sábado, 25 de julho de 2015

Noites Inquietas: Um breve prelúdio

Era julho de 1945 e Os Três meditavam no salão de guerra.

Haringoth, Martelo do Norte, vestia sua pesada armadura noturna e repousava
sobre tentáculos de treva. Os três meditavam no conselho de sombras. Sua face era a de um
cadáver pálido e ossudo, ele não tinha cabelos e seus olhos eram fossos negros e
apodrecidos. Ele era um guerreiro de uma nobre linhagem do clã e casa das sombras, e era
o mais jovem ali presente.

Verminal, Mãe de Monstros, carne da danação e podridão da existência, era a manifestação
do sonho de um louco. Ela não tinha olhos, mas tudo via, não tinha braços, mas a tudo tocava.
Ela era uma massa pegajosa de ossos pueris e protuberâncias cancerosas. Havia uma boca em algum lugar
seu corpo, que constantemente sibilava palavras de poder em línguas perdidas. Era velha e cheirava
a sal.

A terceira, pequenina e frágil, era a união de tudo que havia de vil e cruel no mundo.
Adele, campeã das cortes de sangue, filha do Rimador, nobre de sangue e nome. Tinha cabelos
cacheados e dourados, olhos brilhantes e púrpura e trajava um delicado vestido funerário.
Ela morreu quando tinha dez anos, coisa que aconteceu uns tantos séculos atrás.

Ela não projetava sombras.

Ela não sorria.


Haringoth, inquieto, estalou o pescoço em um giro lento e teatral. Quando abriu a boca,
sombras cativas fugiram de seu hálito. "Meus exércitos queimam lá fora para lhe comprar
essa oportunidade, irmã. Não a desperdice."

Sua voz era fria e carregava consigo a força de um clã. Escuridão líquida escorria de
seus olhos e mesclava-se as carnes magras do rosto criando uma pintura mórbida e senil.

Adele, caminhando em linha reta nas pontas dos pés, com os braços abertos, equilibrava-se
em um jogo infantil. "Irmão meu, alguma vez eu falhei em manter minha parte da barganha? A hoste
será levantada uma vez mais, fortalecida pela pureza e força de nosso Sabá. Nós já vencemos. Você verá."

Verminal gargalhou.

Ao longe, algo morria gritando.

 *****

 Andrew era jovem e sofria de terríveis crises nervosas.

 Era também um dos lideres de guerra mais competentes que o sabá já abraçou.

 Ele estava apoiado entre as vigas do teto de  um prostibulo que fora parcialmente destruído durante os bombardeios a Berlim.

Abaixo dele, sete soldados russos violavam uma mulher alemã. O Brujah estava faminto e ferido. Havia sido
atingido por um morteiro no confronto da noite anterior, pouco depois de enfiar as duas mãos
na garganta de seu senhor e abri-la horizontalmente.

Andrew se concentrou na dor e ordenou que ela o deixasse. Esperou por um instante de silêncio e deixou as mãos se soltarem.

Mergulhou e matou.

*****

Ele teve um nome uma vez. Teve também uma família e sonhos e essas coisas que gente tem.

Não mais.

Ele era agora uma parte quebrada da grande verdade. Carne nos caldeirões mentais dos mestres.

*****


As sagradas fogueiras queimavam por toda Alemanha.

Hardestadt havia caído e a torre de marfim agora era uma pálida lembrança de um inimigo
outrora tido como imbatível.

O sacerdote iniciava o cântico, banhado no sangue de mortos inocentes.

"Dagon, noite escura, manta minha, consagro a ti essa vitória, consagro a ti a chama do Sabá, consagro a ti a morte do mundo"

Dagon, morto e enterrado, sorria. O sacrifício era bem vindo e o sacerdote teve seu pedido atendido.


*****


quinta-feira, 9 de julho de 2015

O guardião de meu irmão

Meu ofício de sacerdote me trouxe até você. Afinal, não sou eu o guardião de meu irmão?

Chamo a treva e faço dela minha veste. Abandono o corpo e mergulho em pensamento. Sou uno com a singularidade que habita os espelhos dos caídos.

