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segunda-feira, 21 de abril de 2014

A história de amor dos mortos: prelúdio para uma viagem noturna

Derek sempre sentia que estava esquecendo de alguma coisa que para alguém vivo seria muito importante.
Ele atravessou a rua da metrópole como se nada mais existisse. Invisível aos mundanos, cada cheiro e cor lhe era uma lembrança dolorosa.
Munique era velha e, como todas as coisas vivas, estava morrendo.
“Eu acredito no ódio” Lhe disse sua pequena companheira improvável. Os amantes não vistos pararam por um instante em uma grande praça aberta, de mãos dadas, escolheram um banco protegido das luzes mecânicas da noite e ali permaneceram, Adele no colo de seu senhor.
“ Acredito que já debatemos a respeito em um século passado, minha criança.” Sua voz soou mais melancólica do que ele desejava. Gotas de nanquim sangravam na realidade próxima e as flores apodreciam gritando horrorizadas.
“De fato, meu amor. Na terra dos gregos, quando encontramo-nos com a Helena. A rosa velha. Ela disse-me que somos paixão e fome,  discordastes e fizestes de nossa estadia uma lição. Afirmastes que eramos egoísmo e carne, que a paixão de nosso vício era uma manifestação negativa de algo que fomos quando vivos, caçadores, e que os séculos nos moldavam tanto quanto permitimos. Hoje eu descordo do senhor.”
Derek ponderou. Seus olhos se fecharam e uma voz morta lhe sussurrou pedaços de insanidade. Ele a calou com um abano dos dedos e desejou que houvesse treva.
O pequeno espaço foi tomado de assalto pelas vísceras pretas do mundo caído. A pouca vegetação que resistiu a presença profana da criança morreu gritando. Não havia  som e tempo, e o antigo finalmente sentiu-se em paz. Ele tocou a mãozinha diminuta de sua amada e beijou sua orelha. Ela se eriçou e se esticou, seus cachos dourados roçando o queixo fino do ancião.
“Você diz que somos ódio por ele parecer natural a nossa essência, criança minha. Quando assume tal fato me leva a pensar em um dualismo torto e romântico, em que tenhamos um oposto exato de amor. Creio que isto seja muito improvável. Poucos de nós de fato melhoram ou pioram com o tempo. Deixados alheios a nossas filosofias, permanecemos estáticos, por mais cruéis ou viciosos que sejamos. Criamos os caminhos ou somos levados a eles em uma tentativa desesperada de fugir da estaticidade aterradora de nossa maldição peculiar. O culto ao sangue, a carne, a noite... Cada um tem suas promessas, mas sabemos que, no fim, fomos nós que criamos uma ordem hierárquica de leis e tradições que mantiveram nossa sanidade e integridade ao longo dos séculos. A chama humana de nossos inimigos, o que seria se não uma negação de nosso eu interior, o ‘self’ daqueles judeus esquisitos dos livros que você tanto ama?”
Adele sorriu e apertou a mão de seu senhor. O toque suave lhe trouxe memórias de outros tempos, de todos os anos malditos que passaram distantes por todos os motivos errados do mundo.
“Creio que não me expressei adequadamente, meu Derek.” Uma pequena pausa, um comando mental para um escravo em outro continente. “Acredito no ódio por que é ele que sinto em mim quando chamo o poder. Em algum momento eu fui uma criança oca, um pedaço de um nada. Esses judeus esquisitos que tanto desprezas tem teorias das mais interessantes a esse respeito. Somos moldados pelo meio, enquanto vivos, enquanto mortos, temos a perda deste molde  de forma gradual, e o definhamento não é atenuado pelas filosofias de morte, como dissestes, ele é disfarçado. Você se lembra do nome de sua mãe de carne? Certamente que isso foi importante um dia. Certamente que teu ofício de sacerdote e teus muitos invernos de abismo lhe tomaram essas memórias preciosas. Quando eu era jovem, você me confessou que sua mãe lhe deu um cobertor  em uma noite cruel, e que isso acabou matando-a. Por muitas noites, eu rezei escondida, agradecendo sua mãe por isso enquanto dormia em seus braços. Você teria me repreendido se eu tive lhe confessado isso na época, não? Mas estou divagando, perdoe-me. Sua mente é invulnerável a tudo exceto a seu próprio ego. Você escolheu esquecer dessas coisas, e escolheu não esquecer de mim. Você escolheu esquecer das cores do mediterrâneo para que pudesse se maravilhar com elas novamente caso viajássemos juntou outra vez, e escolheu não esquecer jamais de alguém que um dia lhe feriu, mesmo que tenha o destruído em uma era que o tempo engoliu. O mundo não se recorda de Naboslav, o cruel, mas Derek, meu sacerdote, o mataria mil vezes mais porquê isso satisfaria seu ego, mesmo sendo uma negação do caminho. Você, como eu, é amor e ódio, meu Derek, pois estas são as únicas verdades que nos mantém sãos.”
Derek desvaneceu e se fez noite. Seu ser uniu-se a treva conjurada e a engoliu, e ele tornou-se um ser líquido de sombra e horror. Adele seguiu os passos do mestre e tornou-se, também, o espelho do mundo morto.
Ele era uma coisa fria e pavorosa. Uma enorme massa surreal de tentáculos e bocas, com duzias de dentes serrilhados e opacos, e mais surgiam a cada segundo. Ela, por sua vez, era uma boneca monstruosamente  oblíqua, uma criança da noite feita de um breu profano que caçoava das amarras de toda a criação.
A consciência de Derek rugiu além das grades do universo e ao levante de sua voz uniram-se os rangidos das correntes que prendiam deuses abortados na aurora da criação.
