terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Um instante de presciência

Era tarde e eu estava morto.
Algo havia me abandonado. Algo quente e bonito cujo nome eu já não mais me recordava. Uma pessoa, uma sensação, algo parecido.
Eu tinha tanta fome.
Em minha mente, flashes de momentos não vividos. Dores as quais eu era estranho. Um passado que já não era mais meu. Eu ouvia aqueles que não estavam ali, e eles chamavam com tanta força, gritavam para mim, dentro de mim. Estava tão nervoso.
O posto de gasolina era a neutralidade da insignificância. Eu não sabia dizer se estava ali de verdade. Nada ali, nem minha existência, importavam. Nada exceto ele, que de todo o cardume torpe da casualidade, era o mais bonito.
As portas se abrem em um silvo. Como se nada mais existisse, me ajusto a realidade temporal e as cruzo, invisível aos olhos dos cegos. Ele estava lá, atrás do balcão, um boné vermelho e um avental, um sorriso cansado e noturno, olhos verde e musgo. A sua frente, um casal de argentinos atípicos e barulhentos. Síbilo morte e ambos tremem e choram apavorados por conta de uma abominação que não estava lá. Síbilo doença e eles apodrecem, mudos, enquanto as paredes da alma imortal se partem. Eles, fracos, morrem por dentro enquanto meu escolhido treme de pavor.
Se movimento vagarosamente para trás do balcão. Os estrangeiros encolhem-se em posição fetal e sangram pelos olhos e ouvidos.
O doce aroma adocicado de míngua mental desperta o caçador em mim.
Tenho tanta, tanta fome.  
Posiciono-me atrás de minha refeição. Embriago-me com o  cheiro de seu suor e suplico por um perdão que não existia. Bebo de sua culpa enquanto roubo sua memória. Ouço sua pulsação e entro na sintonia. Ataco. Mato.
Meus lábios mergulham no mar rubro do ser anônimo de minha vítima. Minha língua toca a alma e lambe a culpa. O fluxo do doce vitae me toma e faz de mim o ceifador.
Em minha consciência, um caleidoscópio. Sinto o gosto de cada promessa e vislumbro os futuros agora impossíveis. O corpo enrijece em meus braços e o coração acelera, implorando por uma misericórdia que não existia em mim.
Seco, ele vai ao chão. A ultima batida de seu peito ainda ecoando em meu ser. Pego um maço de cigarros detrás do caixa, ainda torpe pelo calor da vida roubada. Algo sussurra em mim. Torno-me novamente uma ranhura na ferida do universo, invisível aos além do sangue. Observo a tela de cristal líquido enquanto acendo o cigarro. A fumaça escapava de minha magia. Ela flutuava sozinha, desenhando câncer  e apodrecimento na carcaça inerte do mundo morto.
Um novo som. Culpa. Ele é calado por um rugido interno. “Mais”, gritava o eu surdo a mim. Abandono a loja e me dirijo ao horizonte. Algo pesava no fundo do peito. Carregava o gosto de meu amado no fundo do peito e o saboreava. Havia qualquer coisa de baunilha e passado em sua essência.
Afasto os pensamentos com um esforço hercúleo. Concentro-me no futuro próximo. Uma cidade cairia, um príncipe seria decapitado, A Espada reinaria em mais um pedaço fétido do Brasil. Penso nas outras dez mil mortes de outras dez mil noites. Penso em dez mil noites que estavam por vir e em dez mil sabores de mentes e corpos interrompidos.
Algo em mim grita mais uma vez, em rejúbilo. A parte morta de mim estava satisfeita.
E eu tinha tanta, tanta fome. 

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