quarta-feira, 27 de março de 2019

Sofia & Jazmín


A mata era fechada, fria e cheia de remorso. Era madrugada e a lua sufocava em meio a nuvens negras e famintas.

Duas mortas avançavam por uma trilha errante em direção ao templo. Estavam cansadas e tinham sede. A primeira hávia perdido parte dos lábios no último combate. O corte ia da base do queixo até a orelha. Três foram as garras que a mãe-terra usou para sua vingança, três os talhos no rosto de Sofia.

“Se Patrick estiver errado, e a coisa não estiver aqui, vamos precisar de um novo sacerdote”, disse a vampira, usando um pedaço da manga arruinada da jaqueta de couro para limpar a ferida. Sua companheira, intocada pelas garras de Gaia por conta de sua feitiçaria, limitou-se a sorrir.

Elas caminharam até os primeiros raios de sol despontarem. Traçaram as linhas de proteção e chamaram os nomes que seu sacerdote havia lhes ensinado. O poder se manifestou e a terra lhes acolheu, protegendo-as do abraço de Apolo e da morte-em-dia.

Na noite seguinte elas caçaram. Encontraram uns poucos nativos e uns tantos mosquitos. Algo não as desejava lá, algo antigo e poderoso. Seguiram pela margem de um rio sem nome e sacrificaram uns tantos pescadores - suficiente para os rituais de cura e para os ofícios sacros, mas não para o que lhes mostraria o caminho correto.

Na quarta noite, Sofia sentiu cheiro de fé. Jazmín, a feiticeira, fez-se sombra e desvaneceu. Sua mágica fez com que ela fosse uma espiã eficiente. Ela desenhou com gravetos secos e sangue obtido em holocausto os nomes de Dagon e de seus súditos em volta do templo. Nada abandonaria o altar sem que ela soubesse.

Sofia, Ductus do bando, líder sacramentada e caçadora veterana, usou do poder de sua herança em morte para enxergar além da realidade imediata. O que ela viu garantiu a segurança do sacerdote do bando.

O templo era um círculo de rochas perfeitamente redondas. No centro deste, uma única efígie construída com barro e folhas secas. ‘Aqui moram as bruxas’, pensou a Gangrel. Aqui mora a chave do ritual.


*********

Jasmín estava confusa e frustrada. Ela leu as histórias das bruxas Catarinenses, e o que encontraram não se parecia nada com o material de referência.

Ela esperava uma das potestades mortas de panteões esquecidos, um metamorfo de uma linhagem ancestral, talvez até alguém das cortes do outro lado. O que encontraram foi, de fato, um morto.

Quando a meia-noite rugiu e o altar reagiu com a mágica inerente do local, a efígie se retorceu em diversos ângulos até partir. A terra se abriu e o ritual de contenção da Lasombra surtiu efeito imediatamente - Quando o vampiro enterrado levantou-se da sagrada sepultura, só teve tempo de mostrar as presas antes de ser imobilizado pelas membranas negras do mundo morto.

Ele era antigo e tinha cheiro de sal. Não possuía roupas, cabelos ou olhos. Suas mãos estavam amarradas com contas de oração e trazia no pescoço um colar de ferro negro. Suas presas eram seus únicos dentes, enormes e amarelos e as órbitas vazias em sua face pareciam perfeitamente conscientes do ambiente que o cercava.

Sofia aproximou-se cuidadosamente. Apanhou um punhado de terra do chão e o cheirou. Sussurrou um encantamento que fez com que seus olhos se focassem em outro tempo e lugar, após isso, lambeu a terra, saboreando-a lentamente. Jazmín fez-se em um corpo de trevas e deslizou pelo chão até estar ao lado de sua líder.

“ Ele é velho. Acho que não sabe mais quem é. O que acha?” Disse Sofia.

Jazmín fez-se corpórea novamente. O vampiro possuía símbolos estranhos e antigos no peito.

“ Acho que ele não parece ser uma bruxa e que precisamos de sangue de bruxa.”

O vampiro sorriu. Ele não estava lutando contra os tentáculos que o seguravam, seu único movimento era dos pulsos que pareciam feridos pelo rosário. Eles tremiam incessantemente.

“Tolas, tolas é o que são” Ele disse. A voz era grave e rouca. Carregava um sotaque pesado e antigo que pertencia a outra época e lugar.

A Gangrel cuspiu a terra da boca e sacou uma estaca de madeira compacta do cinto. “Quanto tempo sua magia vai mantê-lo preso, Lasombra?”

Jazmín acariciou seus olhos com a mão esquerda por um instante. Quando os abriu, eles eram negros como piche e transbordavam por seu rosto.

“O suficiente”.

*********

A Lasombra usou de sua adaga ritual com destreza e graciosidade. Traçou no pescoço do velho morto um símbolo de contenção e alimentou o feitiço com uma gota de seu sangue escuro.