“Somos noite, criança. Somos pavor. Você e eu não podemos nos prender as leis e conceitos daqueles menores do que nós. Você é minha rainha e eu sou seu sacerdote. Eu sou a apoteose com a noite e este é seu destino. Todos os jogos e sorrisos e discursos são menores do que a verdade do abismo e bem sabes. Eu sou o cetro do rei do firmamento, você é a  coroa. Não há filosofias ou artes maiores do que nós e bem sabes.”
Derek borbulhou e retomou seu corpo. Mais uma vez, estava nu na noite. Sua amada logo o seguiu, seu vestido delicado pairando sobre a carne macia com duzias de lacinhos vermelhos.
“Adoro quando você fica assim, Sire” Ela sorri e as covinhas de seu rosto trazem um suspiro aos lábios de Derek. “Sabe que não entendo dessas coisas nem metade do que você e que eu juro que já tentei. Você me disse pra esperar o tempo certo, me disse isso já fazem uns quinhentos anos, nunca argumentei. Eu fiz os ritos mesmo quando estávamos longe e eu me ocupei com outras mil coisas. Sei que muito de meu poder vem disso e sei que o senhor me explica tanto quanto pode. Mas as vezes acho que ainda me falta algo fundamental. Eu sinto falta de cada parte humana de mim, e cada vez que jogo esses jogos tolos, me sinto bem. Quando minha templária escova meus cabelos, eu me sinto bem. Quando o senhor me beija e quando navegamos por mares tranquilos, me sinto bem. Não peço que entendas, mas desejo que o senhor não me julgue. Isso pode ser feito, meu Derek?”
“Teu desejo é meu caminho, minha Adele.”
Ele se aproximou lentamente, abrindo os braços suavemente e então envolvendo a criança. Os dois permaneceram abraçados por um longo momento.
“Eu senti sua falta, meu Derek. Você sempre foi tudo de humano que existia em mim. Sempre vai ser. Por mais blasfemo que seja, a noite não é maior do que o afeto que sinto por você. Você me deu amor e ódio, quer admita isso ou não. Entende meu ponto agora? Somos maiores que o ego, somos a feitiçaria profana que nos manteve unidos mesmo depois de tudo.”
Derek se recordou de uma batalha antiga ao lado de uma aliada rancorosa. Em momentos perdidos, ele se sentiu pequeno e frágil. A chama humana queimou-lhe a carne a cada noite que passou longe de sua amada criança.
“O que sou, sou por você, no abismo. Eu não sei mais odiar, minha Adele, mas sei amar. Este é meu propósito na existência, é estar a seu lado. Nossa feitiçaria é uma ferramenta para um fim, e o fim é mais claro agora. Somos um do outro e este é o sentido do ser.”
Ela intensificou o abraço, dedinhos frágeis e brancos uniram-se e tornaram-se rosados pelo esforço. Derek sentia que seu universo inteiro estava a lhe abraçar.
“Será que a velha rosa ainda existe? Eu gostaria de rever a terra dos gregos. Tio Boukhelpos também costumava passear por lá. Talvez devêssemos viajar mais, meu senhor. Tenho tanto a te mostrar.”
Derek ponderou por um instante. Helena há muito havia se escondido. Mas ele sabia onde encontrá-la. O cheiro do sangue era forte naquela terra, mesmo de linhagens tão esquecidas. E quanto a Boukhelpos, sim, seria agradável encontrar o velho guerreiro. Sua ultima conversa havia sido em uma floresta escura da Africa, enquanto caçavam a prole de Montano. Certamente que havia muito o ser aprendido com o filho do tenebroso.
“Teu desejo é nosso caminho, minha querida”
“Vamos parar em meu reino. Preciso lhe apresentar minha templária, é uma criança adorável que passou décadas ouvindo seu nome. Creio que ela tem muito a aprender com o senhor.”
“Será feito. Mas receio que eu precise de um mapa escrito em Latim para planejar a rota. E sem computadores, querida. Eles estão além de minha compreensão.”
“Eu posso cuidar disso, amor meu. Estava me perguntando se você admitiria que odeia computadores.”
O sorriso sarcástico da criança confundiu o Lasombra tremendamente. Ele se sentiu feliz e, por mais de um instante, vivo. Pensou em palavras de poder e desejou uma jornada tranquila. Pensou nos lábios de sua criança e nos beijos que trocariam em lugares perdidos e envelhecidos. Pensou no profeta louco e nas visões que compartilhariam. Pensou em Kella e se certificou de que ela estava morta e enterrada.
“Talvez tenha razão, minha querida. Mas não da maneira que imagina. Eu nunca ofendi um computador. São eles que me odeiam e ofendem. Juro que nunca os provoquei.”
“Existe uma ironia deliciosa nisso, Derek meu. Você já destruiu civilizações por elas terem me ferido, mas é incapaz de vencer um inimigo que não tem braços ou dentes. Entende que precisa mudar?”
“Eu juro que tento” Disse, incomodado, o atônito Derek.
“Daremos um jeito nisso em breve. Será a mais desafiadora das lições que já tive, tenho certeza.”
“Prometa ser paciente, minha cria.”
“Prometo que não matarei nada no treinamento”
Sorrindo, os dois amantes ofuscados deslizaram pela treva, devorando a vida que encontraram no caminho. Adele, feliz por estar sendo, pela primeira vez, a mestra, e Derek, confuso como nunca esteve antes.
Ao longe, um corvo grasnou anunciando a chuva vindoura. O corvo mudou de forma e se segurou desajeitadamente no parapeito. Aisha rastreou o antigo por quase três décadas, e agora finalmente sabia do destino dele.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A história do amor dos mortos: Uma noite de doença


