sexta-feira, 3 de novembro de 2017


A Saga de Oslo

Saudações do Lasombra aposentado que não sabe dar nome pra textos.
Essa história existe por que o Youtube me levou pra uma música do Raul Seixas que me fez pensar em um Malkaviano Chinês que por acaso era um sábio e que por acaso era uma borboleta. 
Ela existe também por que eu estava entediado e por que queria ver se ainda conseguia escrever alguma coisa - e como tudo na vida é drama, a história também envolve um Salubri gay, um amor perdido, uma cidade em chamas e essas coisas. 

     ...


Era julho de 83 e Oslo queimava.

Sete bandos - as águias do sangue, a fúria escarlate, o martelo de Kiev, as valquírias de Satan, os fogo-fátuos, a hoste sanguinolenta e é claro, meu próprio bando de guerra, o abraço de Caim, haviam ancorado neste país estrangeiro quinze dias atrás. Por intermédio das maquinações e espionagem das valquírias, havíamos interceptado comunicações e identificado alvos.

Eu liderava a operação, e como tal, fiz com que a capela tremere fosse violada e destruída até que a ultima gota do sangue dos usurpadores fosse drenada. Havia sido, é claro, uma batalha custosa.
A hoste sanguinolenta, formada principalmente pela juventude de São Petersburgo, havia sido aniquilada pelo bispo (ou algo equivalente) Brujah. Doze soldados reduzidos a farrapos e tripas em um piscar de olhos antes que meu sacerdote, Liang, pudesse chamar a noite e o terror dos desmortos e controlar a fúria do cainita.

Ele morreu gritando, como era de se esperar. Quando os braços do abismo partiram seu corpo débil, e seu sangue ancião jorrou, nós celebramos. A chuva de vitae renovou o vigor de meus soldados, e quando chutamos a porta do salão de guerra (ou algo equivalente), usamos a força do sangue e a força da carne para esculpir uma obra grandiosa com os Toreador que se recusaram a abandonar a cidade. As águias de sangue são, de fato, os melhores artesões da terra mãe. A carne dos condenados provou-se macia e açucarada, e fizemos deles um altar e um presente a nossa biscopisa, sagrada e idolatrada senhora Verminal.

Que seu doce nome leve terror a todas as almas, que sua forma profana seja a última visão de todos os condenados.

Agora, lambíamos nossas feridas e contávamos os cadáveres. Eu sabia que Yosef, meu amante e confidente, havia caído - eu senti meu coração torcer e gritar com seu último suspiro, e eu o odiava e amava ainda mais por ter finalmente ido pra longe de mim.

O sacerdote de meu bando, um malkaviano tão sábio e doente quanto só eles sabem ser, estava removendo com uma faca os ossos das mãos dos carniçais abatidos no ultimo embuste. Ele ria nervosamente, e a pintura de guerra em sua face havia sido arruinada pelo sangue e as tripas da trupe débil que ousou se opor a legítiva fúria de Caim. Ao redor dele, outros sacerdotes de bandos menores meditavam em círculo. Liang era da lua, mas seu domínio sobre a forma da noite o tornava objeto de adoração entre os místicos do clã e casa das sombras - Ele pertencia a noite e o abismo a ele sussurava.

Kammus, meu batedor, retorna. Ele traja um terno arruinado e sua face está tão arruinada quanto de costume. Seus poucos fios de cabelo remanescentes haviam sido queimados até a raiz, e sua face era uma mescla de puz e feridas fétidas e cartilaginosas. Suas mãos terminavam em garras rubras e uma estaca de aço atravessava seu peito. Ele pigarreou antes de reunir forças para falar.

"Meu Ductus, as forças de defesa da cidade dirigiram-se ao porto conforme planejado, e a fúria escarlate detonou os explosivos nos barcos demarcados. Um dos ratos sobreviveu a explosão, mas fomos capazes de subjulgálos. Sinto informar que Yosef caíu no combate. Ele agarrou o Nosferatu e ordenou que atirássemos, pois era o único capaz de ver além da ofuscação do verme. Sinto muito, meu Ductus, mas não cabia a nós questionarmos as ordens de nosso irmão."

