o momento em que o sabá falhasse e uma nova geração de magistrados carregasse o cetro e manto de reis da noite.

Ainda era difícil de acreditar. Alvo passou umas tantas décadas levando fogo e treva para os elísios da Camarilla. Ele era o Ductus de um bando de guerra, um soldado sacramentado e abençoado pela taça da Vaulderie e pelos ritos de Caim. Ele pesou suas palavras demoradamente antes de continuar. “Eu não tenho nenhuma intenção de me unir a Camarilla, meu senhor.”

“Então eu falhei com você.“ Belisário deitou-se no chão e pequenas membranas de treva começaram a circulá-lo e a lamber sua carne. “Não vai ser simples, meu querido soldado. Você e seus irmãos vão tolerar toda sorte de humilhação e demérito pelas próximas décadas. É necessário. Quando sua base de poder for estabelecida, será hora de tomar o controle dos recursos da torre de marfim. Não estamos nos rendendo, não estamos abandonando nossa guerra - estamos usando das ferramentas que temos da melhor maneira que podemos. A inquisição é um inimigo mais poderoso do que a Camarilla jamais foi.”

Havia verdade nas palavras do velho Lasombra. Muitos refúgios comunais foram incinerados nos últimos meses e bandos inteiros foram aniquilados por meio de ataques surpresa ao meio dia. Alvo sentou-se sobre o que restava do Nosferatu abatido e pressionou sua mão esquerda contra a testa. “Quantos do clã vão se unir a torre?”

“Poucos, a princípio. O preço é alto e é necessário escolher os sacrifícios com cuidado. Os mais ambiciosos e competentes Ancillae serão os primeiros a serem chamados. A cidade do México irá cair, Montreal logo em sequência e por fim nossas bases aqui, na América do Sul. Sem o punho firme dos amigos da noite o sabá estará desorganizado demais para se defender. Os anciões que morrerem em nossa manobra vão deixar um vácuo de poder que vai canibalizar o que restar de nossa cruzada. Será nossa última e gloriosa guerra civil, e é uma pena que não estarei aqui para influenciá-la.”

“De fato, uma pena.” Respondeu Alvo. O vínculo com o senhor lhe martelava a alma neste momento. Ele queria matá-lo, não pelo clã, pelos amigos da noite ou pelo caralho que fosse - ele queria matá-lo porque este jogo estúpido era uma afronta e uma aberração a tudo aquilo que o sabá significava.

“Somos um clã de trevas profundas” Disse Belisário. “Espero que encontre descanso nisso, minha cria. Existem forças agindo na noite que fazem com que aqueles tão velhos quanto eu sejam uma ameaça maior ao sabá do que qualquer pequena ou grande traição que possamos maquinar”.

Alvo sentiu que havia terrível e monstruoso nas palavras de seu senhor. O ancião carregava um olhar vazio, distante, e sua voz estava muito mais adocicada e afável do que de costume. Belisário era um arcebispo. Uma criatura vil e repulsiva que em noites de ritae se banhava no sangue de dezenas e recitava as litanias de Caim com paixão e devoção insanas. Não cabia a alguém de tamanha potência de sangue se deixar levar por sentimentalismos e filosofias baratas.

“Mestre, peço que o senhor me conte o que lhe aflige. Minha paciência para esse jogo encontra-se em seu fim.”

Belisário suspirou e fechou os olhos. Quando os abriu, eles eram órbitas negras. Fumaça escura saiu de sua boca e narinas e um grunhido seco revelou suas presas afiadas e sedentas.

“Tudo que existe é nossa guerra, Alvo. Tudo que importa é que sejamos vitoriosos. E se eu lhe dissesse que estamos perdendo? Que desde sempre estávamos cientes de que não seríamos vitoriosos? Que as centenas que condenamos à morte e a morte final sofreram por que quisemos fazê-las sofrer, e não por um propósito maior? Eu menti para você conforme foi necessário durante o tempo que passamos juntos. Não vou mentir agora. A história que te ensinei, sobre como eu e meus irmãos matamos nosso pai - ela não é inteiramente autêntica."