O vampiro deslizou pela janela com graciosidade, em um salto calculado atravessou os três metros que o separavam do chão e aterrissou com suavidade. A imundice da cidade o golpeou com força , tomando de assalto suas narinas e fazendo com que o aristocrata desejasse não possuir o olfato tão aguçado. Ele observou o feudo vagarosamente, e usando uma velha técnica que seus irmãos de armas chamavam de “contar os corpos”, ele mentalizou o número de casas, distinguiu aromas e calculou quanto tempo conseguiria se manter no pequeno vilarejo.
Infelizmente, não era muito tempo. Quatro meses, no máximo. Depois disso ele teria que abandonar seu pequeno anjo aos caprichos do destino.
O vampiro afastou o pensamento agourento concentrando-se em seu objetivo imediato. Apesar de sempre sonhar com o dia em que voltaria a fazer jorrar vitae de almas condenadas, ele sabia que neste momento não era apropriado. Ele via pouco mais do que trinta casas acabadas e tomadas por um tapete branco e opressor. Seriam os germânicos tão avessos ao pai inverno?
Não havia uma única pessoa fora de casa, nenhuma vela acesa, até mesmo os lobos agora desfrutavam do sono comatoso que só o frio do norte pode trazer.

Fazia muito tempo que o vampiro não caminhava livremente por um vilarejo. Era uma sensação desesperadora, especialmente para ele, acostumado a ser o centro das atenções sempre que deixava a máscara cair.
A máscara. As vezes ele esquecia disso, e pessoas tinham que morrer. Esta era a lei desde os tempos de seus avós – silêncio ou morte final.
E este era o maior perigo. Se algum de seus irmãos de danação considerasse o plano dele ofensivo, ele facilmente seria condenado a prestigiar o nascer do sol. Sim, seu amor pela garota era perigoso e blasfemo em mais de uma maneira – e este risco tornava o esperança de triunfo ainda mais entorpecente.

A passos largos, a fome crescia. Fugir do mar azulado dos olhos de sua amada lhe custou mais vitae do que ele havia contabilizado para aquela noite. Ao passar pelo quartel arruinado imaginou quantas patéticas desculpas para soldados ali dormiam. Meia duzia, talvez ainda menos.
“Será que eles vão ser o suficiente para livrar este pedaço gelado do inferno da anemia de meu beijo?”

Não – mesmo que fossem seis duzias de homens de fé, eles não teriam chance. A fome o compelia a ser sempre mais forte, a ser o eterno carrasco das pobres almas que cruzavam seu caminho. Era difícil conviver com isso. O vampiro tinha consciência de que era um assassino e de que mataria tudo aquilo que aparecesse em seu caminho se tivesse a oportunidade, ele não possuía respeito algum a existência alheia e mais de uma vez fez escreveu longos tratados sobre a morte da alma nos mansos de seus irmãos de armas.
E lá estava ele, desesperadamente apaixonado por uma pequena flor de carne, um anjo triste que podia encontrar seu sono de morte a qualquer instante, pouco mais do que uma boneca de porcelana na mão do mais cruel dos carrascos, o tempo.
Ele avisou um casebre do outro lado da rua, um abrigo baixo e sujo de madeira e barro. O teto fora pintado de branco e era impossível saber se as flores ao lado da porta eram rosas ou crisântemos. A neve não deixava de ser irônica.
Levantando um leve sorriso, ele encostou a bochecha pálida na porta e se concentrou nos sons que mortais nunca conseguiriam ouvir. Conseguiu distinguir sem dificuldade que haviam ao menos sete pessoas no único comodo da casa, possivelmente uma família inteira. Ele empurrou a janela para a esquerda calmamente e sem dificuldade alguma entrou na casa. O arrependimento veio um segundo depois, e ele quase chorou ao ouvir a besta gritar.
O ar da doença distribuía sua graça sem preconceitos no berço dos recém-nascidos. As duas crianças que dificilmente tinham mais de um mês de vida carregavam na face as manchas vermelhas que eram o sinal do fim. A peste estava chegando, e ela não pouparia ninguém. Sobre a cama de palha, haviam duas mulheres idosas, um homem jovem esquelético e duas meninas que deveriam ter a mesma idade de sua amada. Eles não tinham cobertas ou casacos para espantar o frio, também não tinham comida sobre a mesa ou lenha para criar o fogo libertador. E todos eles, em maior ou menor grau, estavam doentes. O vampiro moveu-se cautelosamente, controlando o impeto de matança, e abriu a boca de uma das velhas. Os poucos dentes que lhe restavam estavam podres e amarelados, e a língua tinha um aspecto cinzento e asqueroso. Ela não sobreviveria aquela noite.
Ele se perguntou sobre qual seria o procedimento adequado, e, sem obter uma resposta clara, orou ao deus do abismo que não o ouvia para que a sabedoria de sua senhora lhe tomasse por apenas um segundo, que ele tivesse o lampejo de inspiração necessário para trazer luz as trevas da alma cansada.
Aparentemente, Tchernobog não o ouviu.

Talvez a família ainda resistisse a meia duzia de noites, mas este tempo seria mais do que o suficiente para que a febre rubra se consumisse todo o feudo. Há quanto tempo será que eles sofriam em silêncio? Seriam as pessoas deste lugar maldito tão indiferentes a ponto de não perceber que a morte estava a espreita?
Ele conhecia a sensação, e não se orgulhava disso. A fome destrói o coração dos homens.

Ele levantou uma das meninas pela cintura, sentindo uma estranha dor tomar seu peito. Ela era loira, magra e frágil. Uma mancha escura repousava sobre seu pescoço e descia pelo seio em formação. Ela suspirou baixinho, um gemido doloroso e doente. Derek segurou sua mandíbula com o polegar e o dedo médio, e em um gesto carinhoso, puxou a arcada dentária com gentileza e força. O sangue ralo começou a escorrer generosamente, e em poucos segundos, ela estava morta. O vampiro a deitou no chão frio e beijou sua testa.

"Morte gera morte."

Ele chamou a noite profunda e ordenou que as trevas destruíssem em silêncio e que elas levassem os cadáveres consigo. Sete braços negros e famintos se levantaram e envolveram pescoços e peitos, apertando com toda a determinação do mundo morto. Após doze segundos dolorosos, Derek abandonou a casa e retornou ao castelo com pensamentos sombrios e verdadeiros. A peste poderia se expandir e devorar a todos neste fim de mundo, e se ele se alimentasse de qualquer um, a doença iria se propagar por seu beijo para todo o sempre. E então Adele morreria, seu mundo morreria e seu sonho se perderia em meio a solidão.

Ele se sentou no chão, ao lado da criança, e segurando sua mão diminuta, ele chorou. 

A história do amor dos mortos: Um ato de mágoa simbólica

Derek sorriu sem jeito enquanto sua companheira removia seu punho de dentro da caixa torácica do traidor recém abatido.
"Giangaleazzo, escória antitribu, una-se ao abismo em nome de Caim, do Sabá e da casa das sombras" Disse o vampiro com a habitual rispidez romântica e teatral.