Suspiro. Yosef caiu como viveu, em paz somente em guerra, lutando e sangrando por Caim, pela Santa Espada e pela Mãe Russia. Eu o amava mais agora do que em qualquer momento anterior, e nossos cem anos de taça e rito, de laço e paixão, significavam mais agora do que significaram em qualquer momento anterior. Ele era o guerreiro de meu bando, o Lasombra que esculpiu a si mesmo como a mais fatal das armas, que possuia o mais doce dos beijos e que era o mais devoto dos soldados.

Kammus, é claro, aguardava um parecer meu. Mas não consigo. Eu possuo a visão e ela me possui. Em meu legado, residem os segredos do que poderia ter sido, se eu não houvesse falhado. Eu vejo os futuros impossíveis, vejo as noites com meu amor e as promessas que nunca proferiríamos. Vejo o fim de nossa guerra e nosso tempo de vitória. Vejo o sangue jorrando em largas fontes e a Espada de Caim reinando sobre nossos avós mortos.

Saulot, pai e patrono, cega-me nem que seja só por hoje. Só hoje, meu pai, eu não quero mais ser eu.

Chamo o sangue e me recomponho. Não sei dizer quanto tempo se passou. Kammus ainda aguardava, em pé, meu próximo comando. Liang estava a debandar a horda de sacerdotes que o impertinavam, com um novo colar feito de intestinos e ossos de dedos alheios. Ele sorria e clamava por deuses cujo nome eu desconhecia - Fimbultýr, Hárr,Hrafnáss. Era um ritual, claro, mas um a qual eu era ignorante.

Chamo a força que ainda existe em mim e me dirijo a meu batedor.

"Somos gratos por ter serviço, batedor. Hoje este reino está em chamas em nome de Caim. Amanhã iniciaremos os planos de expansão. Envie rádio para Moskow e os informe do sucesso da empreitada - os abutres vão exigir seu quinhão. Informe-os de nossas perdas e requisite os serviços dos irmãos alemães para a expansão da campanha. Se o cálice da carne e a chaga e cicatriz se unirem a hoste, tomaremos o país antes do fim do ano."

O batedor sorriu (creio eu). Ele se retirou sem se despedir, e eu me deitei na piscina de corpos e tripas que há poucas horas atrás  constituia meia duzia de Tremeres.

Yosef, meu guerreiro, meu amor, eu sentirei sua falta. Acaso não és tu meu guardião? Não sou eu teu irmão?

Fecho meus olhos de carne e tento em vão selar o olho de minha alma. Mergulho em um turbilhão de memórias que não me pertence, e vejo o que meus pais e avós sacrificaram para que eu tivesse essa oportunidade. Eles me fizeram punhal de Caim, e não cabe a mim nada que não vingança. Eu sou Salubri. Eu Sou Salubri desde que acordei para a Verdadeira Vida. Mas ainda assim, por que me sinto tão sózinho?

Sinto dedos cheios de calos tocando minha face e por um instante, odeio tudo que existe no mundo. Abro os olhos de carne rugindo e em um instante sinto meu ódio morrer. Meu sacerdote estava de joelhos do meu lado, rezando por mim em sua língua alienígena.

"Nós o adoramos nesta noite, como adoramos teus filhos;
Adoramos tuas filhas e tua carne, adoramos teus olhos que nos guardam;
Nós o chamamos, pai dos mortos, e consagramos a ti nossa vitória;
Pois os ingratos entre teus filhos agora sangram e choram, e morrem e sofrem;
Nós adoramos tua forma de carne e tua alma imortal;
E adoramos teu poder e teus dons desmortos;
Dá-nos a cura, pai, dá-nos a fúria, pai, para que sejamos hoje e sempre, Uma Espada."

"Uma Espada", respondo, antes de fechar os olhos novamente. Meu sacerdote escorre sua mão imunda por meu peito e ouço seus risos nervosos violarem a santidade oblíqua daquele momento de dor e triunfo.

"Ductus, líder, coração de minha guerra - o que te perturba? Quando sangue deve ser derramado para que sua fúria seja saciada?"

Sua voz era trêmula e nervosa. Eu não o via, mas conseguia contemplar seu espírito perfeitamente. Havia um leve resquicio de ordem em sua aura, como se um caleidoscópio de ondas coloridas fosse de encontro a uma costa irregular. Haviam manchas negras e vermelhas também, resquícios de um legado de diableries e de comunhão com o abismo. Eu o adorava e respeitava tanto quanto respeitava qualquer um de meus irmãos, mas duvidava que ele fosse capaz de me confortar nesse momento.