O vampiro sibilou e exibiu sua língua bifurcada voluptuosamente. O vitae lhe chamava e a besta que o habitava rugia. Sofia estava de prontidão, com a estaca em punho. A noite era fria e tinha cheiro de sal.

“Estamos em segurança,, irmã. Minha magia é forte e esse cainita tem fome demais para se opor a ela”. Disse Jazmín. O morto levantou uma sobrancelha, sutil demais para que elas percebessem.

“A língua bifurcada me leva a crer que ele foi punido por mortais, mas a falta de olhos me diz que seu capataz sabia o que estava fazendo” Respondeu Sofia.

“O rosário nos pulsos possui um poder que não compreendo. Quem fez o ritual possuía os dons, mas não orava na mesma direção que nós.” Jazmín tocou o rosário com as pontas dos dedos e, um instante depois, foi arremessada por vários metros e se chocou com uma árvore. O velho morto sorriu.

“Vocês não são de minha carne, não são versadas neste mistério. Meu sangue é o sangue dos senhores dos Cárpatos e essa terra pertence a sagrada espada de Caim.”

Sofia segurou Jazmín enquanto ela se levantava. Algumas costelas haviam cedido, mas nada que não pudesse ser consertado.

A Gangrel chiou e seus olhos brilharam em um amarelo febril. “Se ele é o que diz ser, Diana vai querer que ele morra. De qualquer maneira, acho que deveríamos nos livrar dele.”

O velho grunhiu “Uma de vocês é guardiã, vocês são do Sabá. Vocês devem me prestar referência.”

Jazmín puxou a estaca das mãos de Sofia. “Seu sabá morreu por causa de déspotas como o ‘senhor’. Seus herdeiros apodrecem em uma guerra em outras terras por que a realeza morta de Caim insistiu em títulos e honrarias ao invés de nossa guerra. Não lhe devemos referência, lhe devemos nojo.”

A estaca parte a carne com a leveza de um beijo. Era encantada e sacramentada para ritos de caça. O velho morto tenta vociferar uma última maldição mas seus lábios inchados tornam-se inertes e incapazes de moldar o ar. Jazmín morde a própria língua e cospe sangue sobre a ferida, que imediatamente começa a queimar. A Lasombra usa o poder do vitae e ordena que as costelas partidas se costurem. Ela estava cançada e irritada.

Sofia segurou o morto pelas pernas e começa a arrastá-lo pelo mato. Jazmín a segue sem questionar. Após várias horas pela mata voltaram a cabana de pescadores em que cearam anteriormente. Um policial estava investigando a chacina, atônito. Foi assassinado e devorado. Com o novo carro, continuaram por trilhas incertas em meio a floresta, carregando o troféu de sua caçada no porta-malas. As noites eram incertas, inquietas. As duas sabiam que estavam sendo observadas, mas não conseguiam descobrir quem era o perseguidor.

Na noite seguinte, trocaram o carro de polícia por uma ambulância. Os socorristas que tentavam ressuscitar uma idosa infartada não foram uma ceia particularmente agradável, mas foram o suficiente. Estavam se aproximando de Florianópolis agora, prontas para encontrar seu sacerdote e sua guerreira e obter as respostas necessárias do cadáver ancestral que dividia a maca com uma senhora sem vida.

Sofia havia roubado o telefone do antigo motorista da ambulância, e usou-o para chamar Diana, sua amada e querida Tzimisce, assim que ele obteve sinal.

“Diana, meu bem, temo que nosso passeio não tenha ocorrido como o planejado.”

“É uma pena, meu amor. Patrick está tão irritado com esse lugar, vai me deixar maluca. Nada de bruxa então?”

Diana tinha uma voz doce, frágil e quase teatral. Nada nela revelava que ela era uma açougueira monstruosa e a capataz de uma dúzia de imortais. A Tzimisce possuía uma crueldade alienígena que rivalizava com a dos anciões do clã dos demônios.

“Encontramos um parente seu. Um bem antigo. Esta empacotado na carroceria.”

Houve uma leve pausa, seguida por uma risada deliciosa e exagerada.

“De todos os buracos do firmamento, ele foi se esconder aqui? Pois o traga, tenho certeza de que ele vai adorar dançar sobre o luar conosco, com nosso novo sabá.”

“Ahn...Certamente. Tiveram sorte com o Toreador?”

“Tenho certeza de que a boca dele está aqui em algum lugar, mas ele não parece muito disposto a conversar.”

Sofia desligou.O Tzimisce captivo certamente não adoraria os ritos que Diana tinha em mente. Patrick certamente faria com que ele se tornasse a mais bela boneca de vodu nas américas e com alguma sorte Jazmín não teria uma visão profética exigindo o sacrifício do ancião.

Independente do resultado, ele estava condenado. O rito precisa continuar e o velho patrono precisa ser encontrado. O Sabá morreu para renascer, e o antigo rimador guiaria a espada de Caim na guerra que está por vir.



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