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segunda-feira, 5 de março de 2012

Uma alma que sorri, ato V: O deus que desceu ao inferno

Depois de dois dias em que eu estava tremendamente confuso e triste, acordei com o som de vários estranhos entrando em meu cárcere. Eu me levantei para recebê-los, mas golpearam minha cabeça rápido demais e o impacto da arma de choque na minha coxa foi forte demais. Doía pra caramba. Mas o que me incomodava de verdade era eu não conseguir me mexer enquanto um imbecil de jaleco e roupa tática enfiou a agulha no meu braço. Ele esvaziou a seringa, e eu fiquei olhando pra ele, sem entender o que estava acontecendo. Aparentemente, ele compartilhava de minha reação. Meus lábios começaram a formigar, minha visão ficou um pouco turva, e então ele colocou outra agulha no mesmo lugar e repetiu o processo. Eu perdi a consciência e mergulhei em meu sono insone.
Acordei em uma viatura que realizava uma ascendência sinuosa por colinas cheias de flores brancas e azuis iluminadas por um céu de baunilha tão claro que chegava a doer. O cheiro quente e leve daqueles campos alheios ao sofrimento me batia com mais força do que qualquer homem ou deus que já tivesse cruzado meu caminho. Era tudo tão bonito, tão puro, tão intocado, que eu simplesmente não conseguia entender. Eu não sabia o que eu tinha que fazer para roubar o sorriso jocoso de cada flor e de cada nuvem. O ar fugia de meus pulmões enquanto lágrimas azedas lavavam meu rosto. Nenhuma das obscenidades blasfemas que eu já havia presenciado era tão seco, tão bruto, tão tormentosamente cruel.
Não sei bem o que aconteceu. Mais eu queria matar. Queria matar tudo que existia.
Uma cortina vermelha caiu sobre meus olhos, ódio em sua forma mais pura. Quando a consciência retornou, eu estava socando a grade de proteção com tanta força que meus pulsos sangravam. O veiculo estava parado, e eu estava só. Sem algemas, sem mordaça, sem flores.
Eu sai do carro e o que vi me fez gritar de tanto rir.
Era um hospício. Um maldito hospício. Agora sou um louco que precisa de cuidados?
Examinei o perímetro. Ao longe, murou absurdamente altos feitos de lancetas de metal não apresentavam nenhum portão a vista. Haviam três construções ali. Obras de arte da feiura e do mau gosto. Eram grandes, cinzentos, opressores. Centenas de pequenas janelas abrigavam pares de olhos imóveis que esperavam com extrema expectativa por qualquer movimento meu. Eu lhes concedi isso e me movi em direção a construção mais próxima.
Havia um peso estranho em meus pensamentos. Cansaço. Dúvida. Receio. É difícil ter certeza. A baunilha dos céus agora sangrava, em tons de vermelho e púrpura, como se deus estivesse inquieto. Curiosamente, isso não me deixou em paz.
As portas de madeira escura cederam com facilidade. Cupins haviam devorado boa parte do que um dia havia sido um entalhe de algo que eu poderia, na melhor das hipóteses, dizer que era uma serpente, uma balança e algumas outras formas menos reconhecíveis.
Eu entrei em silêncio, e percebi que mais uma vez eu estava sozinho.
Nunca, nunca mais, eu deixei de estar sozinho.

Uma alma que sorri, ato IV: a deusa que me quer

Passei os próximos meses trancado em uma sala de paredes amareladas e feias.
O único contato que tive com outras pessoas neste período eram os guardas que semanalmente retiravam as fezes e os lençóis sujos da cela. Sete deles me imobilizavam a cada vez, permitindo que eu sentisse o calor de seus corpos e o cheiro de seu medo. Eu sorria para eles enquanto minha mente fantasiava a morte e o sexo de cada um. Eles nunca entendiam. Nunca olhavam pra mim. Nenhum deles queria minha sabedoria, e eu nunca – nunca mesmo – vou conseguir entender como alguém pode adorar a ignorância.
Em uma noite particularmente inspiradora, quer dizer, acho que era noite, fazia algum tempo que eu não via o mundo lá fora, homens armados com escudos e cassetetes entraram na sala enquanto outros me prendiam a uma maca. A curiosidade me compelia a testar a rigidez daqueles bastões contra os corpos de meus captores, mas havia pouco propósito nisso. Atravessamos o corredor e em alguns minutos eu vi aquele inferno de gente mais uma vez. Todos gritando, me ovacionando “Seu filho da puta dos infernos”, “Seu monstro maldito”, “O diabo encarnado”, “você vai virar minha puta seu doente”. Ah, sim, o companheirismo entre os encarcerados parecia estar mais forte do que nunca. Senti orgulho disso. Se eu pudesse acenar para eles, eu teria o feito. Mas me contentei em imaginar uma orgia sem precedentes. Em imaginar o horror que o deus dos outros teria em contemplá-la. Sim, era um bom plano.
Minha jornada terminou em uma pequena sala extraordinariamente limpa. Ela era dividida em duas por uma parede de vidro, e de cada lado, havia um telefone. Os policiais me deixaram o mais em pé que podiam, e encostaram o plástico frio do aparelho em meu rosto. E então eu a vi.

Era alta, magricela, loira e feia. Uma daquelas garotas espertas o suficiente para sair da faculdade sem transar com todos os professores e idiota o suficiente pra trabalhar com gente feito eu.
Ela pegou o telefone do lado dela da sala e sorriu pra mim. E por todos os motivos errados, eu a desejei demais.

Ela falava alguma coisa sobre seu interesse em “meu caso” enquanto eu imaginei o sabor de sua língua e o cheiro de sua boceta. Acho que foi ai que eu reparei que eu nunca tinha penetrado em uma mulher. Quando comecei a rir, ela parou de falar.
Eu concordei com o que quer que ela tenha dito e com a caneta na boca, assinei um X na linha que os guardas apontaram.
Quando ela saiu, tentei o máximo que pude decorar as linhas do traseiro dela. Quando me voltei a seu rosto, vi que ela me contemplava. Ela levantou os cantos dos lábios e eu vi covinhas infantis se formando. Era um desafio, um chamado. E eu precisava tê-la.
Eu me senti desejado. E isso foi maravilhosamente perturbador. Eu não sabia o que fazer e isso me atormentava.
Hoje em dia eu já não penso mais nessas coisas. Eu já entendo demais das coisas que ninguém devia saber. Eu sei o que sou, pra ela, pra todo mundo. E deus não se arrepende jamais.