Clamo pelo poder invocando uma palavra morta e alcanço a visão. Uma criança esta sozinha e sua mãe esta sofrendo. A mãe sofria por não mais saber sentir e a criança chorava por ter fome e frio.

Extendo meus braços infinitos e toco ambas em realidades as quais elas eram alheias. O sangue se manifesta na mãe, protegendo pensamentos pesarosos e desejosos proibidos.
A criança, indefesa, treme e se encolhe. Eu e a vejo e a beijo e a conforto.

"Tú que és negra em sua semente, que sentou-se a minha mesa e bebeu de minha taça, por que choras? Acaso não se recordas que comungastes com a vontade do rei do firmamento? Tudo que tua alma alcança lhe pertence, pequenina, tudo que teus olhos de artífice imaginam existe em seu interior. Eu sou teu sacerdote, sou seu guardião, e ofereço-lhe minha mão direita. Aceite-a e venha até mim, e juntos questionaremos tuas trevas a cerca de teus tormentos. Tua vontade é soberana em teu corpo. Tú que és mais viva do que eu, levante-se e aceite meu convite."

Ela se agita, confusa. Seus olhos estavam manchados de vermelho e ela soluçava. Eu não sabia mais soluçar ou chorar. Eu estava completa e verdadeiramente morto, uno com a verdade que se esconde atrás dos espelhos.

Joan se levanta, trêmula e nua, e começa a caminhar pelo velho refúgio. Ela virá até mim com seu silêncio e sua mágoa, virá até mim com o amor que sente por minha doce irmã, e eu ouvirei, como sempre faço. Eu a ouvirei e pedirei ao abismo pela sabedoria necessária para servir a minha fiel.

Tomo forma de carne e ordeno que o sangue me aqueça. A fome ecoa em mim e mentalizo antigos campos de romaria. Penso nas grandes mortes e nos festins de carnificina de meus dias de jovem aprendiz.
As fogueiras dos rituais certamente que ainda ardiam, para outros pastores e outros rebanhos, e todos eles sentiam-se tão frágeis e despreparados para a guerra vindoura quanto eu.

A maçaneta gira e a porta de meu templo se abre. Chamo por Dagon por instinto e a luz que havia em mim morre gritando. Minha irmã entra, abraçando a si mesma e clama por meu nome.

Eu respondo criando uma tábula de treva ao lado dela e dizendo "Deite-se, irmã, deite-se e me conte o que te aflige."

Ela obedece. Todos sempre obedecem. Minha vontade não pode ser questionada em meu templo. Ela fecha os olhos e descansa seus dedos entrelaçados por sobre suas pernas lisas e pálidas.

"Perdoe-me por interromper sua meditação, Adalbrecht. Sinto-me confusa e não sei como proceder."

Sua voz era de uma docura doente. Leve e bela como só os jovens sabiam ser. Mordo meus lábios e umedeço as pontas de meus dedos no sangue quente da ferida. Na testa de minha protegida, gravo a runa de Phobos.

"Acaso não sou eu teu guardião, criança?"

Ela começa a falar e eu me faço vontade e oração.

Vestido de festa




Sou forma e movimento. Um eco na carne do firmamento.

Faço-me títere e início o rito. Eu costurava restos de condenados e almejava presentear nossa estimada criança com um belo vestido.

Imagino que ela tenha dificuldade em compreender a magnitude de meu trabalho, e quanto me é custoso esculpir algo que reflita uma carne que eu nunca toquei. Mas é um ritual e rituais precisam ser honrados.

Removo as omoplatas de um bebê mortal com uma carícia. Os ossinhos estalam e se contorcem, eram como manteiga derretendo sobre meus dedos. Ele geme e seus olhos se apertam, incapaz de entender e sentir. Obstruo suas narinas e lábios com pontos em xis e o sangue em meus dedos pinta-lhe a face. Em segundos os pulmões começam a falhar e espasmos suaves o tomam de assalto.

"Obrigado por me conceder sua doce carne, invólucro mortal"

Beijo sua testa e me ponho a devorá-lo. Seu sangue limpo e fino correndo por mim em uma torrente libidinosa de desejos rubros e libertadores. Seu coração cede com gentileza e o embalo em meus braços.