"Acho que estamos ficando velhos demais pra isso, meu amigo". Disse Kella.

"Acho que estamos velhos demais pra essa guerra estupida a pelo menos nove séculos". Respondeu o Lasombra.

Eles se entreolharam, concordando em um silêncio triste e verdadeiro. Ela espalmava o sangue sujo e os pedaços de ossos podres com asco e indignação, todos os cinco olhos cinzentos da metamorfista estavam perdidos em pensamentos distantes, malignos.

"Com todo o respeito, Lorde Derek, posso lhe perguntar qual foi o motivo que levou esta criatura que agora se encontra a nossos pés a trair seu clã, aliar-se a Camarilla, caçar seus filhos e irmãos e tentar converter nossa estimada Adele?"

"Eu não tenho estas respostas, Kella, e sinceramente não me importo com nada disso. Ele é um traidor, um conspirador e um inimigo. A morte final o alcançou por isso, e agora Milão irá queimar e mais uma vez vai pertencer ao sabá."

"Você nunca foi um bom mentiroso."

Ele abaixou a cabeça e ordenou que as sombras formassem um machado em suas mãos, a lâmina fria e negra maculou a realidade daquele instante de silêncio doloroso, e os dois velhos continuaram a caminhar. Ela retomou a conversa após um curto incidente que envolveu dois ônibus de turistas, algumas viaturas, um nosferatu confuso e excessivamente confiante e quinze braços do abismo.

"Eu não compreendo. Lutamos um pelo outro desde o tempo em que os dragões de sangue forte assombravam os sonhos dos camponeses de nosso manso e mesmo assim eu não te compreendo."

Derek parou e tentou calcular alguma resposta confortável, sem muito sucesso. Ele deslizou as costas das mãos sensíveis pelos cabelos longos e grossos de sua companheira, e então beijou demoradamente a bochecha espinhenta e ossuda da Tzimisce.
Cada centímetro do corpo profano de Kella havia sido desenhado com carinho pela caneta de um poeta louco. Os seios rosados e fartos, a cintura fina e assexuada, as pernas felinas e magras, os braços cheios de esporas pontudas...Cada detalhe foi estudado e aperfeiçoado por séculos de determinação  inquebrável. Ela era, afinal, uma das mais antigas e poderosas guerreiras do clã e casa do leste, uma das mestras do sabá e a ponte fundamental entre os metamorfistas e a velha guarda do clã. O lasombra a respeitava e admirava mais do que ele era capaz de explicar, não só pelo poder da idade e da taça, mas pela lealdade e confiança que só os seculos de dores e mágoas compartilhadas são capazes de dar.
Ela ficou visivelmente chocada com a súbita demonstração de afeto e algo dentro de sua pele draconiana e escamosa tremeu quando os sete espinhos das costas ficaram eriçados e hesitantes.

"Sinto muito." Disse o vampiro em um tom anormalmente alto "Acho que deixamos nossas almas apodrecerem por tanto tempo que as vezes esquecemos que um pequeno gesto de amor pode dar sentido ao que não tem sentido. Nós estamos morrendo há muito tempo e sabemos disso. Você tem seu ofício de carne e eu tenho minha obrigação como sacerdote, mas todas as noites, quando o sol esta prestes a esmurrar nossa cara, sabemos que estamos morrendo e que tudo que nos resta é um eventual ato de amor."
Durante todo o resto da noite, eles não trocaram uma única palavra. Enquanto soldados de carne e bandos menos importantes vigiavam saídas e aeroportos, os misticos do clã das sombras do norte sitiaram uma capela e pilharam tomos de conhecimento e magia que muitos julgaram estar para sempre perdidos. Os Tzimisce de sangue ariano conduziram exércitos de cães do inferno e carniçais guerreiros pelos esgotos, auxiliados por muitos olhos e orelhas anonimas, eles varreram seis ninhadas com o conhecimento que a vida imunda do subsolo pode lhes dar.
A unica  resistência efetiva veio por parte dos Giovanni, que lutaram clamando por seus mortos e seus ritos obscenos. Don Pietro foi destruído, bem como sua esposa, filhos, e os filhos de seus filhos. Nada pode resistir por muito tempo a fúria de dois matusaléns magoados.

O sol já irradiava seus primeiros raios dolorosos quando Derek conduziu sua companheira pelo abismo de volta para o refúgio ancestral em Moscou. Ao fim da viajem, Milão mais uma vez era a capital do sabá na Itália.

Os dois vampiros foram acariciados gentilmente pelo doce frio da fortaleza subterrânea. Há duzentos e cinquenta anos o santuário do Lasombra protegia os segredos mais terríveis da mãe Rússia, e a pelo menos cento e cinquenta ele era também o refugio e o laboratório de Kella. Eles se sentaram sobre a tampa de um dos quatro caixões de pedra e permitiram que a letargia diurna lhes tomasse o corpo. Instantes antes do beijo de Morpheus, A Tzimisce chiou e suspirou as palavras que lhe roubaram a mente durante toda aquela noite de conquistas dolorosas.

"Tudo aquilo que amei, amei em Caim e na metamorfose. Hoje acho que não sei mais amar. O que realmente nos resta, meu amigo?"

"Acho que se em algum momento aprendemos a amar de verdade, isso se foi com o sangue. O que nos resta, como eu disse, são eventuais atos simbólicos."

Derek Chamou as trevas e em um gesto teatral e solene, envolveu sua companheira em seus braços antes de deitar-se sobre a pedra fria. No abraço dos mortos atormentados, não havia um só pensamento ou suspiro. Eles estavam cansados e estressados demais para chegar a qualquer conclusão sobre seus próprios sentimentos atrofiados.

