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terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Um instante de presciência

Era tarde e eu estava morto.
Algo havia me abandonado. Algo quente e bonito cujo nome eu já não mais me recordava. Uma pessoa, uma sensação, algo parecido.
Eu tinha tanta fome.
Em minha mente, flashes de momentos não vividos. Dores as quais eu era estranho. Um passado que já não era mais meu. Eu ouvia aqueles que não estavam ali, e eles chamavam com tanta força, gritavam para mim, dentro de mim. Estava tão nervoso.
O posto de gasolina era a neutralidade da insignificância. Eu não sabia dizer se estava ali de verdade. Nada ali, nem minha existência, importavam. Nada exceto ele, que de todo o cardume torpe da casualidade, era o mais bonito.
As portas se abrem em um silvo. Como se nada mais existisse, me ajusto a realidade temporal e as cruzo, invisível aos olhos dos cegos. Ele estava lá, atrás do balcão, um boné vermelho e um avental, um sorriso cansado e noturno, olhos verde e musgo. A sua frente, um casal de argentinos atípicos e barulhentos. Síbilo morte e ambos tremem e choram apavorados por conta de uma abominação que não estava lá. Síbilo doença e eles apodrecem, mudos, enquanto as paredes da alma imortal se partem. Eles, fracos, morrem por dentro enquanto meu escolhido treme de pavor.
Se movimento vagarosamente para trás do balcão. Os estrangeiros encolhem-se em posição fetal e sangram pelos olhos e ouvidos.
O doce aroma adocicado de míngua mental desperta o caçador em mim.
Tenho tanta, tanta fome.  
Posiciono-me atrás de minha refeição. Embriago-me com o  cheiro de seu suor e suplico por um perdão que não existia. Bebo de sua culpa enquanto roubo sua memória. Ouço sua pulsação e entro na sintonia. Ataco. Mato.
Meus lábios mergulham no mar rubro do ser anônimo de minha vítima. Minha língua toca a alma e lambe a culpa. O fluxo do doce vitae me toma e faz de mim o ceifador.
Em minha consciência, um caleidoscópio. Sinto o gosto de cada promessa e vislumbro os futuros agora impossíveis. O corpo enrijece em meus braços e o coração acelera, implorando por uma misericórdia que não existia em mim.
Seco, ele vai ao chão. A ultima batida de seu peito ainda ecoando em meu ser. Pego um maço de cigarros detrás do caixa, ainda torpe pelo calor da vida roubada. Algo sussurra em mim. Torno-me novamente uma ranhura na ferida do universo, invisível aos além do sangue. Observo a tela de cristal líquido enquanto acendo o cigarro. A fumaça escapava de minha magia. Ela flutuava sozinha, desenhando câncer  e apodrecimento na carcaça inerte do mundo morto.
Um novo som. Culpa. Ele é calado por um rugido interno. “Mais”, gritava o eu surdo a mim. Abandono a loja e me dirijo ao horizonte. Algo pesava no fundo do peito. Carregava o gosto de meu amado no fundo do peito e o saboreava. Havia qualquer coisa de baunilha e passado em sua essência.
Afasto os pensamentos com um esforço hercúleo. Concentro-me no futuro próximo. Uma cidade cairia, um príncipe seria decapitado, A Espada reinaria em mais um pedaço fétido do Brasil. Penso nas outras dez mil mortes de outras dez mil noites. Penso em dez mil noites que estavam por vir e em dez mil sabores de mentes e corpos interrompidos.
Algo em mim grita mais uma vez, em rejúbilo. A parte morta de mim estava satisfeita.
E eu tinha tanta, tanta fome. 

domingo, 8 de abril de 2012

Os açougueiros do diabo


A contração de pelanca e muco desempenhada pela face tumorosa de Hrotger ao terminar de ler o relatório podia ser levemente confundida com um sorriso por um observador míope e distraido.

- Se eu tivesse meia duzia de bandos competentes feito o seu por aqui, meu bom Andrew, já teriamos conquistado este continente imbecil.

O nosferatu caminhava pelo salão do conselho de guerra, examinando casualmente a expressão de cada um dos quatro bispos presentes. Ele parou em frente ao Brujah.

- Teu esforço será recompensado, soldado. Escolha o lugar de qualquer um dos meus bispos daqui. Ele será teu.