A noite ficou ainda mais silenciosa. Alvo absorveu o peso das palavras, questionando se seu senhor estava a jogá-lo em mais um exercício cruel destinado a fortalecê-lo. Era pouco provável. A história da morte do antediluviano Lasombra era recitada a todos os membros do clã até que fosse amarrada a sua mente. O cerca ao castelo, a morte do opressor, a quebra de grilhões. Ela era contada na Palla Grande anualmente em meio a sacrifícios e fogueiras. A memória dos que pereceram na batalha era venerada e o clã se sentia mais forte sabendo que sua transgressão fratricida foi o que possibilitou que o sabá existisse.

“A cruzada no oriente médio” Continuou Belisário “ela confirmou o que muitos suspeitavam. Nossos bandos estão diablerizando anciões às dúzias em busca da morte de nossos ancestrais genocidas. E eles estão nos chamando. Estão chamando aqueles de sangue forte o suficiente para ouví-los. Não sabemos quais os desígnios do pai tenebroso, mas sabemos que é ele. Anciões de outros clãs também ouvem seus avós os convocando para protegê-los das Espadas de Caim. Se ele não morreu durante a revolta, é por que era impossível matá-lo. Eu não quero acreditar nisso, mas mesmo agora, ouço seu chamado. Prefiro que você me mate aqui e garanta com isso uma chance de reinar na Camarilla do que atender ao chamado do pai e lutar contra o Sabá. Não estou lhe oferecendo uma escolha, meu querido assassino. Eu vou morrer para que meu clã possa ter uma chance de lutar em uma noite vindoura.”

Alvo sentiu a besta gritando em seu peito. Ódio, puro e bruto, era algo que os Lasombra desprezavam. Controle e domínio sobre a besta eram preferíveis sempre. O Ductus levantou-se e caminhou em círculos em volta de seu senhor. A velocidade dos passos era infrequente e um turbilhão de pensamentos o impedia de tomar uma decisão. Ele se sentia fraco e enganado e sua fúria o fazia ganir e solfejar como um animal acuado. Ele era Lasombra. Era o guardião de seus irmãos. Era a espada de Caim na grande cruzada. Alvo espremeu os olhos com as pontas dos dedos, respirou profundamente e gritou antes de continuar a caminhar em volta de seu senhor.

“Se lhe serve de algum consolo, meu querido Alvo, de todas as minhas crias, você foi a única que eu sempre considerei digna de levar adiante minha linhagem. Não carrego de você mágoa nenhuma”.
A súplica de Belisário caiu sobre ouvidos surdos. Era claro para Alvo que ele as havia ensaiado muitas vezes antes de proferí-las.

O Ductus chamou a noite e fez de seus punhos tesouras tenebrosas. Ele saltou sobre seu senhor e enfiou-as em seus olhos. Rugindo freneticamente pressionou as membranas do mundo morto contra a carne cinzenta e antiga de seu senhor. Ele queria gritar, queria argumentar, queria pedir desculpas, mas foi incapaz de se controlar.

A besta exigiu o seu quinhão e tudo que existia para alvo era o sangue ancião de seu pai-em-morte. Ele bebeu profundamente, parando pouco antes do fim. O Ductus não derramou nenhuma lágrima enquanto o corpo antigo abaixo de si se desvanecia em cinzas e podridão. Alvo estava irritado, sedento e desejando vingança.

Pro inferno com a Camarilla, com a inquisição, com os amigos da noite e com toda essa bosta. Os antediluvianos estavam chamando seus filhos para defendê-los na grande cruzada e Alvo não tinha a intenção de abandonar sua guerra sem antes dar tudo de si.

Pertencer a Espada de Caim é estar em guerra. Contra os velhos, até o fim do mundo, sem nunca se comprometer, nunca recuar, nunca negociar com aqueles que seguram a mordaça e a corrente. Belisário duvidou da causa e morreu um covarde. Alvo não cometeria o mesmo erro.

quarta-feira, 27 de março de 2019

Sofia & Jazmín


A mata era fechada, fria e cheia de remorso. Era madrugada e a lua sufocava em meio a nuvens negras e famintas.