Frio, inerte, tranquilo.

Removo suas pálpebras em um puxão e agradeço-o mais uma vez antes de abandonar o corpo e me dirigir as outras doze crianças em que trabalharia naquela noite.

Perto de mim, o manequim ossudo e quente começava a tomar forma. Armazeno a pele roubada em uma de minhas bocas e faço de minhas unhas garras curvadas. Imagino o produto final e retorno ao trabalho.

Irmã, doce irmã, ficarás satisfeita com meu presente? Será ele a altura das expectativas que nutres? Será ele digno de cobrir sua forma imaculada quando a hora do rito chegar?

Veiga e sua tempestade

Você é o sussurro sublime que anuncia a tempestade, meu amor, é o clarão em minha alma no instante do eco do primeiro trovão que rompe o mar noturno.

Eu, pecadora e culpada que sou, nada posso fazer além de contemplar sua forma doce e frágil, seus olhos disformes e sua inocência estuprada.

Sim, meu amor, roubei de ti tua mortalidade, para lhe dar a eterna singularidade de navegar comigo pelo mar negro do tempo.

Não peço perdão e não imploro por compreensão. Eu não sei sentir culpa. Eu não sei sentir nada que não seja você e me nego a implorar por qualquer coisa que não seja um gemido seu.

Minha Joan, minha criança, minha amante, seja minha nesse instante disforme de dor e libertação, seja minha em minha perversão, seja minha bonequinha indefesa em meu vício cruel e impar. Prove-me e desafie-me a dar mais e mais de mim até que eu seja uma casca seca, oca e debilitada, incapaz de qualquer suspiro que não seja carregado pela lembrança de teu doce aroma.

Você compreende, amor morto meu, como é custoso para mim te pertencer?
Você nunca me compreendeu, nunca sentiu o que eu senti. Nunca soube o que era estar verdadeiramente exposta em toda sua banalidade. E nunca vai saber, meu amor, tranquilize-se, eu lhe protegerei para todo o sempre.

É para mim um esforço hercúleo te tocar. Sua pele rompe meus dedos e faz a besta rugir em mim. Quero seu sexo e quero sua alma, quero te possuir com tudo que há em mim, mas em mim só a morte e dor e mágoa e tormento.

Temos que sempre existirá um vazio em meu peito por saber que você nunca saberá o que significou pra mim ter você comigo. Você, que é bela e jovem e viva de mil maneiras que eu nunca fui, jamais compreenderá o que é ser vil e feroz e errônea pelo simples prazer de assim ser.

E eu te amo, te amo tanto que creio que isso ainda irá me partir em duas, na sua Veiga, sua mentora, e no monstro horrendo e carniceiro que vive a espera da próxima oportunidade de causar dor e sofrimento.

Não tome minha franqueza por fraqueza, criança minha. Nosso fardo e nosso carcereiro. Espero que compreendas que é na noite escura que nosso amor se faz mais forte e que é no sangue que nossos votos nupciais são declarados.

Tú és meu sangue, és minha imortalidade. És tudo que existe de vivo em mim.

Sempre sua,
Veiga

Prelúdio para uma noite de trabalho


Vez ou outra eu me considerava o pior Ductus do mundo.
Eu sei que certamente não sou o pior, já estive na América e vi como aquelas piadas funcionavam, mas porra, não é um trabalho fácil.

Veiga estava puta com alguma coisa. Adalbrecht queria ir para a Grécia visitar um monumento de alguma merda. A novata era uma novata e Cicatriz estava ocupado trabalhando em algo que envolvia criancinhas e tripas.

E Devus estava sumido, pra variar.

Eu gostava do moleque. Era meio mole, meio indeciso, mas ainda era bom em improvisar. Aquele ar de "eu sou inofensivo demais pra que você preste atenção em mim" fazia dele um infiltrador dos melhores e apesar dele ser tão malkaviano quanto qualquer outro malkaviano do sabá, ele sabia raciocinar.