O silêncio dominou o ambiente enquanto cainitas com o dobro da idade do Ductus se entreolhavam nervosamente, e mesmo nas mesas distantes, onde ficavam os nômades e os bandos menores, não havia som algum.

O Brujah ajeitou a gravata, sentinto-se subitamente asfixiado pelo terno risca-de-giz. Ele odiava muita coisa no universo, e se ele fizesse uma lista, a politíca do sabá estaria quase no topo. Quase.
 Provavelmente, Veiga já havia terminado o interrogatório com o tal "arconte" que Adalbrecht capturou a mais ou menos duas horas atras e só Caim sabe quantas almas desafortunadas já encontraram seu fim na ponta das garras do Cicatriz.

Neste exato momento, ele podia estar na Grécia caçando lobisomens. Podia estar em Moscou caçando infernalistas. Podia estar em París com os dois braços enfiados na garganta de algum déspota senil. Mas não, ele estava ali, em algum canto imundo de Boston assistindo seus "líderes" alfinetarem as costas uns dos outros como pré-adolescentes espinhentas se dilacerando pela atenção do melhor jogador de futebol da escola. Era, na melhor das hipóteses, patético ao extremo.

- Sinto-me enormemente lisonjeado, lorde Hrotger. Mas temo que meu lugar seja na liderança de um bando de guerra. Como o senhor bem sabe, fiz um juramento perante a taça e a regente. Os açougueiros do diabo são soldados sacramentados por Caim e irmãos inseparáveis. Não tenho a intenção de questionar seu julgamento, priscus Hrotger, apenas desejo deixar claro que é pela vontade da regente que sou parte da lâmina, e não da empunhadura, da espada de Caim.

Houve um leve murmurio na sala, suprimido rapidamente pela tosse tuberculosa do Nosferatu. O velho não parecia nenhum pouco incomodado com a declaração do Brujah, e uns poucos até tiveram a sagacidade necessária para perceber que ele esperava por ela. Hrotger segurou Andrew pelos ombros com as mãos esponjosas e compridas, e falando muito mais alto do que de costume, disse:

- Neste caso, Ductus, saiba que meu convite continua de pé. Sempre serás bem vindo a minha mesa, como aliado e como amigo, e se o desejo da nossa excelentíssima regente mudar, terei o orgulho de te oferecer um de meus bispados.

Andrew forçou seu melhor sorriso e tentou não parecer muito artificial, sem muito sucesso. Ele não praticava muito essa habilidade. Felizmente, Hrotger aparentava já ter alcançado seus objetivos. A conversa seguiu para outros rumos pelas próximas três horas, e todos, em especial os bispos, fizeram questão de ignorar a existência do Brujah.

Ele se encostou em uma coluna e tentou se distrair tamborilando em uma parede próxima. Mesmo quando seus dedos entraram no concreto e as pequenas rachaduras se espalharam pela sala, ele não se sentiu em paz. Hrotger calculou que ele consultava o relógio cerca de quatrocentas e vinte vezes a cada hora e meia, e que por mais que fosse divertido mantê-lo ali, era também perigoso. Com um aceno e meia duzia de palavras gentis, ele dispensou o Ductus, que, sorrindo sinceramente pela primeira vez na noite, se apressou na direção de sua van.

No caminho ele ordenou que levassem Cicatriz, o guerreiro de seu bando, até ele. Ele começou a dirigir apressadamente pelas colinas sinuosas e em pouco mais de vinte minutos estavam dentro do convento de São Tomé. Sem muitas cerimônias, mataram tudo o que encontraram.

Da mais jovem e pura noviça até a mais venerável das madres, todas sofreram horrivelmente antes de perecer. Enquanto Cicatriz usava suas unhas como tesouras e alicates para arrancar dentes e pedaços de gordura, Andrew urrava e deixava que a besta o conduzisse. Por duas duzias de corredores ele simplesmente correu, socando e chutando tudo que estivesse em seu caminho, destruindo com ódio e voracidade e clamando pelo sangue das inocentes sem respeito por sonhos ou esperanças. Quando a consciência oscilante retornou, ele segurava pelo pé uma menina que no caminho havia quebrado a mandibula e torcido os braços em ângulos muito improváveis, e na outra mão, um pesado crucifixo de madeira que a julgar pelas marcas de sangue estava sendo usado como marreta para partir os ossos do que quer que ele visse pelo caminho. Seguindo o rastro de sangue, ele abandonou o convento, no pátio, Cicatriz coletava alguns troféus da noite enquanto ajeitava os toques finais de sua obra maligna.