Duas mortas avançavam por uma trilha errante em direção ao templo. Estavam cansadas e tinham sede. A primeira hávia perdido parte dos lábios no último combate. O corte ia da base do queixo até a orelha. Três foram as garras que a mãe-terra usou para sua vingança, três os talhos no rosto de Sofia.

“Se Patrick estiver errado, e a coisa não estiver aqui, vamos precisar de um novo sacerdote”, disse a vampira, usando um pedaço da manga arruinada da jaqueta de couro para limpar a ferida. Sua companheira, intocada pelas garras de Gaia por conta de sua feitiçaria, limitou-se a sorrir.

Elas caminharam até os primeiros raios de sol despontarem. Traçaram as linhas de proteção e chamaram os nomes que seu sacerdote havia lhes ensinado. O poder se manifestou e a terra lhes acolheu, protegendo-as do abraço de Apolo e da morte-em-dia.

Na noite seguinte elas caçaram. Encontraram uns poucos nativos e uns tantos mosquitos. Algo não as desejava lá, algo antigo e poderoso. Seguiram pela margem de um rio sem nome e sacrificaram uns tantos pescadores - suficiente para os rituais de cura e para os ofícios sacros, mas não para o que lhes mostraria o caminho correto.

Na quarta noite, Sofia sentiu cheiro de fé. Jazmín, a feiticeira, fez-se sombra e desvaneceu. Sua mágica fez com que ela fosse uma espiã eficiente. Ela desenhou com gravetos secos e sangue obtido em holocausto os nomes de Dagon e de seus súditos em volta do templo. Nada abandonaria o altar sem que ela soubesse.

Sofia, Ductus do bando, líder sacramentada e caçadora veterana, usou do poder de sua herança em morte para enxergar além da realidade imediata. O que ela viu garantiu a segurança do sacerdote do bando.

O templo era um círculo de rochas perfeitamente redondas. No centro deste, uma única efígie construída com barro e folhas secas. ‘Aqui moram as bruxas’, pensou a Gangrel. Aqui mora a chave do ritual.


*********

Jasmín estava confusa e frustrada. Ela leu as histórias das bruxas Catarinenses, e o que encontraram não se parecia nada com o material de referência.

Ela esperava uma das potestades mortas de panteões esquecidos, um metamorfo de uma linhagem ancestral, talvez até alguém das cortes do outro lado. O que encontraram foi, de fato, um morto.

Quando a meia-noite rugiu e o altar reagiu com a mágica inerente do local, a efígie se retorceu em diversos ângulos até partir. A terra se abriu e o ritual de contenção da Lasombra surtiu efeito imediatamente - Quando o vampiro enterrado levantou-se da sagrada sepultura, só teve tempo de mostrar as presas antes de ser imobilizado pelas membranas negras do mundo morto.

Ele era antigo e tinha cheiro de sal. Não possuía roupas, cabelos ou olhos. Suas mãos estavam amarradas com contas de oração e trazia no pescoço um colar de ferro negro. Suas presas eram seus únicos dentes, enormes e amarelos e as órbitas vazias em sua face pareciam perfeitamente conscientes do ambiente que o cercava.

Sofia aproximou-se cuidadosamente. Apanhou um punhado de terra do chão e o cheirou. Sussurrou um encantamento que fez com que seus olhos se focassem em outro tempo e lugar, após isso, lambeu a terra, saboreando-a lentamente. Jazmín fez-se em um corpo de trevas e deslizou pelo chão até estar ao lado de sua líder.

“ Ele é velho. Acho que não sabe mais quem é. O que acha?” Disse Sofia.

Jazmín fez-se corpórea novamente. O vampiro possuía símbolos estranhos e antigos no peito.

“ Acho que ele não parece ser uma bruxa e que precisamos de sangue de bruxa.”

O vampiro sorriu. Ele não estava lutando contra os tentáculos que o seguravam, seu único movimento era dos pulsos que pareciam feridos pelo rosário. Eles tremiam incessantemente.

“Tolas, tolas é o que são” Ele disse. A voz era grave e rouca. Carregava um sotaque pesado e antigo que pertencia a outra época e lugar.

A Gangrel cuspiu a terra da boca e sacou uma estaca de madeira compacta do cinto. “Quanto tempo sua magia vai mantê-lo preso, Lasombra?”