Mas ele sumia o tempo todo e isso me deixava puto. Mandei a novata atrás dele mas duvido que ela tenha muita sorte. Ela anda chorando e sofrendo e fazendo essas coisas que gente que morreu ontem faz.

Sempre culpei a musica dos anos oitenta por isso. Temos uma geração de molengas que ouvem musicas tristes e lamentam as dores da existência nas nossas linhas de frente por causa do The Cure e do The Outra Merda. Mas foda-se, as crianças da oposição são mil vezes mais choronas.

Adele vai nos convocar em breve. É impossível que nenhum bispo tenha ficado no caminho dela em seis meses. Katherine, a templária, me ligou uma semana atrás dizendo pra estarmos prontos pra matar alguma coisa na América do Sul. Tentei aprender o idioma e desisti quando descobri que existiam meia duzia deles e que todos soavam como um peixeiro polonês asmático tendo um infarto.

Meu telefone toca e meu devaneio é interrompido. Joan, a novata. Deixo a campainha vibrar três vezes e atendo.

"Meu Ductus, eu encontrei nosso infiltrador."

Puta merda.

"Conte-me mais, soldado."
"Ele está na Inglaterra, comigo, caçando um imortal. Diz que não pode retornar antes de confrontar seu inimigo."

Puta merda outra vez.

"Quanto tempo?"
"Não sei dizer, meu Ductus, perdoe-me."
"Matem logo e voltem, temos que trabalhar."
"Sim senhor."

Ela desliga e eu puxo um cigarro do bolso. Cogito por um instante agradecê-la por ter feito algo que duvidei muito que ela conseguisse fazer, mas desisto. Não estamos no sabá pra ganhar tapinhas nas costas. Estamos aqui pra fazer guerra.

Absorvo as informações com a fumaça descendo pela garganta. Devus, caçando alguém, tendo inimigos? Estamos em um trem em direção ao inferno e a entropia é a maquinista. Isso não faz nenhum sentido. Eles não são guerreiros, não foram treinados pra isso, o que será que eles tem em mente, ainda mais nas terras da coroa inglesa, onde tudo é procedimento, etiqueta e futilidade?

Envio uma mensagem de texto para um francês escroto que me devia um favor. Ordeno que ele proteja a novata e que tire os dois de lá inteiros. Mando outra pra veiga atualizando o status da missão da criança. Ela me responde um instante depois.

"Se ela se ferir, você morrerá mil vezes antes de eu me cansar de você, amado Ductus."

Não respondo. Sei que ela estava sendo sincera. Sei que cada vez que a recruta se move eu me fodo um pouco mais.

Termino o cigarro e o apago com a sola da bota. Acendo outro.
O telefone toca outra vez, da Alemanha. Meu estômago gela e atendo.

"Lorde Manoel Dias, Rio de Janeiro, Brasil, acusado de alta traição, conspiração e corrupção infernalista. O briefring completo te espera com seu contato no aeroporto Galeão. Reúna seu bando, você tem dois meses."

E silêncio. Apago o segundo cigarro e abandono o refúgio. Preciso matar alguma coisa, preciso ver sangue jorrar. Meu peito queimava e eu sabia que nos próximos dias tudo ficaria pior.

Eu odeio a porra do Rio. Odeio infernalistas e odeio ter que lidar com um bando que esta ocupado demais cuidando da própria não-vida pra poder lutar pra guerra em que se alistaram.

Avisto um ônibus de turismo ao longe. Chamo o sangue e removo uma placa de sinalização. Quando ele se aproxima, salto em direção ao vidro dianteiro e o parto com minhas botas. O metal urra e se contorce horrorizado quando o veículo tomba.