Seis mulheres idosas ainda vivas agora eram um único ser aracnídeo e doente, o sangue escorria livremente das feridas abertas, e no centro da coisa horrenda, um numero incerto de cabeças sem voz chorava de pavor.

"Vão" Disse o Tzimisce, com a rispidez habitual, "Vão e trilhem seu destino em meio ao mundo de mentira que os homens de teu deus fizeram"

Após o gesto simbólico, os dois vampiros entraram no carro, e seguiram viagem silenciosamente. Só quando entraram na garagem do prédio arruinado no meio do subúrbio, é que Cicatriz esboçou uma reação.

- Mein Ductus, wo bist du?

- Estou aqui do teu lado, meu amigo, por que a pergunta?

- A canção fúnebre cantada pelo sangue ardente de tuas veias contraria a dança de tuas palavras, meu estimado irmão. Diga-me, onde está você?

Andrew não gostava de poesia. Na verdade, ele gostava de bem poucas coisas, e cicatriz era uma delas. Este foi o motivo pelo qual ele não encheu o Tzimisce de porrada naquele momento. Ele parou o carro sem pressa, e após descerem, ele contemplou a face do companheiro.

É verdade, ainda haviam alguns aspectos vagamente humanóides. Dois olhos cinzentos e pequenos e uma boca vermelha e inchada. Pronto, esses eram os traços humanóides. O Brujah não sabia exatamente entre quais chifres, espinhos ou ventosas ficavam as orelhas de seu companheiro, e nem sabia se ele tinha nariz. Todo seu corpo era pouco mais que um grande pedaço de carne ossuda cheia de retalhos, falanges e protuberâncias quitinosas e reptilianas, como se uma infinidade de porcos tivesse se reunido a seu redor e resolvesse que todos deveriam mordê-lo apenas uma vez. E Andrew o amava e respeitava mais do que qualquer outro ser da criação.

Sete décadas de sangue e guerra. Sete décadas de mágoa e ódio. Sete décadas compartilhando o sangue na sagrada taça do Valderie.

O devaneio foi interrompido pelo som aguda da porta do elevador, Andrew avançou cautelosamente enquanto contraia os dedos, ele sentiu um cheiro de perfume barato e sangue menstrual e cerca de dois segundos depois, viu os braços compridos de seu companheiro penetrarem no elevador e saírem carregando um tubo intestinal vermelho e púrpura que pertencia a uma mulher de meia idade que neste momento estava indecisa entre a dor e a pavor, em um segundo movimento resoluto, cicatriz torceu e puxou o orgão com força, arrancando a mulher do chão e arremessando-a contra a viga próxima. O intestino se rompeu, espalhando sangue e fezes indiscriminadamente pelo chão cinzento. Alguém ia ter um trabalho infernal pra limpar aquilo.

Os dois deixaram a mulher agonizando em meio as próprias tripas e subiram até o sexto andar do prédio arruinado, quando as portas do elevador se abriram, Andrew sentiu o habitual calafrio percorrer sua espinha. O cheiro de vitae e morte era suave demais para os mortais notarem, mas não pra ele, perto dali, sua Toreador continuava com sua obra maligna.

Aquele andar inteiro pertencia a eles, e embora os quartos nunca tenham sido formalmente divididos, cada um dos membros do bando sabia que tinha seu espaço. Cicatriz entrou na porta mais próxima, e Andrew teve a impressão de ouvir gemidos de criança vindos de dentro do apartamento. Ele preferiu não averiguar. Com passos lentos e cansados, ele alcançou uma das portas e parou com a mão no trinco. Havia sido uma noite infernal.

Não pela caçada, pela chacina, ou pelo excesso de trabalho. Mas pela maldita reunião. Enquanto ele perdia tempo em reuniões com velhos deprimidos que ocupavam disputando pedaços de terra e fatias de carne, soldados lutavam guerras e inimigos planejavam conspirações. Andrew tinha que repetir o código do cavaleiro mentalmente quarenta vezes por noite para não explodir de ódio e rasgar o pescoço de meia duzia de idosos pretensiosos. O temperamento tradicional dos Brujah tinha um efeito tremendamente negativo sobre ele, e sinceramente, ele esperava ansiosamente pelo dia em que pudesse explodir e levar seu descontentamento ao meio das costelas de algum arcebispo descuidado.

