Era tarde e eu estava morto.
Algo havia me abandonado. Algo quente e bonito cujo nome eu
já não mais me recordava. Uma pessoa, uma sensação, algo parecido.
Eu tinha tanta fome.
Em minha mente, flashes de momentos não vividos. Dores as
quais eu era estranho. Um passado que já não era mais meu. Eu ouvia aqueles que
não estavam ali, e eles chamavam com tanta força, gritavam para mim, dentro de
mim. Estava tão nervoso.
O posto de gasolina era a neutralidade da insignificância.
Eu não sabia dizer se estava ali de verdade. Nada ali, nem minha existência,
importavam. Nada exceto ele, que de todo o cardume torpe da casualidade, era o
mais bonito.
As portas se abrem em um silvo. Como se nada mais existisse,
me ajusto a realidade temporal e as cruzo, invisível aos olhos dos cegos. Ele
estava lá, atrás do balcão, um boné vermelho e um avental, um sorriso cansado e
noturno, olhos verde e musgo. A sua frente, um casal de argentinos atípicos e
barulhentos. Síbilo morte e ambos tremem e choram apavorados por conta de uma
abominação que não estava lá. Síbilo doença e eles apodrecem, mudos, enquanto
as paredes da alma imortal se partem. Eles, fracos, morrem por dentro enquanto
meu escolhido treme de pavor.
Se movimento vagarosamente para trás do balcão. Os
estrangeiros encolhem-se em posição fetal e sangram pelos olhos e ouvidos.
O doce aroma adocicado de míngua mental desperta o caçador
em mim.
Tenho tanta, tanta fome.
Posiciono-me atrás de minha refeição. Embriago-me com o cheiro de seu suor e suplico por um perdão
que não existia. Bebo de sua culpa enquanto roubo sua memória. Ouço sua
pulsação e entro na sintonia. Ataco. Mato.
Meus lábios mergulham no mar rubro do ser anônimo de minha
vítima. Minha língua toca a alma e lambe a culpa. O fluxo do doce vitae me toma
e faz de mim o ceifador.
Em minha consciência, um caleidoscópio. Sinto o gosto de
cada promessa e vislumbro os futuros agora impossíveis. O corpo enrijece em
meus braços e o coração acelera, implorando por uma misericórdia que não
existia em mim.
Seco, ele vai ao chão. A ultima batida de seu peito ainda
ecoando em meu ser. Pego um maço de cigarros detrás do caixa, ainda torpe pelo
calor da vida roubada. Algo sussurra em mim. Torno-me novamente uma ranhura na
ferida do universo, invisível aos além do sangue. Observo a tela de cristal
líquido enquanto acendo o cigarro. A fumaça escapava de minha magia. Ela
flutuava sozinha, desenhando câncer e
apodrecimento na carcaça inerte do mundo morto.
Um novo som. Culpa. Ele é calado por um rugido interno.
“Mais”, gritava o eu surdo a mim. Abandono a loja e me dirijo ao horizonte.
Algo pesava no fundo do peito. Carregava o gosto de meu amado no fundo
do peito e o saboreava. Havia qualquer coisa de baunilha e passado em sua
essência.
Afasto os pensamentos com um esforço hercúleo. Concentro-me
no futuro próximo. Uma cidade cairia, um príncipe seria decapitado, A Espada
reinaria em mais um pedaço fétido do Brasil. Penso nas outras dez mil mortes de
outras dez mil noites. Penso em dez mil noites que estavam por vir e em dez mil
sabores de mentes e corpos interrompidos.
Algo em mim grita mais uma vez, em rejúbilo. A parte morta
de mim estava satisfeita.
E eu tinha tanta, tanta fome.
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