Jazmín acariciou seus olhos com a mão esquerda por um instante. Quando os abriu, eles eram negros como piche e transbordavam por seu rosto.

“O suficiente”.

*********

A Lasombra usou de sua adaga ritual com destreza e graciosidade. Traçou no pescoço do velho morto um símbolo de contenção e alimentou o feitiço com uma gota de seu sangue escuro.

O vampiro sibilou e exibiu sua língua bifurcada voluptuosamente. O vitae lhe chamava e a besta que o habitava rugia. Sofia estava de prontidão, com a estaca em punho. A noite era fria e tinha cheiro de sal.

“Estamos em segurança,, irmã. Minha magia é forte e esse cainita tem fome demais para se opor a ela”. Disse Jazmín. O morto levantou uma sobrancelha, sutil demais para que elas percebessem.

“A língua bifurcada me leva a crer que ele foi punido por mortais, mas a falta de olhos me diz que seu capataz sabia o que estava fazendo” Respondeu Sofia.

“O rosário nos pulsos possui um poder que não compreendo. Quem fez o ritual possuía os dons, mas não orava na mesma direção que nós.” Jazmín tocou o rosário com as pontas dos dedos e, um instante depois, foi arremessada por vários metros e se chocou com uma árvore. O velho morto sorriu.

“Vocês não são de minha carne, não são versadas neste mistério. Meu sangue é o sangue dos senhores dos Cárpatos e essa terra pertence a sagrada espada de Caim.”

Sofia segurou Jazmín enquanto ela se levantava. Algumas costelas haviam cedido, mas nada que não pudesse ser consertado.

A Gangrel chiou e seus olhos brilharam em um amarelo febril. “Se ele é o que diz ser, Diana vai querer que ele morra. De qualquer maneira, acho que deveríamos nos livrar dele.”

O velho grunhiu “Uma de vocês é guardiã, vocês são do Sabá. Vocês devem me prestar referência.”

Jazmín puxou a estaca das mãos de Sofia. “Seu sabá morreu por causa de déspotas como o ‘senhor’. Seus herdeiros apodrecem em uma guerra em outras terras por que a realeza morta de Caim insistiu em títulos e honrarias ao invés de nossa guerra. Não lhe devemos referência, lhe devemos nojo.”

A estaca parte a carne com a leveza de um beijo. Era encantada e sacramentada para ritos de caça. O velho morto tenta vociferar uma última maldição mas seus lábios inchados tornam-se inertes e incapazes de moldar o ar. Jazmín morde a própria língua e cospe sangue sobre a ferida, que imediatamente começa a queimar. A Lasombra usa o poder do vitae e ordena que as costelas partidas se costurem. Ela estava cançada e irritada.

Sofia segurou o morto pelas pernas e começa a arrastá-lo pelo mato. Jazmín a segue sem questionar. Após várias horas pela mata voltaram a cabana de pescadores em que cearam anteriormente. Um policial estava investigando a chacina, atônito. Foi assassinado e devorado. Com o novo carro, continuaram por trilhas incertas em meio a floresta, carregando o troféu de sua caçada no porta-malas. As noites eram incertas, inquietas. As duas sabiam que estavam sendo observadas, mas não conseguiam descobrir quem era o perseguidor.

Na noite seguinte, trocaram o carro de polícia por uma ambulância. Os socorristas que tentavam ressuscitar uma idosa infartada não foram uma ceia particularmente agradável, mas foram o suficiente. Estavam se aproximando de Florianópolis agora, prontas para encontrar seu sacerdote e sua guerreira e obter as respostas necessárias do cadáver ancestral que dividia a maca com uma senhora sem vida.

Sofia havia roubado o telefone do antigo motorista da ambulância, e usou-o para chamar Diana, sua amada e querida Tzimisce, assim que ele obteve sinal.

“Diana, meu bem, temo que nosso passeio não tenha ocorrido como o planejado.”

“É uma pena, meu amor. Patrick está tão irritado com esse lugar, vai me deixar maluca. Nada de bruxa então?”

