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sexta-feira, 15 de março de 2019

V5 - Dante & Ingrid



O Nosferatu curvou-se diante do notebook, lambendo os beiços teatralmente, deixando a mostra os dentes tortos e amarelos. A tela exibia vários terminais diferentes, cada um uma serpente, um predador a espera do momento oportuno para o bote.


Dante aguardou pacientemente o retorno de seus pequenos espiões digitais, e quando a resposta chegou, enviou uma mensagem para sua assistente.


“Game on”


Ele disparou a rotina de monitoramento e ouviu um telefone tocar três vezes antes de ser atendido. A voz adocicada de Ariel iniciou o ataque.


“Boa noite, me chamo Vivian e ligo em nome da operadora Oi. Gostaria de falar com-” (interrompida)


“Eu não quero comprar nada.” Disse uma mulher rouca e insatisfeita por ter sido incomodada.


“Não estou vendendo nada senhora. Você por acaso se chama Eva? Devido a uma mudança de planos sua fatura vai ficar mais barata. Só preciso confirmar uns dados com a proprietária.”


“Ok, sou eu.”


Game over, pensou Dante. Era início da noite e o ancião se sentia extremamente sonolento e vazio. As letras brancas no display se misturavam quando sua mente vagava por mais que um instante. Alguma coisa estava mudando, alguém o estava chamando. Alguém perigoso.
“Eu preciso que a senhora clique no ícone que apareceu na área de trabalho duas vezes. Na nova tela ele vai pedir pra que você digite a senha de seu roteador, que está num adesivo embaixo do aparelho”


A garota era jovem, mas levava jeito pra coisa. Jovens aprendem rápido demais.


Um dos terminais do notebook saltou para a frente da tela com as credenciais de acesso gentilmente cedidas pela senhora Eva. O veneno surtia efeito e os logs do sistema-vítima eram rapidamente clonados.


“Muito obrigado e tenha uma boa noite. Peço que a senhora aguarde um instante para avaliar a chamada. No próximo mês sua fatura já virá com o desconto.”


Fim da chamada. Fim da resistência. Dante digita sem dificuldade os parâmetros do ataque final.


msf> ../ msfvenom logRetriever.py -Ss -Sn 0 Eva0 Eth0 pbloom.ssh


O instante antes da confirmação do sucesso carrega em si todo o peso do mundo. A ansiedade salta e os pulmões podres buscam inutilmente por ar. Vazio e medo fagulham até o surto de adrenalina correr pelas veias.  O Nosferatu batuca a mesa com as pontas dos dedos e, quanto o resultado aparece na tela, o segundo de êxtase que o toma quase faz com que ele esqueça que está completa e verdadeiramente morto.


“Pegamos o filho da puta” diz a mensagem de sua aprendiz. Ela já está lançando a próxima etapa do ataque, referenciando os registros do cartão de crédito da mãe do dono de um dos maiores sites de revenge porn do Brasil com os dados usados para alugar os servidores de hospedagem na Croácia.


Dante se reclina sobre a cadeira e imagina os nós na rede que levam o computador de uma secretária aposentada até os confins mais sórdidos da pornografia amadora. Eva certamente não sabe de nada, mas isso não importa. Com os dados em sua tela, ele dispara o programa que gera os relatórios e os envia para para a polícia federal por meio de um conjunto de camadas que passa por 17 países cujas legislações são tão radicalmente diferentes que tentar rastreá-lo levaria anos, na melhor das hipóteses.


Sua cliente estaria satisfeita e lhe devia um favor. Uma semana de pesquisa, uma ligação, uma guerra contra oponentes desarmados. Sempre existe um elo frágil, e em noventa e nove por cento dos casos, esse elo frágil usa Windows desatualizado.


“Vou ir tomar um lanche. Avisa se quiser que eu traga alguém da rua”. Diz a última mensagem de Ariel. Uma moça de classe, certamente.


Ele não responde. Ainda haviam muitos negócios a serem tratados essa noite. Três mensagens. A velha bruxa dizia alguma coisa sobre o fim do mundo e cristais de Feng Shui. A Baronesa queria uma reunião urgentemente para discutir planos para uma guerra que está para acontecer desde que algum português bêbado aportou em Vera Cruz. Ingrid simplesmente disse ‘me chame‘.


Ingrid era a prioridade, sempre. Ele ligou para o chefe de segurança e pediu para que ele deixasse a visitante subir. Dante gostava de charadas e Ingrid era uma bastante difícil de decifrar. Desligou o notebook e a tela, agora escura, refletia sua face distorcida.


O Nosferatu roçou sua bochecha quitinosa com as unhas. A pele era seca e frágil, e mesmo um leve toque fazia com que pús e fedor o permeassem.  Seu nariz era comprido, torto, quebrado umas tantas vezes em vida e outras tantas em morte, e seus olhos amarelos e diminutos o denunciavam como um eterno predador.


A porta do escritório se abriu, e a voz baixa e arrastada da visitante se fez presente “Saudações, rei rato. Trago-lhe oferendas.”


Ingrid era jovem, ousada e petulante. Vestia um casaco rosa roubado e jeans. O cabelo claro era ocultado pelo capuz e o pescoço pelo cachecol. Não fazia frio. Ela tirou as mãos dos bolsos e fez uma referência lenta e teatral, ainda curvada, levantou o rosto e sorriu. “O senhor fede como a peste. Em minha próxima visita, minha oferenda será de detergente”.


“Ingrid, querida” disse Dante, pausando em cada sílaba e medindo a reação da Malkaviana. “Ainda não tive oportunidade de lhe agradecer por nossa última conversa. Permita-me não destruí-la como forma de pagamento.”


Ele sorriu. Ela não.


“É muita gentileza de sua parte, meu bom senhor. No entanto, para a conversa desta noite será necessário um pagamento mais...tangível”.


“Isso irá depender do que você me oferecer, que-ri-da”.


Ingrid sentou-se no chão em uma meia-lótus. Fitou o vazio por um longo instante e sussurrou. “O senhor conhece o sabá?”