Em outro lugar e em outra noite, a cria pródiga de Derek ordenou que seus assassinos atacassem dois bispos da cidade do México. Ela queria acabar com aqueles conflitos inúteis, com aqueles Lasombra  inúteis, e com aquela regente inútil. Ela não era a mais forte, nem a mais velha e possivelmente não era a mais adequada para assumir o controle do Sabá. Mas era um risco necessário.
A rainha das cortes de sangue estava prestes a iniciar seu plano mestre, e ao final disso tudo, ela poderia despedaçar o peito e o orgulho de seu senhor só pra mostrar a ele que ele estava errado quando disse que abraçá-la foi o maior dos erros e que os dois nunca deveriam ter feito a jura que jamais conseguiriam cumprir.
No fundo de seu coração negligenciado, ela sabia que este era o amor que só os mortos sabiam cultivar, a história de séculos de ódio e paixão dilaceradoras que consumia a vontade e condenava ao inferno cada um de seus pensamentos.
"É por você, meu sire, que levarei a espada a seu peito. É por minha devoção a você que te destruirei, farei isso chorando, e estarei chorando por tudo aquilo que nunca conseguimos ser."

A história estava chegando ao fim. A história de amor e morte que só aqueles que se apaixonam por todos os motivos errados sabem contar.

Adele chorou naquela noite, e Derek a acompanhou inconscientemente. Naquela noite fria e sem sentido, uma Tzimisce confusa travou um combate terrível contra si mesma e fez uma promessa em nome de tudo aquilo que que já não lhe significava mais nada.
"Vou matar vocês dois antes do fim, e vou gritar aos quatro malditos ventos o quanto sou grata a cada um de vocês por me ensinarem o caminho da metamorfose e o caminho do coração."

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

História de amor dos mortos - Um conto sobre o fim



Os dois antigos contemplavam o céu de Atlanta serenamente. As nuvens carregadas indicavam a tempestade vindoura, e as sirenes estridentes das ambulâncias e viaturas davam um tom especial aquele inferno de concreto.
O bispo Eilert removia as cascas das infindáveis feridas amareladas de seu rosto, que estouravam em um pus rubro e gosmento que com certa dificuldade movia-se pela face entrincheirada do Nosferatu. O companheiro dele não era muito mais atraente.
Hrotger tinha o nariz pontudo e esponjoso que pendia sob os lábios inchados e sem cor. Por todo seu corpo, protuberâncias escuras e molhadas davam a ele o aspecto de uma vítima terminal da praga negra. Seus olhos verde musgo contrastavam ferozmente com sua forma monstruosa. Eram de uma selvageria tão grande que mesmo inquisidores de determinação inferior não ousavam contemplá-los. Talvez fosse o par de olhos mais valioso de todo o sabá, afinal, foram eles que contemplaram os sinais que o profeta mais antigo do clã traçou na própria carne antes de ser tragado pelo fogo dos obuses russos. Eles guardavam os segredos que o Priscus não revelaria a ninguém antes dos antigos se levantarem.

Hrotger observou a miriade irritante de arranha céus cinzentos que se estendia a sua frente, e mentalizou a destruição de centenas de casas coloniais inglesas. Aos poucos, o panorama em sua mente deu vida a carros feios, lojas inúteis e a uma infinidade de mortais igualmente inúteis. Em seguida, prédios grandes, aeroportos, corporações, e todo lixo que fazia a humanidade feder da maneira peculiar que só eles conseguiam. Então ele imaginou fogo e trevas correndo pelas ruas e devorando tudo em seu caminho, imaginou seus tataravós despertando e fazendo com que o precioso império de vidro que os filhos de Abel levaram séculos para construir ruísse em uma única noite.

Este era o conforto cruel do ancião. Se a espada de Caim falhasse e o mundo morresse, ele morreria sorrindo.

Eilert limpou a garganta, tentando inutilmente quebrar a concentração de seu companheiro. Era difícil entender o que se passava na cabeça dele, não só por ele ser mais forte e mais velho do que boa parte dos vampiros que ele já viu, mas por que ele já ouviu do próprio falecido cardeal Monçada que os pensamentos de Hrotger pertenciam apenas a ele mesmo. Não havia magica ou poder do sangue que pudesse invadi-los. E essa era uma das principais razões pela qual o mais rancoroso dos mortos havia conservado seu lugar por tanto tempo.
O bispo se levantou e olhou para a rua que estava a dezenas de metros abaixo deles. Curioso como as duas limousines paradas em frente ao enorme complexo empresarial não chamavam atenção alguma. Ele chegava a ter raiva disso. A duzentos anos atrás, um cainita tinha que ser muito esperto para sobreviver a fúria implacável dos caçadores. Hoje em dia só era necessário um celular e meia duzia de bajuladores.
Hrotger levantou o indicador ossudo e o pousou sobre uma taça que nem de longe parecia conter vinho. O liquido era de um vermelho escuro e vivo que parecia extremamente insatisfeito em ser mantido no carcere de vidro. O Nosferatu traçou giros irregulares na taça com extrema lentidão antes de arremessá-la ao asfalto. Eilert não protestou, e em segredo lamentou pelo infortuno destino do pobre Tzimisce que havia desagradado o Priscus por todos os motivos errados.
- Sabe, meu querido bispo, não entendo a estima que vocês americanos tem por soldados desobedientes. A voz do antigo soou rouca e baixa. Um chiado desanimado proferido por um leão que tinha consciência de que a morte era próxima. Ele continuou – Em minha antiga casa, e que Satã a consuma, teríamos esfolado esta patética desculpa para um guerreiro Tzimisce exatos dois segundos após ele faltar com respeito a seu lorde.
Eilert chiou baixo, prevendo mais uma conversa desagradável com o velho.

-Responderei a esta pergunta, vossa excelência, se o senhor me responder qual é o motivo pelo qual os antigos de nosso clã tem um desprezo tão grande pela América.