Diana tinha uma voz doce, frágil e quase teatral. Nada nela revelava que ela era uma açougueira monstruosa e a capataz de uma dúzia de imortais. A Tzimisce possuía uma crueldade alienígena que rivalizava com a dos anciões do clã dos demônios.

“Encontramos um parente seu. Um bem antigo. Esta empacotado na carroceria.”

Houve uma leve pausa, seguida por uma risada deliciosa e exagerada.

“De todos os buracos do firmamento, ele foi se esconder aqui? Pois o traga, tenho certeza de que ele vai adorar dançar sobre o luar conosco, com nosso novo sabá.”

“Ahn...Certamente. Tiveram sorte com o Toreador?”

“Tenho certeza de que a boca dele está aqui em algum lugar, mas ele não parece muito disposto a conversar.”

Sofia desligou.O Tzimisce captivo certamente não adoraria os ritos que Diana tinha em mente. Patrick certamente faria com que ele se tornasse a mais bela boneca de vodu nas américas e com alguma sorte Jazmín não teria uma visão profética exigindo o sacrifício do ancião.

Independente do resultado, ele estava condenado. O rito precisa continuar e o velho patrono precisa ser encontrado. O Sabá morreu para renascer, e o antigo rimador guiaria a espada de Caim na guerra que está por vir.



Patrick & Diana

O casal de mortos dirigia lentamente pela ponte Pedro Ivo Campos. Mesmo a meia noite, o tráfego era lento. A Hercílio Luz brilhava em vermelho e púrpura, e sobre ela, a luz cheia pairava, indiferente ao sofrimento do mundo.

“Bela Lugosi's dead, unded, undead, undead”, disse o rádio. “Grande merda”, respondeu o vampiro.

Sua companheira, Diana, sorriu, exibindo as presas molhadas e vermelhas. No banco de trás, 2 exsanguinados dormiam o sonho dos perdidos.

“Esse lugar me deixa com um gosto estranho na boca. Cinzas e alumínio. Como se o fim do mundo estivesse atrasado e os cavaleiros do apocalipse estivessem reclamando dessa porcaria de trânsito”, disse o sacerdote. Patrick vestia uma jaqueta cinza recém-roubada e jeans rasgados que já viram dias melhores. Ele dirigia com ambas as mãos no volante e estava cansado. A viagem não tinha sido ideia dele.

“Meu amor, estamos de férias. Vamos aproveitar um pouco. Nem é tão ruim assim. Olhe lá, que ponte lindinha. Você não se sente enfeitiçado por ela?” Diana gargalhou. Ela lambeu o sangue que ainda lhe escorria dos dedos como se fosse uma gata e limpou as sobras na longa saia arrastão. Reclinou-se sobre o banco e esticou os braços tanto quanto pode antes de continuar “Logo as meninas vão chegar. Vamos nos divertir horrores. E vamos fazer seu ritual. E vamos adotar crianças e fazer essas coisas todas sorrindo e dançando, por que é isso que férias significam.”

Patrick grunhiu ao contemplar a ponte. Ele não sentia nada. Ele já não sentia nada há muito tempo. O ritual iria acontecer, cedo ou tarde, e isso o irritava. Esse não era o local correto. Diana sabia, mas não se importava. Não existem férias para o Sabá. Não existe nada que não seja a guerra.

Os vampiros permaneceram em silêncio enquanto atravessaram a ponte. Com alguma dificuldade, encontraram uma vaga de estacionamento. Abandonaram o carro e os corpos como presente para quaisquer que fossem os vampiros locais e saíram para a noite.

Não foi difícil encontrar o primeiro componente para o ritual. Guilherme Fritz, Toreador, idiota. Diana havia convencido-o de que eram anarquistas a procura de um novo lar, e que seriam muito gratos por quem quer que os apresentasse a baronesa local. Fritz insistiu que deveriam se encontrar em uma boate LGBTQ, mas desistiu quando Diana alegou ser uma Nosferatu.

Ela não era, é claro. Ela era algo muito pior. Mas o jovem Guilherme não existiria por tempo suficiente para reconhecer seu erro.

O encontro foi marcado para um heliporto no meio da avenida Beira Mar Norte. No caminho, Diana esculpiu seus braços disfarçadamente. Os ossos estalaram levemente quando romperam a pele e a Tzimisce suspirou com as veias estendidas.