Dante, surpreso, levantou algo que em algum momento foi uma sobrancelha. “Mais do que gostaria. Porquê?”


Ingrid, aparentemente surpresa, respondeu “Não importa. Eles foram embora. O senhor lembra da estrela dos pesadelos?”


“A semana dos pesadelos?”


“Não. A estrela vermelha dos pesadelos. Não aquela dos comunistas. Aquela dos indianos”


“Sim. Eu me recordo.”

“Eu sonhei com ela. Lá naquele país dos terroristas. Ela está brilhando lá e o Sabá está indo matar ela, mas os velhos não querem por que eles são comunistas e tem medo dos pesadelos.”


Dante suspirou e mais uma vez agradeceu por ter instalado um sistema de microfones escondidos na sala. Ele precisaria ouvir essa conversa mais algumas vezes no futuro. A memória da semana dos pesadelos ainda lhe era pesarosa. Ele passou várias noites cuidando de seu amigo Abraham e procurando uma maneira de fazer o sangramento e os gritos cessarem. Ele falhou e Abraham se esvaiu. Ingrid continuou:


“Ai eu falei com a bruxa e ela disse que isso era porque pro diabo se reza olhando pro oeste, o que faz sentido, se você for pensar bem. Ela não reza pro diabo por que ela é bruxa e as bruxas só rezam pra terra. Você tem rezado pro diabo, senhor-Rei-roedor?”


O Nosferatu sorriu. Francisca, a bruxa Malkaviana que deve ser a vampira mais velha dessas terras, não sente o chamado. Ou talvez sinta e não perceba.


“Eu não sou comunista.” Respondeu Dante.


“Ah. E também” disse  Ingrid “tinha um primo seu vindo buscar quem não fosse pra lá. Acho que chama Tuco. Nick Tuco.”


Dante, movendo-se rápido demais para que olhos jovens pudessem observá-lo, girou a chave de segurança embaixo da mesa e digitou a senha de doze dígitos. Grades pesadas caem sobre as janela de ambos os lados, bem como sobre a porta, e  um notebook começou a bipar insistentemente sobre a mesa próxima. Dante saltou para a cadeira próxima e inseriu a senha de desbloqueio da máquina. Ingrid protestava pela falta de atenção, mas o Nosferatu encontrava-se em outra realidade.


ShrekNET já não mais existia, mas a mão armada do clã ainda espreitava cantos obscuros da rede. Dante lançou hideByMe, o programa que é responsável por checar as entradas e saídas dos terminais de seus aliados. Um a um, todos retornaram resultados positivos. O vampiro suspirou aliviado. As máquinas dessa rede precisam ser reativadas com uma senha cuja cifra só o clã conhece, caso alguma falhe, toda a rede é notificada. Seus aliados estavam (presumivelmente) seguros, pelo menos por enquanto.


Ingrid continuava “E aí eu disse pro guri que malkaviano não era bagunça e enfiei a cara dele no asfalto. Ei, posso ir embora?”


Dante retornou a sua mesa principal e inseriu o código de liberação da porta principal.


“Obrigado querida. Você me deu muito no que pensar. Por gentileza, diga a senhora Francisca que preciso conversar com ela. Sobre o fim do mundo e essas coisas.”

“Ah, digo sim, ela vai ficar bem feliz. Fim do mundo tem sido o assunto favorito dela nessa semana. Boa noite senhor Dante, é sempre um prazer fazer negócios com o senhor.”


Ela acena levemente e sai. Dante aciona as grades de proteção da porta novamente. Com o telefone em mãos, cancela todos os outros compromissos da noite e envia uma mensagem a Ariel.


“Tenho um novo alvo. Base64. As instruções vão estar lá quando você chegar. Não volte pra cá até que eu diga que é seguro.”  

A Malkaviana responde em poucos momentos “OMW”. On my way. O Nosferatu, só e preocupado, ativa o hideByMe uma vez mais.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O espelho do mago - Ato 1

Uma pequena história sobre um favor prestado a alguém que não pertencia ao sangue e a interação entre meus Lasombra e meus Malkavian, em três partes