Todos gritam. Eu não.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Prelúdio noturno para o grande levante

“Esta feito, minha senhora.”
A templária se levantou. O cabelo negro e liso ainda manchado pelo vermelho do combate. A seus pés, morte e miséria. O bispo havia se provado indigno de sua posição.
Adele acariciava seus próprios cachos cor-de-ouro com a mão esquerda, as maçãs do rosto estavam pálidas pela sede e seu vestido de festa havia sido arruinado, atingido em mais de um lugar pelos fragmentos de uma granada rebatida pelo definitivamente-finado bispo de Stuttgard.
“Sinto-me...vazia.” A pequenina mordeu o lábio inferior delicadamente ao falar. Sua voz baixa pairou como um suspiro pelo estacionamento. Ela encarou as paredes e os carros quebrados e os vidros partidos com pesar.
A cidade lhe era estranha , suja. O brujah despedaçado a seus pés havia questionado o julgamento da Priscus abertamente e por isso havia morrido, mas a vitória não trouxe a Adele nenhuma satisfação.
Algo a consumia já a algum tempo. Um desejo de liberdade que urrava e esperneava e era açoitado mais e mais ferrenhamente a cada noite, a cada rito, a cada movimento nas cortes de sangue.
“Rainha de meu sangue, se é alimento que desejas, o providenciarei” Disse a templária.
Mesmo em pedaços, ela era firme. Sua armadura noturna havia se dissipado no combate. Ela estava nua em sua palidez gloriosa, perfurações rosadas afligiam-lhe o ombro esquerdo e uma das mãos havia sido quebrada , fragmentos amarelados de ossos escapavam-lhe pela palma e os dedos estavam torcidos em ângulos improváveis.
“Não é a fome que me aflige, espada de meu poderio. É a fadiga.” Respondeu a Lasombra, pensativa, caminhando nas pontas dos pés divisando os restos sangrentos do inimigo abatido.
“Nomeie o que desejar, minha senhora, e será feito.” Disse a confusa templária, enquanto reatava os ossos e fazia seu corpo cuspir as ultimas balas.
“Vamos para Munique, minha campeã. Exigirei do velha profeta as respostas que ele me deve. Levante a hoste e convoque meus subordinados, é tempo de levar o martelo e a foice aos aliados de meu sire.”
A ultima palavra foi expelida com pesar. Adele não desejava mais guerra, mais batalhas. Ele não tinha cobiça real por mais poder ou domínios, mas era necessário. Era o caminho que ela sabia trilhar.   
“Será feito como ordenastes, minha senhora.” Respondeu a templária inabalável.
                                                                              .....



O lugar era o nada, e no nada existia uma torre.

Um corvo cego pairava na unica janela e sangue escorria de seu bico.

Quando as gotas tocavam o beiral, as pedras fumaceavam.

O sangue era preto e tinha cheiro de morte.

Dentro da torre dormia um mago feito de carne e sonhos e espelhos e essas coisas de que magos são feitos.
 
Ele dormia por estar cansado. Por muito tempo o mago fez torres em lugar nenhum e elas nunca foram altas o bastante.

O céu era preto e tinha cheiro de morte.

Em algum lugar no céu havia uma torre.

Na torre, um corvo cego pairava.
...



Continua.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O espelho do mago - Ato 1

Uma pequena história sobre um favor prestado a alguém que não pertencia ao sangue e a interação entre meus Lasombra e meus Malkavian, em três partes