O combate foi rápido e brutal. Quando o avistaram, o Toreador acenou e Patrick saltou sobre ele com o punho em riste, rápido demais para que ele pudesse reagir. A força do golpe o fez cair com as costas no chão, e um instante depois, uma estava óssea o perfurou e fez seu rosto ser congelado para sempre no grito doloroso do torpor.

O sacerdote brandiu o Atame, sua adaga de condução de ritos, e a enfiou na boca do vampiro abatido. Ele rasgou a gengiva e com a mão livre arrancou as duas presas. Sangue preto verteu da ferida e o jovem vampiro nada pode fazer para impedir o que se seguiu.

“Pra que lado é o oeste?” Disse Patrick, limpando o sangue da lâmina nas calças.

Diana fechou os olhos e apontou para o mar. “É pra lá, meu amor”.

Patrick ajoelhou-se, abriu o braço esquerdo com os dentes e derramou vitae sobre o concreto do chão. Com a poça que se formou, desenhou os nomes de Deuses mortos e abortados. Chamou-os um a um e eles foram testemunha do início do ritual.



***

Em outro noite, em outro lugar.

Patrick estava nu, exceto pelo colar feito de Guilherme. Sua companheira havia usado o estômago como cordão, e ossos dos dedos torcidos em runas e glifos de proteção.

O Toreador não estava muito contente com a situação. Pedaços dele adornavam vários cantos do altar. Suas pernas e braços não mais lhe pertenciam e a estaca de madeira de lei em seu peito lhe queimava a alma.

Diana, vestindo as sobras de seu jantar, agora era horror-feito-morte. Ela possuía longos chifres curvos e asas de couro preto. Quitina cobria sua forma horrenda e ela era parte inseto e parte Deus.
Seus braços eram terminados em bocas cheias de dentes e entre seus seios, as marcas talhadas pelo Atame do sacerdote pulsavam em um amarelo ocre e pegajoso. Seus quatro olhos eram imensos, focados, cinzentos e mortos, e seus joelhos dobravam-se como se ela estivesse preparada para voar.

Patrick orava com as mãos dispostas sobre a oferenda. Seus olhos eram órbitas negras e sua voz já não mais lhe pertencia. Seu cântico era o de línguas mortas, de potestades ausentes e de cinza e alumínio e o fim do mundo. Ele era um receptáculo e um canalizador. E ele olhava para o oeste.

sexta-feira, 15 de março de 2019

V5 - Dante & Ingrid



O Nosferatu curvou-se diante do notebook, lambendo os beiços teatralmente, deixando a mostra os dentes tortos e amarelos. A tela exibia vários terminais diferentes, cada um uma serpente, um predador a espera do momento oportuno para o bote.


Dante aguardou pacientemente o retorno de seus pequenos espiões digitais, e quando a resposta chegou, enviou uma mensagem para sua assistente.


“Game on”


Ele disparou a rotina de monitoramento e ouviu um telefone tocar três vezes antes de ser atendido. A voz adocicada de Ariel iniciou o ataque.


“Boa noite, me chamo Vivian e ligo em nome da operadora Oi. Gostaria de falar com-” (interrompida)


“Eu não quero comprar nada.” Disse uma mulher rouca e insatisfeita por ter sido incomodada.


“Não estou vendendo nada senhora. Você por acaso se chama Eva? Devido a uma mudança de planos sua fatura vai ficar mais barata. Só preciso confirmar uns dados com a proprietária.”


“Ok, sou eu.”


Game over, pensou Dante. Era início da noite e o ancião se sentia extremamente sonolento e vazio. As letras brancas no display se misturavam quando sua mente vagava por mais que um instante. Alguma coisa estava mudando, alguém o estava chamando. Alguém perigoso.
“Eu preciso que a senhora clique no ícone que apareceu na área de trabalho duas vezes. Na nova tela ele vai pedir pra que você digite a senha de seu roteador, que está num adesivo embaixo do aparelho”


A garota era jovem, mas levava jeito pra coisa. Jovens aprendem rápido demais.