Sou movimento, oblíquo e inconstante.
Mergulho minha Forma Espelhada na realidade primária. Um corpo a quem pertence minha vontade. Penso, manifesto, faço-me carne.
Encontro-me em um lugar enlouquecido. Sons mecânicos ecoam por corredores amarelados que cheiravam a urina e inconstância. Uma presença quase-morta me acolhia. Um eco jovem,um sussurro de consciência mordiscando a mortandade.
Deslizo por salões inquietos. Em meu caminho, mortais em vestes brancas tremem de pavor. Um coração para em algum lugar. Eles são cegos a minha presença, mas ainda conseguem me sentir.
Alimento-me de pensamentos fragmentados e absorvo horrores escondidos em mentes  oprimidas. Vejo nomes de poder e manifestações mesquinhas de ego e pretensa razão.
A vastidão quimérica do labirinto de corredores me absorve. Mil aromas alienígenas me cegam e chamo o poder para encontrar o caminho.
Em meu peito podre pulsava a fome e a dor corpórea. Eu já não mais sabia andar com a graciosidade de outrora, não mais sabia caçar aqueles do sangue que me serviam de verdadeiro sustento. O preço pelo invólucro de carne era alto.
Enfim encontro o quarto do escolhido. Atravesso o beiral da porta aberta e sou surpreendido pelo choque da aura.
Ele estava lá, pequeno e ossudo. Um garotinho, não mais velho do que Aquela que me é preciosa   era no dia em que a trouxe para a noite. Era pálido, fétido e doentio. Não tinha cabelos e sua pele purulenta parecia estar desgrudando da face. Nos cantos da boca, feridas oleosas e vermelhas se faziam presentes. Estava sobre uma cama imunda em meio a fezes e restos de comida.Um dos olhos era branco e oleoso, o outro era cinzento e semicerrado. Estava morrendo e por isso podia me contemplar.
“Você é o diabo?” Disse a voz errática da criança. Ele não tremia e não dava sinais de que desviaria o olhar. Me aproximo e ele não recua.
“Eu sou Derek e empunho o cetro do rei do firmamento, e ajo em seu nome. Sou Lasombra, rimador da hora tardia e sacerdote do fim de tudo.” Respondo em um tom mental que só os despertos sabiam ouvir. Tento mover meus lábios, mas já não me recordava do processo que formava palavras em carne.
 Eu tinha tanta fome.
“O que quer de mim? Eu juro que não fiz nada” A sobrancelha do olho vazado e os joelhos se levantam. Ele abraça as pernas e apóia o queixo nos joelhos.
“Eu venho em nome do avô de teu avô, que uma dia foi meu aliado. Tenho um dever a cumprir com aqueles de sua descendência.”
Rugidos metálicos ao longe, gaiolas se abrindo e animais regojizando. Uma luz vermelha piscava. Um coração pulsava pela ultima vez. Sangue ralo e sujo era derramado, não longe de mim.
“E...eles vão vir me pegar. Va-Vão  me machucar e e-eu não q-q-quero” A criança chorava agora. Ela não cheirava a medo ou desespero, só mágoa e ódio.
“Você esta desperto. Eles não podem te ferir. A carne é só uma casca.” Minhas palavras não surtiam efeito. Não fosse ele descendente de Tethanon, eu violaria seus pensamentos e o forçaria a entender. Mas eu não podia. Sua mente estava ferida e além do meu alcance.
“E-eu...eu não posso fugir, não tenho pra onde fugir” Negação. A condição natural da mortalidade
“Você não esta preso. Não existem paredes além dos espelhos, e os espelhos se curvam diante daqueles que olham para si mesmos. Não existem muros ou portas ou grades, olhe-se no espelho e entenda o caminho.”
Minhas palavras finalmente o tocam. Seu rosto se levanta e pende para os lados como se estivesse solto do pescoço. O olho bom gira para trás e a língua, suja e fibrosa, escapa pelo canto da boca. Ele baba antes de começar a rir histericamente e ouço passos se aproximando.
“MAS...O ESPELHO...ESTA QUEBRADO”



Continua.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Um instante de presciência

Era tarde e eu estava morto.
Algo havia me abandonado. Algo quente e bonito cujo nome eu já não mais me recordava. Uma pessoa, uma sensação, algo parecido.
Eu tinha tanta fome.
Em minha mente, flashes de momentos não vividos. Dores as quais eu era estranho. Um passado que já não era mais meu. Eu ouvia aqueles que não estavam ali, e eles chamavam com tanta força, gritavam para mim, dentro de mim. Estava tão nervoso.
O posto de gasolina era a neutralidade da insignificância. Eu não sabia dizer se estava ali de verdade. Nada ali, nem minha existência, importavam. Nada exceto ele, que de todo o cardume torpe da casualidade, era o mais bonito.
As portas se abrem em um silvo. Como se nada mais existisse, me ajusto a realidade temporal e as cruzo, invisível aos olhos dos cegos. Ele estava lá, atrás do balcão, um boné vermelho e um avental, um sorriso cansado e noturno, olhos verde e musgo. A sua frente, um casal de argentinos atípicos e barulhentos. Síbilo morte e ambos tremem e choram apavorados por conta de uma abominação que não estava lá. Síbilo doença e eles apodrecem, mudos, enquanto as paredes da alma imortal se partem. Eles, fracos, morrem por dentro enquanto meu escolhido treme de pavor.
Se movimento vagarosamente para trás do balcão. Os estrangeiros encolhem-se em posição fetal e sangram pelos olhos e ouvidos.
O doce aroma adocicado de míngua mental desperta o caçador em mim.
Tenho tanta, tanta fome.  
Posiciono-me atrás de minha refeição. Embriago-me com o  cheiro de seu suor e suplico por um perdão que não existia. Bebo de sua culpa enquanto roubo sua memória. Ouço sua pulsação e entro na sintonia. Ataco. Mato.
Meus lábios mergulham no mar rubro do ser anônimo de minha vítima. Minha língua toca a alma e lambe a culpa. O fluxo do doce vitae me toma e faz de mim o ceifador.
Em minha consciência, um caleidoscópio. Sinto o gosto de cada promessa e vislumbro os futuros agora impossíveis. O corpo enrijece em meus braços e o coração acelera, implorando por uma misericórdia que não existia em mim.
Seco, ele vai ao chão. A ultima batida de seu peito ainda ecoando em meu ser. Pego um maço de cigarros detrás do caixa, ainda torpe pelo calor da vida roubada. Algo sussurra em mim. Torno-me novamente uma ranhura na ferida do universo, invisível aos além do sangue. Observo a tela de cristal líquido enquanto acendo o cigarro. A fumaça escapava de minha magia. Ela flutuava sozinha, desenhando câncer  e apodrecimento na carcaça inerte do mundo morto.
Um novo som. Culpa. Ele é calado por um rugido interno. “Mais”, gritava o eu surdo a mim. Abandono a loja e me dirijo ao horizonte. Algo pesava no fundo do peito. Carregava o gosto de meu amado no fundo do peito e o saboreava. Havia qualquer coisa de baunilha e passado em sua essência.
Afasto os pensamentos com um esforço hercúleo. Concentro-me no futuro próximo. Uma cidade cairia, um príncipe seria decapitado, A Espada reinaria em mais um pedaço fétido do Brasil. Penso nas outras dez mil mortes de outras dez mil noites. Penso em dez mil noites que estavam por vir e em dez mil sabores de mentes e corpos interrompidos.
Algo em mim grita mais uma vez, em rejúbilo. A parte morta de mim estava satisfeita.
E eu tinha tanta, tanta fome. 