Hrotger assentiu calmamente, enquanto inspecionava a mente dos pombos da janela próxima.
Não eram espiões. Não ainda. Com um comando mental ele ordenou que os sete pássaros gordos sobrevoassem o perímetro da cidade e lhe trouxessem um relatório sobre as ações de cada um de seus batedores.
-Você cria concepções errôneas a meu respeito, meu bom Eilert. Não nutro nenhuma mágoa especial por este pedaço de terra. Eu o odeio como odeio todos os outros recantos de imundice deste universo condenado.
Não havia nenhuma alteração em seu tom de voz ou em seus olhos, mas mesmo assim, o bispo sabia que ele estava mentindo. Sim – havia muito espaço na alma do vampiro para odiar, mas este lugar ocupava um lugar tremendamente especial no coração negro do Nosferatu.
Era até compreensível, dependendo do ponto de vista. O velho nunca havia feito questão de sair de sua casa ancestral, nunca havia pedido pelo status que lhe foi conferido e em nenhum instante de sua não-vida ele desejou travar uma guerra que, aos olhos dos verdadeiros mestres do sabá, era tremendamente fútil.
-Então o senhor não nutre nenhum ressentimento por estar longe de sua casa?
O velho tentou lembrar-se de como era o processo que fazia seus pulmões crescerem e se contraírem, gerando um suspiro. Ele não conseguiu.
- Permita que este velho lhe conte uma história desagradável, meu querido bispo. Ela começou quando uma vagabunda feriu meu orgulho e fez com que eu desejasse a morte do mundo, ela continuou quando uma outra vagabunda fez minha pele derreter e esculpiu minha face nisto que você observa agora. Anos mais tarde, eu vi o fogo que saia da igreja queimando uma das meretrizes junto com os únicos três seres da criação que eu aprendi a respeitar. Séculos mais tarde, veio a convenção dos espinhos e eu cuspi na cara de Von Bauren e sua corja de filhos da puta, me voltei para Vasantasena e com a orientação dela defini o que hoje os jovens chamam de Sabá. Pareceu ótimo na época, mas a falta de controle de qualidade me faz acreditar que foi a pior empreitada de que já participei. Assinei tratados, conquistei cidades, derrubei governos, estuprei príncipes e primógenos.
Eu vi linguagens nascerem e morrerem, vi fés inteiras sendo destruídas. E acredite, me envolvi diretamente em mais de um destes acontecimentos. Eu presenciei o apodrecimento de cada uma das maravilhas perversas dos últimos oitocentos anos. Me diga, boa criança, existe algo que eu possa sentir além do ódio?

Eilert se contraiu, irritado. Ele esperaria ouvir uma história assim de um toreador choroso, não do mais respeitado dos mestres Nosferatu do sabá. As histórias sobre o poder e a crueldade de Hrotger eram tão numerosas quanto as cabeças que ele já havia posto na ponta da lança. E lá estava ele, se lamuriando pelo vitae derramado pelos séculos.
Uma pontada de dor desconfortável atingiu-lhe a têmpora. Então ele percebeu o quanto fora estupido. O mestre do clã dos ocultos estivera em sua mente o tempo todo. O bispo abaixou a cabeça em reverencia, esperando pelo golpe que inevitavelmente sorveria lhe a vida. A reputação da disciplina rígida de Hrotger só não maior do que sua predileção pela Diablerie. No entanto, houve uma surpresa.
-Retire-se, meu querido bispo, sua lição virá no tempo certo.
Sem exitar, Eilert abandonou a sacada.
Os pombos retornaram, trazendo noticias de peões e inimigos. Uns poucos “anarquistas” foram destruidos (“eles poderiam aprender um ou dois truques com os Tzimice”, pensou o antigo), mais ou menos uma duzia de mortais foram “recrutados” (“e ai está uma coisa que poderiam aprender com os Lasombra”), um brujah idiota virou pó ao levar doze tiros enquanto defendia um bando de jovens pichadores da “opressão policial”. Em um instante particularmente inspirador, Hrotger recordou o processo que gera um suspiro.
Ele fechou os olhos e tentou se lembrar de cada um dos malditos motivos pelo qual ele estava naquele pedaço do inferno. Eram muitos, e todos começavam com o nome dela.

“Adele, sua vagabunda, juro por meu sangue que antes do fim vou cuspir em seu cadáver.”

Ele sabia que não ia. Mas era uma jura agradável de se fazer. Ele não tinha nenhuma notícia dela há pelo menos cinco décadas, e isto era o suficiente para deixá-lo ainda mais deprimido do que de costume.
A verdade é que ele estava cansado demais pra continuar essa guerra ridícula. O único propósito pelo qual ele derrubou anciões e conquistou metade da Espanha foi mostrar a ela o quanto ele era forte e o quanto ele não precisava dela. Ele arrancou a cabeça de vinte príncipes só pra gritar bem alto “estou melhor sem você!”. Mas nada disso bastou. Ele ainda sentia falta daquilo que nunca teve.

O nosferatu estendeu a mão ossuda e apertou uma das aves até que se tornasse uma massa vermelha de penas e ossos, as outras aves se agitaram e fugiram desesperadas, o velho levantou-se e observou o voo desordenado dos animais.
“Vocês são mais espertos do que o sabá desse fim de mundo, e tem mais chances de sobreviver também.”

Mais uma vez, Hrotger teve ciência de que ia morrer rindo. Rindo de todos esses patifes, destes malditos jogos de poder, do Sabá, da Camarilla, de todo esse lixo patético que o fazia considerar seriamente a possibilidade de se jogar da sacada todas as noites. Ele olhou pra baixo mais uma vez. Não, não era alto o suficiente.
Ele estava cansado demais. Cansado de todas as noites dar as mesmas ordens ao mesmo bando de patifes só pra ver quem ia esfaquear quem em troca de contratos e assinaturas. E tudo isso pra que?
Pra que a rainha das cortes do sangue descesse do maldito trono e lhe desse um tapinha nas costas?

A noite estava acabando, e a paciência dele também. Ao entrar no apartamento, que poderia, na melhor das hipóteses, ser descrito como “rudimentar”, ele teve uma ideia.

Era hora de contar aos lideres o que ele sabia. De espalhar o caos e a destruição, de iniciar o banho de sangue que despertaria os antigos de seu sono. Guerra – era isso que ele precisava fazer. Dane-se a Camarilla, dane-se o Sabá, dane-se o maldito planeta.

Ele tirou o telefone do gancho e com repudio discou os números que jurou a si mesmo que nunca mais discaria.