Um dos terminais do notebook saltou para a frente da tela com as credenciais de acesso gentilmente cedidas pela senhora Eva. O veneno surtia efeito e os logs do sistema-vítima eram rapidamente clonados.


“Muito obrigado e tenha uma boa noite. Peço que a senhora aguarde um instante para avaliar a chamada. No próximo mês sua fatura já virá com o desconto.”


Fim da chamada. Fim da resistência. Dante digita sem dificuldade os parâmetros do ataque final.


msf> ../ msfvenom logRetriever.py -Ss -Sn 0 Eva0 Eth0 pbloom.ssh


O instante antes da confirmação do sucesso carrega em si todo o peso do mundo. A ansiedade salta e os pulmões podres buscam inutilmente por ar. Vazio e medo fagulham até o surto de adrenalina correr pelas veias.  O Nosferatu batuca a mesa com as pontas dos dedos e, quanto o resultado aparece na tela, o segundo de êxtase que o toma quase faz com que ele esqueça que está completa e verdadeiramente morto.


“Pegamos o filho da puta” diz a mensagem de sua aprendiz. Ela já está lançando a próxima etapa do ataque, referenciando os registros do cartão de crédito da mãe do dono de um dos maiores sites de revenge porn do Brasil com os dados usados para alugar os servidores de hospedagem na Croácia.


Dante se reclina sobre a cadeira e imagina os nós na rede que levam o computador de uma secretária aposentada até os confins mais sórdidos da pornografia amadora. Eva certamente não sabe de nada, mas isso não importa. Com os dados em sua tela, ele dispara o programa que gera os relatórios e os envia para para a polícia federal por meio de um conjunto de camadas que passa por 17 países cujas legislações são tão radicalmente diferentes que tentar rastreá-lo levaria anos, na melhor das hipóteses.


Sua cliente estaria satisfeita e lhe devia um favor. Uma semana de pesquisa, uma ligação, uma guerra contra oponentes desarmados. Sempre existe um elo frágil, e em noventa e nove por cento dos casos, esse elo frágil usa Windows desatualizado.


“Vou ir tomar um lanche. Avisa se quiser que eu traga alguém da rua”. Diz a última mensagem de Ariel. Uma moça de classe, certamente.


Ele não responde. Ainda haviam muitos negócios a serem tratados essa noite. Três mensagens. A velha bruxa dizia alguma coisa sobre o fim do mundo e cristais de Feng Shui. A Baronesa queria uma reunião urgentemente para discutir planos para uma guerra que está para acontecer desde que algum português bêbado aportou em Vera Cruz. Ingrid simplesmente disse ‘me chame‘.


Ingrid era a prioridade, sempre. Ele ligou para o chefe de segurança e pediu para que ele deixasse a visitante subir. Dante gostava de charadas e Ingrid era uma bastante difícil de decifrar. Desligou o notebook e a tela, agora escura, refletia sua face distorcida.


O Nosferatu roçou sua bochecha quitinosa com as unhas. A pele era seca e frágil, e mesmo um leve toque fazia com que pús e fedor o permeassem.  Seu nariz era comprido, torto, quebrado umas tantas vezes em vida e outras tantas em morte, e seus olhos amarelos e diminutos o denunciavam como um eterno predador.


A porta do escritório se abriu, e a voz baixa e arrastada da visitante se fez presente “Saudações, rei rato. Trago-lhe oferendas.”


Ingrid era jovem, ousada e petulante. Vestia um casaco rosa roubado e jeans. O cabelo claro era ocultado pelo capuz e o pescoço pelo cachecol. Não fazia frio. Ela tirou as mãos dos bolsos e fez uma referência lenta e teatral, ainda curvada, levantou o rosto e sorriu. “O senhor fede como a peste. Em minha próxima visita, minha oferenda será de detergente”.


“Ingrid, querida” disse Dante, pausando em cada sílaba e medindo a reação da Malkaviana. “Ainda não tive oportunidade de lhe agradecer por nossa última conversa. Permita-me não destruí-la como forma de pagamento.”


Ele sorriu. Ela não.


“É muita gentileza de sua parte, meu bom senhor. No entanto, para a conversa desta noite será necessário um pagamento mais...tangível”.