quarta-feira, 4 de junho de 2014

A história de amor dos mortos: Espinhos do caminho

- Como tem passado teu senhor, criança?
- Com a graça do sangue, ele está em paz, meu lorde. Já há umas tantas décadas peregrinamos pela terra européia. Teus castelos são muito bonitos.
- São monumentos do tempo. Da fragilidade da existência e da efemeridade temporal do ser. Cada uma dessas fortalezas um dia será pó e cada deus e cada templo, uma marca oculta nas entranhas da terra.
- Eu compreendo...Perdoe-me se soei ignorante. Meu caminho é diferente do teu, lorde rimador.
- Não tive a intenção de lhe ofender e por isso peço perdão. Não cabe a um sacerdote questionar a visão de outro.
A mulher sorriu, sua pele amendoada cintilando a meia luz da taverna incinerada. A guerra havia passado por ali antes dos vampiros, e o pouco que restava do telhado rangia em um lamento seco e febril. O vilarejo como um todo era uma pequena coleção de cinzas e murmúrios sufocados. Em um canto ou outro ouvia-se um pássaro perdido, mas, além das poucas manifestações de natureza quase-morta, tudo era desolação.
Vasantasena ajeitou as longas madeixas escuras por trás dos ombros.
- Viestes até mim quando eu chamei, lorde abismal. Não me deves desculpa nenhuma, qualquer outro que compartilhasse de seu entendimento teria ignorado meu apelo.
Derek, um corpo de sombras e duvidas, moveu-se em duas dimensões para a parede próxima.Tentáculos membranosos apoiaram-se em restos de mesas enquanto borbulhavam incessantemente para dentro de si mesmos.
- Tu és filha de carne de um rei, és filha de sangue de um amigo querido. Malkav, o sábio gentil, fala por tua boca de profeta. Não cabe a mim, sacerdote das meia-noites, ignorar teu chamado.
- E mesmo assim, lorde tenebroso, não me agracias com a visão de tua imagem de carne.
O lasombra concentrou-se por um instante e deu uma quantidade incerta de olhos e bocas a sua forma de horror oblíquo. Ele mudava, regurgitando a matéria escura do abismo na face indefesa da criação.
- Perdoe-me, filha de Malkav. É parte de um rito. Meu cárcere se esvaiu de minha memória. Eu sou treva e espelho agora, sou  o reflexo de meu interior. Muito tem de acontecer para que eu possa retornar a forma de corpo.Não é por má vontade que me apresento em minha pureza, é por dedicação e oração.
Ela sorriu novamente, abraçando a si mesma, como se tentasse agarrar o calor que fugia em desespero.
- Como bem dissestes, não cabe a um sacerdote questionar a visão de outro. Se perdoares minha indulgência, acredito que seja hora de discutirmos assuntos de maior importância.
- Como queiras, Vasantasena.
Os dois discutiram por boa parte da noite e da seguinte, refugiando-se dos raios libertadores do sol no abraço da terra. Vasantasena era versada em muitos assuntos que para Derek eram uma tremenda incógnita. Ela soube do ataque a casa do pai tenebroso, ele soube do mesmo acontecimento, anteriormente,  por Boukhelpos, mas não era conveniente discutir estes detalhes com sua companheira. Por mais que lhe fosse querida, a cria de Unmada ainda era ignorante do grande esquema das coisas, e era melhor que continuasse assim.
Ela lhe contou também sobre a poderosa insurreição dos jovens, da quebra dos grilhões e da traição dos antigos.Lhe contou sobre o perigo que sua pequena corria, sobre as ambições de Adele e a conspiração do jovem Hrotger. Sobre as guerras que estavam por vir e os doces espólios da vitória. Derek, no silêncio que a idade lhe trouxe, ouviu cada argumento e cheirou cada emoção. Ele olhou nos olhos do futuro e perguntou ao abismo mais de uma vez se seus temores estavam corretos.
Em sua maior parte, estavam.
Ao fim de um longo discurso, a exausta Vasantasena tinha os olhos carregados de esperança. Pálida pela fome, ela repousava deitada no chão, com as presas em riste e a túnica umedecida pela relva.
- Virás comigo, lorde Derek, virás comigo para a capela dos espinhos, discursar sobre a liberdade que poderemos conquistar, caso não tenhamos medo de tentar?
- Receio que devo prezar pela segurança de minha cria, estimada amiga. Por mais que eu compreenda a sabedoria de tua oratória, meu dever como sacerdote tem prioridade. 
Ela suspirou, e o ar expelido dos finos lábios arianos desenhou uma curva branca e lenta na noite, fumaça de pulmões mortos condensada na frieza do lasombra.
- Se a Camarilla continuar a existir e os anarquistas forem derrubados, não vai haver um amanhã para seu culto, lorde magistrado. Suplico-lhe, reconsidere sua posição.
Derek, uno com a mortalha da noite, escorreu e deslizou para perto de sua aliada. O levante do corpo noturno carregou consigo o pouco calor que aquela taverna esquecida ainda ostentava.
- Digo que não. Tua rebelião  é parte de um plano e bem sabemos quais serão os frutos dela. É um lampejo na noite escura. A Camarilla é água e a anarquia é fogo. Alimente a chama antes de pô-la a prova.
- Falas de um futuro que pode não existir, lorde da mortalha sem reflexo. Eu olho para a frente e só vejo escuridão.
- Fostes tu de meu sangue, profetisa, eu lhe ensinaria a enxergar no escuro. Mas não posso, pois esse não é o desejo da noite e teu sangue sacro seria maculado por aquilo ao qual você nunca pertenceria completamente. Peço que tenhas paciência. E isso eu lhe prometo, malkaviana, por mais doloroso que seja a principio, teu legado irá perdurar em sangue e guerra pelos séculos que virão.
- Guerra você diz, guerra por aquilo que nos é de direito, guerra para quebrar o grilhão do laço. Por que isso se faz necessário, rimador dos  perdidos? Tu me forneces tua palavra e isso é mais do que eu poderia esperar, mas ainda não me sinto satisfeita. Meu senhor não se conformará com a necessidade de derramamento de sangue e permanecerá com a Camarilla. Todo meu clã irá sofrer e definhar nas mãos dele e dos outros sábios. Mais uma vez meus irmãos serão párias, serão tolos enfeitando salões decadentes de horrores jocosos cujo único propósito é manter a chibata ao alcance da carne pueril de seus filhos e netos.
- Não cabe a mim julgar teu senhor, que é mais sábio do que eu. O que me cabe é reafirmar meu compromisso como teu aliado e defensor. Meu clã irá ao teu auxílio, Vasantasena. Os Tzimisce também. Faça de teu discurso um rugido e inflame o coração dos jovens. O mundo esta mudando e eles tem isso a seu favor. Seja chama nas veias daqueles que por muito tempo contemplaram a efemeridade frágil do cárcere. Por duas vidas de homem eu fui prisioneiro do laço e bem sei que ninguém deseja existir acorrentado. Estarei contigo, não em carne, mas em poder. Vá e sirva seu destino, sacerdotisa. Vá e pense em minhas palavras. É um grande momento e o que me resta cumprir meu desígnio das sombras.
- Elas são o teu lugar, Derek, velho entre os jovens. Tenho uma ultima pergunta, se for conveniente.
- De bom grado lhe oferecerei qualquer sabedoria que possuir, Vasantasena.
- Os velhos de teu clã, como aceitarão os jovens de nosso movimento libertador? Serão eles diferentes dos tiranos a quem nos opomos?
- Eles já estão em guerra, posso lhe garantir. A convenção é a justificativa de que precisam. A revolta é esperada por aqueles que observam. Precisam de um nome, e nenhum é melhor do que o seu neste momento, pois ele carrega sangue real e visão. Fogo e água.
-Sinto que sou mais uma das ferramentas a dispor dos estratagemas dos velhos, meu amigo.
Derek, imerso em noite, sussurrou para longe em sua língua morta. A malkaviana sorriu fechando os olhos e em um lampejo de inconsciência, deixou de resistir.
- Será feito como designastes, lorde  rimador.
- Não tema. A lua brilha da noite escura e trás a visão aos de teu augúrio. Estarei contigo quando chegar a hora.
A malkaviana dormiu e ao som de uma palavra de feitiçaria, absteve-se do mundo de seus sonhos. A  forma de sombras circulou o corpo inerte e, com um ultimo suspiro, fez com que um filete de nanquim escapasse de si e penetrasse as narinas da indefesa Vasantasena.
A noite liquida gerada pela tenebrosidade a envolveu como um manto, protegendo-a dos raios fatais do alvorecer. O lasombra desvaneceu e deixou de ser e estar.
                                                            .         .          .
Verso de minha obra, lampejo de meu poder.