Sou movimento, oblíquo e inconstante.
Mergulho minha Forma Espelhada na realidade primária. Um corpo a quem pertence minha vontade. Penso, manifesto, faço-me carne.
Encontro-me em um lugar enlouquecido. Sons mecânicos ecoam por corredores amarelados que cheiravam a urina e inconstância. Uma presença quase-morta me acolhia. Um eco jovem,um sussurro de consciência mordiscando a mortandade.
Deslizo por salões inquietos. Em meu caminho, mortais em vestes brancas tremem de pavor. Um coração para em algum lugar. Eles são cegos a minha presença, mas ainda conseguem me sentir.
Alimento-me de pensamentos fragmentados e absorvo horrores escondidos em mentes  oprimidas. Vejo nomes de poder e manifestações mesquinhas de ego e pretensa razão.
A vastidão quimérica do labirinto de corredores me absorve. Mil aromas alienígenas me cegam e chamo o poder para encontrar o caminho.
Em meu peito podre pulsava a fome e a dor corpórea. Eu já não mais sabia andar com a graciosidade de outrora, não mais sabia caçar aqueles do sangue que me serviam de verdadeiro sustento. O preço pelo invólucro de carne era alto.
Enfim encontro o quarto do escolhido. Atravesso o beiral da porta aberta e sou surpreendido pelo choque da aura.
Ele estava lá, pequeno e ossudo. Um garotinho, não mais velho do que Aquela que me é preciosa   era no dia em que a trouxe para a noite. Era pálido, fétido e doentio. Não tinha cabelos e sua pele purulenta parecia estar desgrudando da face. Nos cantos da boca, feridas oleosas e vermelhas se faziam presentes. Estava sobre uma cama imunda em meio a fezes e restos de comida.Um dos olhos era branco e oleoso, o outro era cinzento e semicerrado. Estava morrendo e por isso podia me contemplar.
“Você é o diabo?” Disse a voz errática da criança. Ele não tremia e não dava sinais de que desviaria o olhar. Me aproximo e ele não recua.
“Eu sou Derek e empunho o cetro do rei do firmamento, e ajo em seu nome. Sou Lasombra, rimador da hora tardia e sacerdote do fim de tudo.” Respondo em um tom mental que só os despertos sabiam ouvir. Tento mover meus lábios, mas já não me recordava do processo que formava palavras em carne.
 Eu tinha tanta fome.
“O que quer de mim? Eu juro que não fiz nada” A sobrancelha do olho vazado e os joelhos se levantam. Ele abraça as pernas e apóia o queixo nos joelhos.
“Eu venho em nome do avô de teu avô, que uma dia foi meu aliado. Tenho um dever a cumprir com aqueles de sua descendência.”
Rugidos metálicos ao longe, gaiolas se abrindo e animais regojizando. Uma luz vermelha piscava. Um coração pulsava pela ultima vez. Sangue ralo e sujo era derramado, não longe de mim.
“E...eles vão vir me pegar. Va-Vão  me machucar e e-eu não q-q-quero” A criança chorava agora. Ela não cheirava a medo ou desespero, só mágoa e ódio.
“Você esta desperto. Eles não podem te ferir. A carne é só uma casca.” Minhas palavras não surtiam efeito. Não fosse ele descendente de Tethanon, eu violaria seus pensamentos e o forçaria a entender. Mas eu não podia. Sua mente estava ferida e além do meu alcance.
“E-eu...eu não posso fugir, não tenho pra onde fugir” Negação. A condição natural da mortalidade
“Você não esta preso. Não existem paredes além dos espelhos, e os espelhos se curvam diante daqueles que olham para si mesmos. Não existem muros ou portas ou grades, olhe-se no espelho e entenda o caminho.”
Minhas palavras finalmente o tocam. Seu rosto se levanta e pende para os lados como se estivesse solto do pescoço. O olho bom gira para trás e a língua, suja e fibrosa, escapa pelo canto da boca. Ele baba antes de começar a rir histericamente e ouço passos se aproximando.
“MAS...O ESPELHO...ESTA QUEBRADO”



Continua.

domingo, 25 de janeiro de 2015

História de amor dos mortos: O não-estar

-- Breve texto sobre misticismo do abismo em ação no Astral. --

Era tarde e eu estava morto.
Eu era torre de Noite Escura. Já não tinha um corpo de carne há muito tempo. Não me recordava do que costumava ser e sentir.
Eu estava em um lugar sem cor. Uma floresta insana perdida na inexistência. O Astral. Ao meu redor, estranhas macieiras ossudas despontavam a esmo. Seus frutos eram corpos infantes  e inchados. Eles viviam, moribundos, e murmuravam versos de decadência em uníssono.
Cordões de prata ligavam os frutos-crianças, eles vibravam a cada novo verso, como se puxados por um titereiro invisível, a supra vontade do não-existir, o além das consciências, o vento no fim do tempo.
Torno-me pensamento e ação. Crio o Verbo e chamo o Poder. Deixo de Permanecer e me vejo em uma encruzilhada entre muitas pontes e muitas vontades. Projeto o caminho em dimensões que não mais existiam e, no Escuro, invoco meu direito de sacerdote.
A noite nasce além do firmamento e as pontes são engolidas. Treva líquida borbulha em dimensões não existentes e os caminhos sangram. Sinto a dor dos mundos que poderiam ter existido mordiscar minha alma condenada. Uma infinidade de gritos sufocados no carrossel do inevitável. Portões violados e selados.
Algo morre no horizonte inalcançável. Eu suspiro e meu caminho se torna verdadeiro. A mandíbula do abismo se abre e o piche etéreo se torna condutor da verdade. Finos braços de nanquim escapam pelo portal. Manifestações do sangue, manifestações do poder.
Uma velha vontade ruge e o feitiço se completa. Aquela região era agora consagrada aos Verdadeiros Mortos Abortados.
Em outro plano, em outro tempo e lugar, um homem pequeno enlouquecia e clamava pelos Antigos. Projeto meu nome em sua mente e ele me pertence. Instruo-o no caminho. Ele faz sacrifícios de sangue para Dagon e oferece seu corpo em holocausto.
Concentro-me no conceito da ausência do sopro. Evaporo. Torno-me uma entidade do não-estar.
Morro.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