"Entre, irmão" Disse uma voz suave e fria que pareceu crescer dentro do quarto. Andrew viu as sombras que se projetavam na parede moverem-se com calma, agrupando-se atrás de um velho criado mudo, como se saíssem do caminho para não perturbá-lo. O vampiro suspirou. Talvez uma conversa com seu sacerdote pudesse lhe trazer um pouco de paz.

Ele abriu a porta sem pressa, e entrou no salão de trevas. Havia uma única luz no ambiente, uma vela amarelada e fina, apoiada em um prato de porcelana segurado por Adalbrecht. Ele era alto, magro e pálido. Estava nu no escuro, e sombras inquietas dançavam sobre suas costelas como se o lambessem com volúpia. Seu rosto era fino, frio e cadavérico, uma lembrança amarga do inverno, que trazia um brilho azulado e pisciano que rugia em contraste com as órbitas negras de seus olhos. Seu cabelo comprido era escuro o suficiente para mesclar-se a treva perene do quarto, e com um leve suspiro, o lasombra roubou o calor do corpo de seu companheiro.

- És bem vindo em minha morada, irmão, entre, e compartilhe de minha sabedoria.

Andrew se aproximou do sacerdote, e em uma leve reverência, beijou a testa do guardião.

- Caminhe pela sombra da alma sem medo, meu Ductus, venha comigo e me explique o motivo de tua tão afortunada visita. Vejo duvida e ódio em teu peito, e sangue em tuas mãos. Acaso viestes buscar por conselhos ou por refúgio de teus inimigos?

- Vim lhe fazer uma pergunta, meu irmão. Perdoe-me se o faço em hora tardia.

- Todas as horas são tardias para os mortos, meu Ductus. Tú entras sem medo no refúgio da noite escura, e mesmo assim carregas em teus olhos a chaga da duvida.

Andrew sorriu. Mais uma vez ele chegou a conclusão de que odiava poesia, e odiava quando tentavam usar frases mais bonitas do que o necessário, e odiava a calma eterna de Adalbrecht, e odiava sentir o cheiro de tripas e lágrimas no quarto vizinho, e odiava esse continente de merda e odiava essa guerra de merda. Ele se concentrou e encheu os pulmões de ar, e depois soltou-o lentamente. Essa noite estava sendo mais longa do que o necessário.

- Irmão, estou cansado e preciso de um conselho. Será que esta empreitada americana vale o esforço? A própria regente não moveu um dedo para ajudar...E eu tenho perdido metade de minhas noites em reuniões inúteis com a diretoria. Me sinto culpado, enquanto você e os outros lutam uma guerra, eu recebo tapinhas nas costas de velhos alienados. Quando poderemos ir embora, irmão? Quanto tempo até percebermos que esta guerra não vai ter fim simplesmente por que nossos lideres não querem que tenha?

O Lasombra recuou um passo, e estendendo o braço, ordenou que o abismo engolisse a vela, mergulhando ambos no silêncio do além mundo.

- Tu que caminhas no escuro em direção ao ser, não feche teus olhos perante a verdade que a noite lhe rouba. Aqueles que perderam a convicção não são de tua responsabilidade, irmão. Concentre-se em teu propósito aqui, nós somos a pedra fundamental, o padrão pelo qual os outros vão ser julgados. Se a operação não é de teu agrado, Ductus, posso entrar em contato com meu mestre e conseguir uma transferência para outro front, mas entenda, isso terá consequências.

Andrew ficou tremendamente satisfeito com a resposta. Com um comando, ele poderia ir embora, e só teria que inventar uma desculpa para que a turba de abutres não o atormentasse. Claro – havia toda uma série de complicações. Mas elas que se danem, a America que se dane e esse bando de imbecis que vá pro inferno. Eles já fizeram demais.

- Pergunte a seu mestre se ele não quer um novo casaco de peles, ou uma biblioteca, um um polegar de príncipe, ou o que quer que seja, mas nos tire daqui Adalbrecht. Esse lugar vai me deixar louco.