Por ti canalizo o invólucro que do sul transborda.

Herdeiro de minha mácula,  eterno cetro de minha vestimenta de rei do firmamento.

Espelho de minha forma, navegante do mar de Vênus, escudo do segredo da perpétua consciência.

Chamo teu nome e o faço com a mão esquerda, Derek dos caídos, sacerdote dos desauridos.

Onde estiveres, Derek das meias-noites, ouça o chamado daquele a quem és consagrado.

Onde estiveres, filho de meu sangue, saibas que na noite, tudo nos é revelado.

Uma espada. Um caminho.
                                     .                                     .                                      .
Derek detestava a terra dos ingleses. Era um dos poucos lugares que lhe causava alguma reação que não fosse absoluta indiferença. Em sua primeira incursão ele havia encontrado um velho sacerdote gaulês que lhe ofereceu alguma sabedoria, mas além deste encontro ao acaso, tudo naquele reino apertado e fedorento lhe causava asco.
Ele era agora um pássaro feito da matéria negra do não-ser, sem olhos ou som. Suas asas eram diminutas lâminas negras, cortando a esmo o céu europeu. Vez ou  outra ele se dava ao trabalho de mergulhar sobre um cainita descuidado, cobrindo-o com a derradeira manta nanquim e fazendo-o dormir para sempre no aperto abismal.
O sangue era um carcereiro cruel com o Lasombra. Mesmo com pouco mais de seis séculos, mortais não o nutriam. Certamente que seu poder pessoal era maior do que de muitos outros com sua idade, mas ainda assim, era um preço alto a pagar.
Ele pousou sobre a abadia da sagrada coroa e escondeu sua forma com um dos poderes do sangue. O vilarejo dormia no horizonte. “Thorns”. Em sete meses, seu plano daria os primeiros frutos e os assamitas seriam acorrentados.
A Camarilla, em seus seis anos, não podia existir sem contestação. Era preciso que as fogueiras da inquisição fossem alimentadas ferrenhamente, com sangue jovem e escuro, e que os velhos tremessem de medo em seus castelos.
Lasombra reinava no mundo morto, Tzimisce liderava a insurreição sobre a carne de sua cria, Saulot, perdido em seus sonhos, esperava pelo momento de retornar.
Saulot, gentil Saulot. Derek não podia compreender como demorou tanto a entender o estratagema. Muitos de seus aliados mais queridos tinham o sangue sacro dos iluminados, e nenhum deles seria capaz de tamanha manobra por si.               
Seja como fosse, o fim almejado chegaria e o abismo devoraria toda criação.
Derek pensou por um instante em sua cria, em todas as tristezas e sofrimentos que teria que  ela iria suportar, em toda a mágoa que nutriria por ele. Sussurrou um dos nove nomes de Dagon e  clamou por quietude.
Era hora de organizar prioridades.
Sua cria precisava ser protegida a todo custo, logo, a insurreição anarquista precisaria continuar a sobreviver a inquisição e a minar os recursos da Camarilla e de seus recém-conquistados aliados Giovanni. Eles precisavam de números e ideologia. De ritos que os unificassem e ordenassem, de uma hierarquia que nunca fosse enfatizada diretamente e de um punho de ferro que os controlasse sem que soubessem. Um tirano seria tão bom quanto qualquer outro, então, por hora, Gratiano e algum koldun fossem suficientes. Eles precisariam de apoio dos outros clãs e precisariam também manchá-los com sangue Tzimisce. O rito da quebra de laço cobraria seu quinhão.
Depois, seria preciso dar tempo ao tempo e garantir que o esforço de guerra não fosse desperdiçado em meio a intrigas e maquinações de cainitas ambiciosos. Quando a civilização humana esquecesse do valor da heráldica e a nobreza de sangue fosse substituída completamente por posse material, quando a comunicação fosse veloz e o deslocamento de grandes exércitos fosse possível em poucos dias, ele chamaria o poder e inflamaria a paixão nacionalista em um país em pedaços, erguendo ali sua fortaleza. A Espanha seria uma escolha lógica se seu desprezo pela aristocracia pudesse ser mantido nos séculos seguintes, mas ela era uma solução de curto prazo. Quando a lâmina da igreja se tornasse cega, o reino todo ruiria. A Germânia, por outro lado, seria muito mais adequada a esse propósito, caso fosse exaurida o suficiente de seu orgulho e poder.
Sim, a Germânia, em um futuro podre e virulento, em guerra contra o mundo, em ruínas. Ela seria a base final de seu poder e a catalizadora do fim. Sua cria, a pequena Adele, seria rainha no mundo morto e ele, sacerdote dos abortados, teria seu merecido descanso.
A oeste,  em outro país, um lorde Ventrue conspirava com seus asseclas. Eles também sabiam do que estava por vir, e se esforçavam para mobilizar recursos e riquezas para os confins da terra. A Europa estava prestes a se tornar uma gigantesca ferida putrefata na história cainita, e muito precisava ser feito para garantir que algo restasse da convenção.
Em Moscou, uma velha Tzimisce despertou de seu sono com um rugido que calou os céus. Ela chamou a carne molhada da terra para si e tomou forma de cervo. Kella pôs-se a marchar e a matar. Para ela, seria uma longa jornada. Para Derek, mais uma vez perdido na imensidão de seus pensamentos noturnos, seria um eterno embate.
A história cainita estava prestes a se reinventar e ele, lorde rimador, alto sacerdote das meias-noites, seria a força motriz por trás de cada evento. 