[incompleto] Fagulha de consciência

 - Texto incompleto a espera de revisão futura - 







Cicatriz moveu-se pesadamente pela sala da chacina, ferido pelo combate que há pouco travaram. Uma haste metálica havia atravessado seu ombro e três de seus sete olhos haviam sido dilacerados. Ele arrastava um dos lupinos abatidos pelo pé. A fera era parte pelo ensanguentado e parte ossos expostos.
“Irmão”, disse ele a Adalbrecht, com a cabeça abaixada. “Este um tem ossos firmes. Um bom cálice para a conflagração. Sua benção se faz necessária.”
O Lasombra estava absorto em pensamentos. A palidez de sua pele havia sido realçada pelo esforço da batalha. Ele observou o guerreiro e o corpo por um breve instante.
“De fato, espada de minha alma, este um é digno de nossa cerimônia. O rito se iniciará de imediato.”
...
Ao mesmo tempo, em outro lugar.
“Permissão para fumar, senhor” Disse Devus, com um sorriso zombeteiro nos lábios que não o pertencia.
“Concedida” Respondeu secamente Andrew, enquanto ajustava o Zoom da mira do rifle de caça.
Dev cambaleou pelo arranha-céu, os dedos tateando os bolsos do casaco em busca do isqueiro. Alice, que estava dentro e fora dele, e estava em lugar nenhum, sentou-se na beirada do peitoril.
“A vista daqui é maneira, Dev, não sei por que passamos tanto tempo enfiados em esgotos e em tripas de não-sei-o-que.”
Dev puxou a fumaça do Marlboro light para si, deixando o calor descer por sua garganta. Sua amada, vestida em couro com botas largas e pretas, havia prendido o cabelo e pintado os lábios de vermelho. Estava linda. Ao lado dela, o Brujah finalizava os ajustes na mira da arma. Ele só esperava um sinal.
“Fazemos o que nos cabe, meu amor. Servimos a Caim.” Disse Dev em um sussurro, procurando a lua que havia se refugiado atrás de nuvens gordas e sem cor.
“Silêncio, profeta” Retrucou o Brujah. “Sua presença é tolerada, não é desejada.”
Alice, inexistente para o Ductus, pigarreou e mostrou a língua. “Mate esse filho da puta, Dev, mate por mim.”
Dev recuou e pensou em fogo. Virou as costas para o Ductus e sua amante estava novamente a sua frente. “Mate”, insistiu.
Ele tragou mais uma vez. Fechou os olhos e mentalizou sua senhora. A velha bruxa há muito havia desaparecido, em seu ultimo encontro, tudo que recebeu foram instruções enigmáticas a cerca da cardeal de Dresden e do bando que agora integrava. Pensou em uma palavra esquecida que havia aprendido com larvas insanas do mundo espelhado. N’lah.
O malkaviano não gostava de magia. Não gostava de nada que não entendia. Lembrou-se de suas poesias de criança, dos versos que escrevia quando sua alma mortal não estava olhando.
Ar’c Nth ehnir, Ar’c Nth N’lah. Que haja sopro, que haja morte.
 Suspirou e apagou o cigarro com a ponta da bota. Estalou os dedos e o Ductus pressionou o gatilho. Fagulhas de som ao longe,  vidro partido, um corpo ao chão.
“Esta feito, profeta” Disse Andrew, relaxando os ombros. “Sua colaboração é apreciada. Encontrarei-me com veiga e traçaremos o próximo passo. Reporte diretamente a Adele no Salão Escuro.
Dev franziu os ombros. “Será feito, Ductus de minha carne. A Alma da Espada permanece afiada.”

