domingo, 9 de junho de 2013

Os açougueiros do diabo: Fogueiras da alma, Archotes de Caim. Parte I de III

A noite era uma podridão gosmenta e pegajosa.
Andrew puxou o gatilho do rifle de caça, um suspirou cortou o vento e uma têmpora se abriu.
Ele havia esperado imóvel por um par de horas até que o seneschal voltasse de seu ofício, era alta madrugada e a Turquia queimava com os archotes do sabá.
O comunicador acoplado a seu ouvido piscou e chiou, e a doce voz da assassina lhe beijou com a suavidade de uma velha amante que o tempo matou.
"Meu Ductus, tenho um relatório."
Ele não reagiu. Alguém entrou no quarto do morto. Gritos. Medo. Cheiro de criança da noite. Veiga continuou a falar.
"A Camarilla esta negociando com os anjos de Caim. Estão abandonando a capital e direcionando um exército de carniçais pra cá. Acham que já perderam a cidade e a capela. Nosso espião instalou o transmissor no primógeno Ventrue, o sinal já esta claro. Ele esta em um blindado viajando para o norte com seis cainitas. A rosa branca da Germânia vai interceptá-los em breve. As criaturas de nosso irmão de carne obrigaram círculos de ancillae a redirecionarem seus recursos, tempo e controle sobre toda a mídia e a promover uma chacina disfarçada de revolta popular. Os mortos estão na casa das centenas. Adalbrecht convocou um Tzimisce de Munique e eles estão sitiando uma espécie de templo Assamita com o apoio do bando da chaga e do punhal. Eu estou caçando uma Harpia, precisamos saber a localização de um elísio de apoio. Perdemos cinco neófitos em um confronto com um ancião Assamita. Cicatriz está atrás dele. Minha criança está dominando repórteres em um hospital. Estão transmitindo ao vivo na internet. Está me ouvindo, meu Ductus?"
Ele estava. E estava estático. O Cainita no salão a meia quadra de distância chorava abraçado ao cadáver cinzento e podre. Pela mira amplificada o Brujah conseguia ver as cinzas se descolando das veias pretas e rugosas.
"Uma raspa de caixão" ele sibilou "como eu fui um dia." Veiga chiou do outro lado da linha, mas Andrew era alheio ao apelo de sua Toreador. O cainita desesperado tinha ombros pequenos e rosto franzino, a pela era cor de oliva e os cabelos curtos e cacheados. Seus olhos vertiam manchas vermelhas e seus lábios finos tremiam e oscilavam.
"Matei o senhor de alguém, Veiga. De alguém que eu não conhecia, por qualquer motivo que nunca me importou."
Do outro lado, ouviam-se gritos de pura agonia e a deliciosa risada da ninfeta de Caim.
"Fazemos isso com relativa frequência, meu Ductus, está tudo bem? Precisa de reforço?"
Andrew ouviu algo que parecia ser "eu já disse tudo que sei, por favor me mate" seguido por um som molhado e carmesim que em todas as línguas do mundo significava dor além dos sentidos.
Andrew piscou pela primeira vez na noite e apertou o gatilho. A bala atravessou a base da nuca e abriu a traqueia completamente, e mesmo antes do corpo cair sobre as cinzes finais do Seneschal, o sangue já jorrava.
"Não, não quero ninguém. Lembre-se que a operação é apenas um teste. Mate tudo o que puder. Já temos as informações que precisarmos, só precisamos puxar os Assamitas para a capital. Eles vão prever esse movimento e vão mandar suas crianças. Vamos matá-las e vamos capturar quem quer que esteja liderando o contra-ataque. É deles que precisamos. Mate o que quer que seja que esta gritando ai e una-se a cicatriz. Ataquem o público. Levem uns tiros, sorriam pras câmeras. Eles já sabem que somos nós."
"Entendido, fique bem, meu gatinho, Veiga desligando."
Ele pensou na insubordinação dela por um instante e sentiu o sangue esquentar. Levantou-se em um solavanco e observou a rua seis andares a baixo de seus pés.
Pessoas, gritos, sangue. Uma revolta por algo que lhe era indiferente. Tropas de choque. Cavalos. Pimenta e medo no ar. Era uma guerra, e Andrew era, acima de tudo, um guerreiro.
"Pelo Sabá, por Caim e pela regente."
Um passo curto e ele estava caindo. O voo do Ductus dos açougueiros do diabo terminou em uma sinfonia de ossos partidos e ganidos patéticos. O sobretudo ocre de oficial do Reich lhe dava um tom irreal. Ele cheirava a ódio e a pavor e a matança e a instinto. Um soldado gritou e ele ouviu travas sendo puxadas. Eles logo aprenderiam que era Andrew quem regia a orquestra.
"Olhe para dentro e veja quem você é", lhe disse a voz de seu pesadelo. "Fuja para dentro de si mesmo, como fez quando me matou."
A imagem lhe socou o estômago e lhe roubou o foco. O frio de Moscou. A anciã que lhe deu a morte beijando o cano da espingarda. A ultima maldição. O disparo. O vermelho.
Uma bala raspou a orelha do Brujah, outras três entraram em seu peito. Ele fugiu pra dentro e viu a besta sorrindo com desdém. Era hora de ser tudo o que o sangue lhe deu.
Mais dois tiros pinicaram o açougueiro, e a besta estuprou sua consciência rugindo. Ele cobriu seis metros em um salto e agarrou um cavalo pelo pescoço. Em um instante ele girou sobre os calcanhares e arremessou o animal e seu cavaleiro de encontro a multidão que corria em absoluto desespero. Andrew curvou-se como um animal, saltando, partindo, ceifando o que quer que a colheita de sua irá encontrasse ao alcance. Ele segurou uma mulher pelo calcanhar e a usou como clava enquanto avançava sobre o pelotão.
Alguém Cantava. Alguém sorria. Andrew era um fiel e a carnificina era sua Deusa e sua prece.
Algo lhe tocou nas coxas e queimou até sua alma. Ele não sentiu a dor, não sentiu o medo. Ele não sentiu que o sol estava nascendo. Ele era a morte encarnada.