Uma espada. Um caminho.


segunda-feira, 5 de março de 2012

Uma alma que sorri, ato V: O deus que desceu ao inferno

Depois de dois dias em que eu estava tremendamente confuso e triste, acordei com o som de vários estranhos entrando em meu cárcere. Eu me levantei para recebê-los, mas golpearam minha cabeça rápido demais e o impacto da arma de choque na minha coxa foi forte demais. Doía pra caramba. Mas o que me incomodava de verdade era eu não conseguir me mexer enquanto um imbecil de jaleco e roupa tática enfiou a agulha no meu braço. Ele esvaziou a seringa, e eu fiquei olhando pra ele, sem entender o que estava acontecendo. Aparentemente, ele compartilhava de minha reação. Meus lábios começaram a formigar, minha visão ficou um pouco turva, e então ele colocou outra agulha no mesmo lugar e repetiu o processo. Eu perdi a consciência e mergulhei em meu sono insone.
Acordei em uma viatura que realizava uma ascendência sinuosa por colinas cheias de flores brancas e azuis iluminadas por um céu de baunilha tão claro que chegava a doer. O cheiro quente e leve daqueles campos alheios ao sofrimento me batia com mais força do que qualquer homem ou deus que já tivesse cruzado meu caminho. Era tudo tão bonito, tão puro, tão intocado, que eu simplesmente não conseguia entender. Eu não sabia o que eu tinha que fazer para roubar o sorriso jocoso de cada flor e de cada nuvem. O ar fugia de meus pulmões enquanto lágrimas azedas lavavam meu rosto. Nenhuma das obscenidades blasfemas que eu já havia presenciado era tão seco, tão bruto, tão tormentosamente cruel.
Não sei bem o que aconteceu. Mais eu queria matar. Queria matar tudo que existia.
Uma cortina vermelha caiu sobre meus olhos, ódio em sua forma mais pura. Quando a consciência retornou, eu estava socando a grade de proteção com tanta força que meus pulsos sangravam. O veiculo estava parado, e eu estava só. Sem algemas, sem mordaça, sem flores.
Eu sai do carro e o que vi me fez gritar de tanto rir.
Era um hospício. Um maldito hospício. Agora sou um louco que precisa de cuidados?
Examinei o perímetro. Ao longe, murou absurdamente altos feitos de lancetas de metal não apresentavam nenhum portão a vista. Haviam três construções ali. Obras de arte da feiura e do mau gosto. Eram grandes, cinzentos, opressores. Centenas de pequenas janelas abrigavam pares de olhos imóveis que esperavam com extrema expectativa por qualquer movimento meu. Eu lhes concedi isso e me movi em direção a construção mais próxima.
Havia um peso estranho em meus pensamentos. Cansaço. Dúvida. Receio. É difícil ter certeza. A baunilha dos céus agora sangrava, em tons de vermelho e púrpura, como se deus estivesse inquieto. Curiosamente, isso não me deixou em paz.
As portas de madeira escura cederam com facilidade. Cupins haviam devorado boa parte do que um dia havia sido um entalhe de algo que eu poderia, na melhor das hipóteses, dizer que era uma serpente, uma balança e algumas outras formas menos reconhecíveis.
Eu entrei em silêncio, e percebi que mais uma vez eu estava sozinho.
Nunca, nunca mais, eu deixei de estar sozinho.