"A batalha foi ganha, sacerdote. Mas o preço foi alto. Perdemos um irmão essa noite" respondo.

"Perdemos algumas duzias, creio eu, e uns tantos outros vão ser devorados por soldados famintos antes do amanhecer", ele retruca.

"Yosef."

Silêncio. Dor. Pronunciar o nome partiu algo em mim, como se a súbida percepção da morte de meu amor finalmente houvesse se consolidado. Sinto um estranho calor quando as lágrimas rubras abandonam meus três olhos. Eu tento falar, me justificar, mas minha voz me abandona e o que normalmente é um trovão soa como um chiado triste e patético. Eu já não tenho mais fôlego, já não tenho mais forças, não sou nada sem aquele que me fortalece e que acende em mim a chama da guerra.

Eu balbucio inutilmente e tudo em mim é perda, miséria e sofrimento. Meu posto, minha honra, minha glória - nada mais importa, eu sou o que sou naquele momento perdido, e tudo que quero é que essa noite nunca tenha existido.

Sinto um toque estranho, em meu peito. Liang estava deitado ao meu lado, em meio aos mortos. Ele apoiou seu queixo em meu ombro e, pela primeira vez desde que o conheci, ficou em silêncio. Sua aura, por outro lado, gritava. Cores que não deveriam existir saltitavam dele para mim e, quando sua boca se abriu, senti seu hálito trazendo verdades profanas e obscuras a minha realidade imediata.

"Certa vez, meu Ductus, meu senhor, antes mesmo de eu estar devidamente morto como todo sacerdote deve estar, eu tive um sonho. Eu sonhei que eu era, de todas as coisas, uma borboleta - Imagine só!
Eu sonhei que viajava pelos campos, voando sobre plantações e pousando sobre flores, absorvendo delas minha força vital. Mas como essas coisas são, um dia eu acordei, e desde então, carrego uma duvida comigo - acaso sou eu teu sacerdote, espada de teu nome, honrado entre aqueles que servem o uno, ou sou uma borboleta, sonhando que sou sacerdote, espada de teu nome, honrada entre aqueles que servem o uno?"

Como era de costume, eu não sabia responder. Liang era, acima de tudo, um Malkaviano, e neles queima a chama do saber de outrora. Suas palavras me conduziam a uma praia com ondas calmas, onde a guerra e o sangue e a perda eram apenas uma lembrança amarga, de outra vida, de outro tempo.

Minhas lágrimas secam e meus olhos se abrem. Viro meu rosto levemente e vou de encontro ao hálito de meu confessor.

"Tua sabedoria é bem vinda, sacerdote. A dor que existe em mim é uma dor de uma vida que não significa nada. Irei me recompor e retornarei aos planos de guerra."

"Estás enganado, meu Ductus - tua dor é tudo que existe e tudo que é real". Suas palavras são um punhal em meu peito. "Tua dor é a prova de que não és borboleta. Tua dor é tua vida e o sumo de teu ser. Mas não cabe a ti ser consumido por tua vida, pois tú és neto de Saulot, que é irmão de meu pai e o mais sábio entre nós. Cabe a ti ser a lâmina de nossa vingança, cabe a ti ser o punhal no peito de nossos assassinos! Não penses que teu guerreiro morreu sem teu nome nos lábios, Ductus meu! Ele morreu clamando por nossa guerra! Pois ele via, que entre as borboletas e espadas de nosso sangue, haviam aqueles que que pereceriam para manter me nós acesa a chama da guerra! Não vos deixei cair em suas próprias trevas, meu Ductus, pois não há nada que exista que não seja tua guerra!"

Ele vociferava como um maníaco. E cada sílaba que abandonava sua boca penetrava minha mente como uma lâmina aquecida aquecida nas forjas do inferno. Ele estava, é claro, correto - ele é meu sacerdote e nunca caberá a mim questioná-lo. Seu sermão partiu algo em mim e me refez, mais forte, mais são, mais vampiro.

Aquilo em mim que morria era insignificante. Yosef, meu amor, tua vingança se dará no sangue dos profanados. A guerra invade minha mente e com o olho de minha alma vejo chacina e dor. A Noruega irá cair. O Sabá ira reinar.

Por Caim, Pela Santa Espada e pela Mãe Rússia.