Após um único bipe, ele disse:
- Lorde Derek, eu tive uma visão. Precisamos conversar.



domingo, 29 de janeiro de 2012

Derek - Uma breve lembrança do pesadelo de inverno, ato I

Naquela tarde profana, o sopro do avô inverno entoava o réquiem para os caídos com uma notoriedade especial. 
Quantos guerreiros haviam sido abatidos no ataque? Era difícil ter certeza, principalmente por que os vampiros não ligavam para estes pequenos detalhes.
A ordem do voivode tinha sido clara. “Sem prisioneiros”, falhar significaria meses de punição nas caprichosas garras do demônio do leste. Não era uma possibilidade agradável.
Os quatro mortos se entreolhavam em silêncio, esperando o retorno de seu batedor.

“Quanto tempo esperaremos pelo relatório?” Disse o que parecia ser o líder dos mortos.

“O suficiente, meu irmão” Respondeu Derek, enquanto se aproximava de porta de uma igreja em chamas.

“Quantas vezes eu já lhe disse que não és meu irmão, criança! Somos soldados a serviço do mestre, e eu sou seu maldito líder, é só isso.”

Ele avançou, cansado da insubordinação do cainita desgarrado. No caminho, pegou o corpo de uma criança empalada e puxou os ossos de suas costelas para criar uma maça, rasgando carne e veias sem discernimento.

“Agora vou te ensinar a respeitar seus superiores!”

Os outros dois vampiros, Arshak e Heind, não moveram um músculo. Os longos invernos de morte haviam lhes ensinado a respeitar cada um dos caprichos de seu lorde. Derek também não reagiu.
O Tzimisce segurou a haste de osso e carne com as duas mãos monstruosas, e saltou sobre seu adversário com impeto e ódio. A besta rugia e exigia sangue.
Com toda a calma habitual, Derek calculou sete formas de contra-atacar, dois segundos antes da conclusão do golpe, ele descartou a todas elas e, com um passo de dançarino, desvencilhou-se para a esquerda.
O demônio amaldiçoou seu inimigo, e gritando, girou os braços furiosamente e estocou o ar. Derek não estava mais lá.
Arshak e Heind sacaram as espadas e ordenaram que o sangue fortalecesse o corpo. Nenhum deles possuía a segunda visão refinada o suficiente para enxergar o mando de trevas de seu adversário.
Os três vampiros se reuniram, Arshak foi o primeiro a falar.
“Pelo que sabemos ele pode se esconder até a Gehenna devorar a todos nós, meu senhor.”
Heind puxava os ossos para fora das costelas, visivelmente perturbado pelo combate.
“Ele não é covarde, meu amigo, é apenas alienado demais com essa história de 'um sangue em Caim'.”
“Pro inferno com a filosofia dele” disse Esme, o líder. “Quero os malditos testículos desse verme nos portões de nosso manso.”
Ele sinalizou para que os três se separassem e procurassem por qualquer sinal do vampiro. Foi um erro fatal.
Há poucos metros dali, debaixo da sombra da cruz, Derek observava a tudo com absoluto desinteresse. Eles eram estúpidos, brutos. Fingiam ter respeito por seus mestres e tradições, mas estavam tão consumidos por sua besta que mal conseguiam se lembrar da tradição que os acorrentava ao solo da mãe Rússia.
Ele entrou na igreja arruinada, concedendo a si mesmo a luxuria de esquentar seu coração com determinação sobrenatural na casa do deus porco. Muitos camponeses fugiram para o refugio do filho do carpinteiro no início do ataque, e por algum motivo misterioso, a cruz e o sacerdote foram de pouco uso perante a sede dos quatro mortos.
Por todos os campos, bancos quebrados abrigavam pilhas de corpos cuja fé foi despedaçada e a vida extirpada. Os seis homens mais velhos da vila foram crucifixados de cabeça para baixo, sua carne para sempre profanada em nome da vontade imortal do mais cruel dos Voivodes.
“Meu amado mestre, será que isto é realmente necessário? É preciso exaltar o poder da carne e do chicote com tamanha crueldade?”
O vampiro se aproximou do altar, cobrindo a boca com a mão, por um instante, chegou a pensar que não seria capaz de contemplar a obra de arte blasfema que seus companheiros criaram.
O padre do vilarejo estava deitado sobre o altar de pedra, seu peito aberto ostentava um coração que ainda batia em soluços frágeis e irregulares. Seu intestino havia sido costurado a suas costas, formando uma cruz esponjosa e úmida. Logo ele morreria intoxicado pelas próprias fezes.
Ceifar-lhe a vida neste instante seria um ato de clemência?
Era difícil ter certeza. Derek era, acima de tudo,um assassino. Seu mestre anunciava aos quatro ventos que ele era “a mais faminta lâmina que já tive em meu salão de armas”. Afinal de contas, quantas centenas de inimigos já caíram perante seu poder? Bastava um comando do mestre para que ele levasse a espada até os confins da terra mãe.
Mesmo assim, a cada vez que ele matava, algo definhava e apodrecia dentro dele – sim, a cada vez que ele atendia a um dos sórdidos caprichos do Voivode, sua alma morria um pouco. Ela estava enclausurada, doente, mas ele não podia abandoná-la.
Esme entrou no santuário, cuspindo nos corpos em desprezo a fé do deus de seus inimigos. Derek observou-o calmamente. Ele tinha pouco mais de dois metros de altura, todo seu corpo era coberto por uma carapaça quitinosa repleta de poros gangrenosos dos quais escorria um líquido viscoso e escuro. O elmo de osso era arqueado e críptico, dando ao vampiro um aspecto alienígena e selvagem. Seu braço direito era uma espada pontuda e cheia de farpas, e no braço esquerdo, ele carregava um enorme escudo branco e vermelho feito de pessoas.
“Por acaso pretendes se esconder para sempre, verme? Saiba que posso sentir toda a imundice emanada de teu sangue inferior! Logo terás o mesmo destino da meretriz que -”
Antes de concluir a frase, Esme conheceu a desagradável sensação de ter as pregas vocais separadas do pescoço. O demônio se contraiu ao sentir o sangue espirrar torrencialmente, sua voz, antes imponente, agora era um chiado patético e amargo. Um instante depois, Derek contraiu o punho e acertou o demônio no plexo solar, a força do golpe foi o suficiente para arremessar o Tzimisce
Derek acariciou a garganta de Esme, e lentamente sorveu o sangue que lhe tingia os dedos. Ele desceu pela garganta com dificuldade, era amargo, seco. Puro sangue russo. No peito do vampiro, a besta urrou por mais e Derek contorceu a face rosnando. Ele sabia que não conseguiria resistir.
Arshak e Heind tentaram entrar, mas sabiam que não era sábio. Nada ficava entre o abutre de Novgorod e sua presa.
Abaixo dele, Esme resistia como podia, ele fez com que o sangue que lhe sobrava curasse as feridas, mas ele não foi o suficiente para devolver-lhe a carne perdida. Após um longo e desconfortável minuto, Derek falou:

“Perdoa-me, mestre, dono de meu coração e minha alma condenada. O sacrifício que lhe ofereço é pequeno e bem sei que sua sede é insaciável. Como fez nosso avô, este humilde servo agora ceifa o ramo podre da arvore gloriosa de tua linhagem. Que a morte deste desgarrado sirva de exemplo a teus filhos queridos, e que nenhum deles desonre a tradição sagrada da terra e do sangue. Perdoa-me pai pois falhei em discipliná-lo enquanto havia tempo, castigue-me pai, pois sei que mereço punição por meu erro.”

O vampiro sentiu as presas crescerem dentro da boca. Era hora de matar.
“Perdoe-me, meu irmão.”

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A história do amor dos mortos: Um breve preludio para os séculos de danação.

Olá leitor. 
Primeiramente, peço perdão pela ausência de postagens. Determinados assuntos do coração (assuntos não médicos do coração) tem me mantido distante da caneta e do caderno. Venho aqui postar o início de uma nova história, que surgiu como um teste a minha habilidade e uma declaração há uma pessoa querida. 
Eu queria escrever um romance entre um vampiro e uma mortal que conservasse todo o horror e a mítica inerente de nosso amado RPG, e acredito que o que vou postar a seguir é um ótimo início. E o vampiro? Bem, ele não brilha, ele mata, ele profana, ele destrói. Ele também é egoísta e orgulhoso ao extremo. E ele esta apaixonado.
Nos últimos anos tenho encontrado uma dificuldade absurda pra personagens que seguem a trilha da humanidade (pois é...), esta é mais uma tentativa.
E a garota?
Não sei bem, não sou eu que estou desenvolvendo a história dela.
Sim - o desenvolvimento desta história será uma obra em conjunto com uma amiga querida. Que alguns de vocês sabem quem é. Outros não. Eu não ligo.

Confira o inicio da história dela aqui.

Agora, a pergunta que muitos tem me feito nos últimos dias. Em algum momento eu terminarei uma de minhas histórias?
É bem possível, mas não tenham pressa. Eu particularmente não tenho. 
Boa leitura.

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Há quinze anos atrás, o vampiro se sentiria extremamente culpado em executar o plano que sua mente concebeu.
Afinal de contas, o que sobrava para aqueles como ele, além da culpa?
Ele envolveu-se no manto da ausência com o cuidado habitual, e com deliberada lentidão aproximou-se de sua protegida.
Deus – como machucava olhar pra sua forma de criança. Ardia na alma pensar no tempo que ainda os separaria. Mesmo para ele, imortal como todos os malditos, era difícil conciliar a ideia de que uns tantos anos ainda o separavam das caricias dela.
Pacientemente, ele ajoelhou-se ao lado da cama, separando com toda a calma do mundo as infindáveis cobertas de seda. Pela alvura da pele, ele sabia que ela estava faminta – e que esta era apenas uma das provações que ela iria passar até o dia fatídico da vida em morte e da morte em sangue.
Cada um dos cachos dourados tinha a suavidade de uma nuvem brincalhona, e a maneira como estavam dispostos ao acaso fez com que o vampiro imaginasse constelações que ele sabia que ela jamais veria.
O leste longínquo, terra dos demônios que ele chamava de irmãos.
Será que ela gostaria das praças e dos rios congelados de Novgorod? Dificilmente. Lá era tudo tão frio e tão morto que o simples pensamento de expor sua amada aos caprichos dos Voivodes lhe trazia sombras ao sorriso.
Ele observou os lábios finos por um instante, e a besta urrou em seu peito. Seus ombros tremeram e sua consciência cedeu.
Quando ele despertou, levou dois longos segundos para se recuperar do choque obsceno. Seu dedo indicador agora repousava sobre a boca da menina, proporcionando-lhes uma curvatura pecaminosa que lhe enchia de desejo.
“Tão macia. Tão frágil. Como seria fácil me atar mais uma vez ao inferno só pra tela essa noite”
Não - A besta deve ser combatida.
Sua mão tremeu levemente quando ele tentou removê-la, e, em instante de surpresa, a garotinha moveu a língua e massageou levemente o dedo do vampiro.
Por um instante, ele deixou de estar morto. O vagalhão no intimo fez com que suas pernas tremessem e seu coração bateu outra vez. Indefeso perante a carícia, ele fez com que a falange deslizasse pelos lábios de algodão uma, duas, três vezes.
E então ele percebeu que ela estava com os olhos abertos.
Seu coração parou outra vez, e um frio desconfortável e alienígena tomou conta de sua barriga. Ele chamou pelo sangue e moveu-se mais rápido do que o tempo, com um salto exagerado, jogou-se para o outro lado da cama, aterrissando com as trevas e a elas unindo seu corpo. Quando ela não se moveu, ele se lembrou do quão estupido ele era.
Ele havia convocado o manto da ausência. Quais seriam as chances de uma criança sonolenta enxergar além do poder do vitae?
Era um pensamento tolo e desesperador. Vitae.
Será que ela algum dia entenderia as proporções draconianos que separam seus universos? Será que ela o perdoaria pelo beijo rubro que ela receberia em seu leito de morte?
Era inútil pensar nisso.
Morte gera morte, e miséria adora companhia.
Sim – companhia, esta era a ânsia de sua alma solitária. Alguém que conseguisse conviver com a crueldade dos dons de Caim. Alguém que ele pudesse chamar de sua. Alguém que seria como aquela que ele perdeu.

A simples mentalização de sua senhora deixou-o deprimido e abatido. Era hora de caçar.