Uma alma que sorri, ato IV: a deusa que me quer

Passei os próximos meses trancado em uma sala de paredes amareladas e feias.
O único contato que tive com outras pessoas neste período eram os guardas que semanalmente retiravam as fezes e os lençóis sujos da cela. Sete deles me imobilizavam a cada vez, permitindo que eu sentisse o calor de seus corpos e o cheiro de seu medo. Eu sorria para eles enquanto minha mente fantasiava a morte e o sexo de cada um. Eles nunca entendiam. Nunca olhavam pra mim. Nenhum deles queria minha sabedoria, e eu nunca – nunca mesmo – vou conseguir entender como alguém pode adorar a ignorância.
Em uma noite particularmente inspiradora, quer dizer, acho que era noite, fazia algum tempo que eu não via o mundo lá fora, homens armados com escudos e cassetetes entraram na sala enquanto outros me prendiam a uma maca. A curiosidade me compelia a testar a rigidez daqueles bastões contra os corpos de meus captores, mas havia pouco propósito nisso. Atravessamos o corredor e em alguns minutos eu vi aquele inferno de gente mais uma vez. Todos gritando, me ovacionando “Seu filho da puta dos infernos”, “Seu monstro maldito”, “O diabo encarnado”, “você vai virar minha puta seu doente”. Ah, sim, o companheirismo entre os encarcerados parecia estar mais forte do que nunca. Senti orgulho disso. Se eu pudesse acenar para eles, eu teria o feito. Mas me contentei em imaginar uma orgia sem precedentes. Em imaginar o horror que o deus dos outros teria em contemplá-la. Sim, era um bom plano.
Minha jornada terminou em uma pequena sala extraordinariamente limpa. Ela era dividida em duas por uma parede de vidro, e de cada lado, havia um telefone. Os policiais me deixaram o mais em pé que podiam, e encostaram o plástico frio do aparelho em meu rosto. E então eu a vi.

Era alta, magricela, loira e feia. Uma daquelas garotas espertas o suficiente para sair da faculdade sem transar com todos os professores e idiota o suficiente pra trabalhar com gente feito eu.
Ela pegou o telefone do lado dela da sala e sorriu pra mim. E por todos os motivos errados, eu a desejei demais.

Ela falava alguma coisa sobre seu interesse em “meu caso” enquanto eu imaginei o sabor de sua língua e o cheiro de sua boceta. Acho que foi ai que eu reparei que eu nunca tinha penetrado em uma mulher. Quando comecei a rir, ela parou de falar.
Eu concordei com o que quer que ela tenha dito e com a caneta na boca, assinei um X na linha que os guardas apontaram.
Quando ela saiu, tentei o máximo que pude decorar as linhas do traseiro dela. Quando me voltei a seu rosto, vi que ela me contemplava. Ela levantou os cantos dos lábios e eu vi covinhas infantis se formando. Era um desafio, um chamado. E eu precisava tê-la.
Eu me senti desejado. E isso foi maravilhosamente perturbador. Eu não sabia o que fazer e isso me atormentava.
Hoje em dia eu já não penso mais nessas coisas. Eu já entendo demais das coisas que ninguém devia saber. Eu sei o que sou, pra ela, pra todo mundo. E deus não se arrepende jamais.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Uma alma que sorri, ato III: o regojizo do deus

Por um breve instante, alimentei um pensamento tolo de que eles iriam entender a piada e que iriam rir comigo. Cheguei a mentalizar seus sorrisos de morte sendo violados por meu pênis. E gostei disso.
Será que um dia eles tiveram um propósito? Ou será que sempre foram sacos de carne e merda que parasitavam este universo como todo o resto lixo em descomposição?
Quando o primeiro me golpeou, estes pensamentos deixaram de fazer sentido. Fiquei de quatro como um animal, enquanto dois deles metiam em minha boca, um terceiro saciava-se com meu traseiro. E os outros nove continuavam a se masturbar, gritando obscenidades que fariam uma das prostitutas do inferno corar.
Seus gritos me deram a convicção de que precisava. Era o momento de morte. Era o momento de matar mais um pedacinho de deus.
Eles não repararam quando o primeiro começou a sangrar. Quando os gritos se intensificaram, eu já havia me tornado um deus a parte, e a matança era minha oração e meu evangelho.
Não sei quando tempo o combate durou. Eu fraturei uma costela e perdi um punhado de dentes. A dor física era grande o suficiente para não fazer diferença. E os onze mortos a meus pés estavam piores do que eu. Sim, onze.
Havia um propósito especial para o negro que tinha uma predileção pela sodomia. Levei a lamina até seu pescoço e ordenei que ele sorrisse pra mim.Ele se mostrou relutante a principio, mas após a pequena incisão peniana ele se mostrou muito mais cooperativo. A cada dente que saltava de sua boca eu sentia minha excitação crescer. Cheguei a pensar se eu ia não ia conseguir aguentar por tempo o suficiente. Mas eu sou maior que deus e o tempo cede a minha vontade.
Quando os guardas chegaram, eles levaram alguns segundos pra entender por que o negro desdentado sorria ao me chupar sobre uma pilha de cadáveres. Ele não conseguia rir muito alto, o sêmen em sua garganta o impedia. Quase chorei ao rasgá-la e ver o esperma avermelhado descer por ela.
Sim – É uma piada triste, se é que essas coisas existem.

Uma alma que sorri, ato II: ser como deus.