“Isso irá depender do que você me oferecer, que-ri-da”.


Ingrid sentou-se no chão em uma meia-lótus. Fitou o vazio por um longo instante e sussurrou. “O senhor conhece o sabá?”


Dante, surpreso, levantou algo que em algum momento foi uma sobrancelha. “Mais do que gostaria. Porquê?”


Ingrid, aparentemente surpresa, respondeu “Não importa. Eles foram embora. O senhor lembra da estrela dos pesadelos?”


“A semana dos pesadelos?”


“Não. A estrela vermelha dos pesadelos. Não aquela dos comunistas. Aquela dos indianos”


“Sim. Eu me recordo.”

“Eu sonhei com ela. Lá naquele país dos terroristas. Ela está brilhando lá e o Sabá está indo matar ela, mas os velhos não querem por que eles são comunistas e tem medo dos pesadelos.”


Dante suspirou e mais uma vez agradeceu por ter instalado um sistema de microfones escondidos na sala. Ele precisaria ouvir essa conversa mais algumas vezes no futuro. A memória da semana dos pesadelos ainda lhe era pesarosa. Ele passou várias noites cuidando de seu amigo Abraham e procurando uma maneira de fazer o sangramento e os gritos cessarem. Ele falhou e Abraham se esvaiu. Ingrid continuou:


“Ai eu falei com a bruxa e ela disse que isso era porque pro diabo se reza olhando pro oeste, o que faz sentido, se você for pensar bem. Ela não reza pro diabo por que ela é bruxa e as bruxas só rezam pra terra. Você tem rezado pro diabo, senhor-Rei-roedor?”


O Nosferatu sorriu. Francisca, a bruxa Malkaviana que deve ser a vampira mais velha dessas terras, não sente o chamado. Ou talvez sinta e não perceba.


“Eu não sou comunista.” Respondeu Dante.


“Ah. E também” disse  Ingrid “tinha um primo seu vindo buscar quem não fosse pra lá. Acho que chama Tuco. Nick Tuco.”


Dante, movendo-se rápido demais para que olhos jovens pudessem observá-lo, girou a chave de segurança embaixo da mesa e digitou a senha de doze dígitos. Grades pesadas caem sobre as janela de ambos os lados, bem como sobre a porta, e  um notebook começou a bipar insistentemente sobre a mesa próxima. Dante saltou para a cadeira próxima e inseriu a senha de desbloqueio da máquina. Ingrid protestava pela falta de atenção, mas o Nosferatu encontrava-se em outra realidade.


ShrekNET já não mais existia, mas a mão armada do clã ainda espreitava cantos obscuros da rede. Dante lançou hideByMe, o programa que é responsável por checar as entradas e saídas dos terminais de seus aliados. Um a um, todos retornaram resultados positivos. O vampiro suspirou aliviado. As máquinas dessa rede precisam ser reativadas com uma senha cuja cifra só o clã conhece, caso alguma falhe, toda a rede é notificada. Seus aliados estavam (presumivelmente) seguros, pelo menos por enquanto.


Ingrid continuava “E aí eu disse pro guri que malkaviano não era bagunça e enfiei a cara dele no asfalto. Ei, posso ir embora?”


Dante retornou a sua mesa principal e inseriu o código de liberação da porta principal.


“Obrigado querida. Você me deu muito no que pensar. Por gentileza, diga a senhora Francisca que preciso conversar com ela. Sobre o fim do mundo e essas coisas.”

“Ah, digo sim, ela vai ficar bem feliz. Fim do mundo tem sido o assunto favorito dela nessa semana. Boa noite senhor Dante, é sempre um prazer fazer negócios com o senhor.”


Ela acena levemente e sai. Dante aciona as grades de proteção da porta novamente. Com o telefone em mãos, cancela todos os outros compromissos da noite e envia uma mensagem a Ariel.


“Tenho um novo alvo. Base64. As instruções vão estar lá quando você chegar. Não volte pra cá até que eu diga que é seguro.”  

A Malkaviana responde em poucos momentos “OMW”. On my way. O Nosferatu, só e preocupado, ativa o hideByMe uma vez mais.