“Uma Espada.” Respondeu o Ductus, enquanto se retirava.

Um instante de presciência

Era tarde e eu estava morto.
Algo havia me abandonado. Algo quente e bonito cujo nome eu já não mais me recordava. Uma pessoa, uma sensação, algo parecido.
Eu tinha tanta fome.
Em minha mente, flashes de momentos não vividos. Dores as quais eu era estranho. Um passado que já não era mais meu. Eu ouvia aqueles que não estavam ali, e eles chamavam com tanta força, gritavam para mim, dentro de mim. Estava tão nervoso.
O posto de gasolina era a neutralidade da insignificância. Eu não sabia dizer se estava ali de verdade. Nada ali, nem minha existência, importavam. Nada exceto ele, que de todo o cardume torpe da casualidade, era o mais bonito.
As portas se abrem em um silvo. Como se nada mais existisse, me ajusto a realidade temporal e as cruzo, invisível aos olhos dos cegos. Ele estava lá, atrás do balcão, um boné vermelho e um avental, um sorriso cansado e noturno, olhos verde e musgo. A sua frente, um casal de argentinos atípicos e barulhentos. Síbilo morte e ambos tremem e choram apavorados por conta de uma abominação que não estava lá. Síbilo doença e eles apodrecem, mudos, enquanto as paredes da alma imortal se partem. Eles, fracos, morrem por dentro enquanto meu escolhido treme de pavor.
Se movimento vagarosamente para trás do balcão. Os estrangeiros encolhem-se em posição fetal e sangram pelos olhos e ouvidos.
O doce aroma adocicado de míngua mental desperta o caçador em mim.
Tenho tanta, tanta fome.  
Posiciono-me atrás de minha refeição. Embriago-me com o  cheiro de seu suor e suplico por um perdão que não existia. Bebo de sua culpa enquanto roubo sua memória. Ouço sua pulsação e entro na sintonia. Ataco. Mato.
Meus lábios mergulham no mar rubro do ser anônimo de minha vítima. Minha língua toca a alma e lambe a culpa. O fluxo do doce vitae me toma e faz de mim o ceifador.
Em minha consciência, um caleidoscópio. Sinto o gosto de cada promessa e vislumbro os futuros agora impossíveis. O corpo enrijece em meus braços e o coração acelera, implorando por uma misericórdia que não existia em mim.
Seco, ele vai ao chão. A ultima batida de seu peito ainda ecoando em meu ser. Pego um maço de cigarros detrás do caixa, ainda torpe pelo calor da vida roubada. Algo sussurra em mim. Torno-me novamente uma ranhura na ferida do universo, invisível aos além do sangue. Observo a tela de cristal líquido enquanto acendo o cigarro. A fumaça escapava de minha magia. Ela flutuava sozinha, desenhando câncer  e apodrecimento na carcaça inerte do mundo morto.
Um novo som. Culpa. Ele é calado por um rugido interno. “Mais”, gritava o eu surdo a mim. Abandono a loja e me dirijo ao horizonte. Algo pesava no fundo do peito. Carregava o gosto de meu amado no fundo do peito e o saboreava. Havia qualquer coisa de baunilha e passado em sua essência.
Afasto os pensamentos com um esforço hercúleo. Concentro-me no futuro próximo. Uma cidade cairia, um príncipe seria decapitado, A Espada reinaria em mais um pedaço fétido do Brasil. Penso nas outras dez mil mortes de outras dez mil noites. Penso em dez mil noites que estavam por vir e em dez mil sabores de mentes e corpos interrompidos.
Algo em mim grita mais uma vez, em rejúbilo. A parte morta de mim estava satisfeita.
E eu tinha tanta, tanta fome.