As ruas de Frankfurt eram uma piada sem igual.
Enquanto nobres gordos e tementes ao senhor ausente orgulhavam-se de seus carros e livros importados, a multidão de miseráveis orgulhava-se de conseguir roubar o bastante para a próxima refeição.
E quando a noite caia e o calor do corpo lhes era roubado sem preconceitos e sem respeitar a qualidade de seu sangue, eles riam da infelicidade de suas vidas e da banalidade de seus sonhos.
Sonhos eram uma coisa engraçada.
Eu sonhava com um prato de sopa fumegante e com o deus que não me ouvia. Eu queria chamar a atenção dele, queria bater nele até ele sangrar, queria violar seu corpo e ejacular em sua cara só pra mostrar que eu não precisava dele.
Após alguns anos vivendo de lixo e abrindo caminho na cadeia alimentar com as unhas, matei um homem para roubar uma garrafa de vinho e um pedaço de pão. E ai eu descobri que essa era a maneira que eu tinha de desafiar ao deus que a mim era indiferente. Não por que eu precisava disso, mas por que era divertido.
Após matá-lo, eu senti um desejo difícil de explicar. O sangue e os ossos partidos me encantavam como o canto de uma sereia profana e cruel. Eu estuprei o cadáver por horas sem alcançar o clímax desejado. E quando os policiais me algemaram, eu desejei que tudo no mundo apodrecesse e provasse meu esperma.
Quando me trancaram em uma sala imunda com doze indigentes, eu finalmente entendi a piada.
A fragilidade de meu corpo fez de mim um alvo natural. Quando a noite caiu eles se revezaram sem pressa e me estupraram sem elegância ou gentileza. Quando chegou a vez do sexto deles me penetrar, eu já não sentia dor ou ódio. Eu apenas sorria.
Pela manhã um guarda me trouxe um prato de sopa quente e um médico cuidou de minhas feridas. Se eu conseguisse chorar de rir, eu teria o feito naquele momento. Era triste e crú demais para que eu pudesse compreender, se eu não soubesse das verdades terríveis que sabia, eu teria morrido ali mesmo. Acho que o médico estava com medo de mim. Minhas risadas o distraíram enquanto ele mantinha uma distancia segura de mim. Ele não viu quando roubei o bisturi e o alicate. Ou talvez tenha visto e estivesse torcendo por mim.

Quando voltei a cela e percebi o sorriso desdenhoso dos animais que já se masturbavam a minha espera, eu entendi que mais uma vez eu precisava ser como deus. Eu precisava matar sem preconceitos.

Uma alma que sorri, ato I: As chamas que deus me deu.


Uma breve introdução

Saudações.
Engraçado como inspiração vem e se esvai aleatoriamente. As vezes passamos horas reunindo conceitos, pensamentos, citações, verbos e adjetivos para acabar com uma obra mediócre em mãos.
E outras vezes pensamos em algo tão simples, mas tão simples, que não chegamos a dar valor. Até que temos a caneta\teclado em mãos e quando percebemos já estamos escrevendo a horas e temos um romance de horror puro e uma ode de adoração a crueldade e a insanidade que assombra os cantos mais reclusos de nossa mente. O personagem desse conto surgiu assim.

O que era inicialmente um npc secundário que seria o sire de uma de minhas queridas jogadoras acabou despertando meu interesse por seus pontos de vista curiosos e pela brutalidade de sua existência. Acabei me apaixonando por ele e criando uma monstruosidade tão terrivelmente instável que ao final do texto eu já não tinha mais certeza se tinha escrito tudo aquilo sozinho.

Meus sinceros agradecimentos a minha querida Bárbara V.C. Pelo lampejo de inspiração de mais uma de minhas aberrações que agora vão passear pelas ruas de Munique trazendo o sofrimento do outro lado do espelho consigo.

Boa leitura.
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Ato I: As chamas que deus me deu.

O fato é que tudo é uma grande piada de qualidade altamente questionavel.
Sim, todos as nossas festas e nossas matanças podem ser resumidas em um único trocadilho indecente daqueles que se ouve em um bar de fracassados em uma daquelas noites feias e sem sentido do meio de abril.
Criamos desculpas ridículas e tratados científicos patéticos para fugir da mediocridade que nos cerca. Quando ouvimos as noticias do jornal sobre o holocausto ao vivo ou sobre a criança que se prostituía para comprar as drogas que a salvariam dela mesma, usamos a mordaça da moralidade para afastar a verdade inconveniente. Mas no fundo de nossas almas podres, sabemos que estamos rindo. Que não sentimos culpa. E adoramos isso.

Meu pai ria histericamente quando minha mãe me expulsou do ventre quente que me abrigava. Ambos riram emocionados quando chorei pela primeira vez e choraram de rir quando aprendi a falar "merda".
Meu pai sorriu quando encontrou minha mãe chupando seu irmão. Ele gargalhou freneticamente quando ejaculou na boca dos dois cadáveres. Aposto com qualquer um que ele estava sorrindo quando colocou o cano da espingarda na boca e puxou o gatilho. Ele entendeu a piada, e depois que isso acontece, não há mais muito o que fazer.
Para as crianças do orfanato, cada surra e cada lição da biblía era motivo para grande regojizo. Vez ou outra passávamos noites inteiras nos divertindo, comparando o tamanho do pênis de cada sacerdote e sua eventual predileção por nossa boca ou nosso traseiro. Alguns garotos mal comportados tiveram todos os dentes arrancados para que pudessem desempenhar melhor seus funções. As vezes me pergunto se existe algo mais cômico do que alguem que sorri sem dentes.

Meus amigos também se divertiam descontando sua frustração em mim. Eu não era mais forte, mais rápido ou mais bonito, era apenas alguem que via tão pouco propósito em resistir as agruras de uma existência vazia que não fazia questão de protestar. Nós rimos sem parar durante todos os estupros, todas as surras e toda a humilhação. Era nosso ópio, nosso escudo.
Rir não é o melhor remédio, mas as vezes um sorriso cheio de dentes tortos e podres é melhor do que mais uma noite de lágrimas e dor.
Eu tive certeza de que eu estava destinado a compreender a piada quando comecei a prestar atenção no que os padres diziam na capela. Somos todos pecadores, somos culpados involuntários por toda nossa desilusão. Todos os pecados levam ao inferno, e no inferno, não existe esperança.
Quando eu quis acreditar em deus – Sim, eu quis acreditar em deus – Eu soube que eu não estaria a altura de seus parâmetros.
Mas eu tentei. Tentei impressioná-lo com meus braços de criança e com minha capacidade de mascarar a dor. Como deus, eu incendiei Sodoma. Como deus, eu matei pecadores. Com um galão de óleo, um lençol sujo e um palito de fósforo, eu levei a dor e a desgraça aquela casa de tentações. Embora eu tenha consciência de que os risos de morte de meus companheiros de estupro nunca vão abandonar minha mente, eu não guardo mágoas e não nutro arrependimento.
Se deus acreditasse em mim, tenho certeza de que ele teria ficado orgulhoso.