O Brujah ouviu meia duzia de palavras em uma lingua língua estranha, antiga, e então teve a sensação de que correntes grossas estavam subindo por suas pernas; Era o frio do abismo, a matéria da inexistência. Mesmo após meio século de convivência com o sacerdote, Andrew não havia se acostumado com elas. Após um minuto longo e incerto, as trevas voltaram para seu refugio primordial, revelando paredes sem cor em um quarto sem móveis.

- Três dias, meu Ductus, em três dias estaremos velejando no mar noturno para nossa casa ancestral.

Andrew sorriu, surprezo. Ele não fazia ideia do que o sacerdote tinha feito, mas a experiência lhe ensinou a confiar em cada palavra dele. Três dias e ele estaria longe desse hospício.

- Obrigado, meu amigo, sem tua ajuda este bando estaria fadado a ser tão patético quanto todos os outros grupos de crianças que vemos por aqui. Se me permite, vou descansar.

Adalbrecht fez uma reverência pesada e sem som, e sentou-se sobre as próprias pernas enquanto puxava fios de sombra com os dedos. O Brujah se retirou, sentindo o cansaço bater sobre os ossos, após sete passos no corredor escuro, sentiu mãos delicadas tocarem sua cintura.

- Se eu fosse uma inimiga, tu estarias mais uma vez morto, meu amado Ductus.

A voz era doce, melodiosa, repleta de um carinho teatral e cômico que ambos sabiam que não existia. Andrew relaxou o corpo e se encostou preguiçosamente na carne macia de sua torturadora. Ele sentiu a textura dos mamilos macios tocando suas costas e se deixou levar pela sobriedade onírica daquele momento. 

- Veiga, minha querida, se fostes uma inimiga, eu ainda levaria anos para finalmente morrer.

O riso dela ecoou pelos ouvidos do Brujah, como sinos tocados por crianças jocosas em uma hora inadequada, ela o envolveu em seus braços com cuidado, e levou os lábios finos e rubros até o pescoço dele, em um encontro seco e inocente, o vampiro tremeu.

-   Você esta exausto Andrew, venha deitar-se, meu relatório pode esperar até amanhã, e minha cama tem fome de seu corpo.

Ele quiz perguntar o que diabos aquilo queria dizer, ou quais as intenções dela, mas simplesmente não parecia adequado. Ele já tinha visto ela fazendo sexo com algumas vítimas, e não foi algo muito agradável. Entranhas e vísceras demais, ferro quente e lâminas demais. Paixão e perversão demais. O Brujah tentou protestar, sem muito sucesso, e quando já estava na entrada do quarto, as mãos macias da Toreador já estavam trabalhando no fecho do cinto dele. Quando ela acendeu a luz, o Brujah finalmente entendeu o propósito de todo o teatro romântico.

Os matadouros do inferno deveriam ser mais acolhedores do que aquele quarto doente, e a própria palavra crueldade parecia ofendida pela vulgaridade blasfema do templo de luxúria. O prisioneiro ainda estava ali – na verdade, estava em todos os cantos – em pedaços separados, unidos por ossos costurados com esmero por uma cirurgiã louca. Seu peito e sua cabeça estavam deitados sobre a grelha de um forno ainda incandescente, decorados com pedaços de carvão avermelhado em meio a pulmões perfurados e intestinos esticados pelas paredes. Uma das pernas - e só Caim sabe como ela chegou lá – foi trespassada por meia duzia de hastes pontudas e cinzentas, e a outra, no outro lado da sala, repousava em uma bacia de água fervente. Os testículos do arconte ainda estavam unidos ao pênis, a cerca de quarenta centímetros de altura, presos por uma argola e dois alicates paralelos, e em sua garganta aberta, repousava uma esfera metálica e espinhenta.

Seja lá quais fossem os crimes deste cainita, ele já teria os confessado. Não que isso fizesse diferença, claro, Veiga era uma artista, e não era de desperdiçar material. Ela moveu-se pelo quarto, tendo o cuidado de não tropeçar em algum orgão abandonado a esmo, e ficou de pé, com as pernas abertas, sobre a cabeça do vampiro torturado. Após esfregar seu intimo na boca cheia de agulhas do pobre coitado algumas vezes, ela soltou um gemido arfante e voltou-se para Andrew.

-    O que esta esperando, meu Ductus? Deixe-me ser tua neste momento sublime.


Andrew respirou fundo mais uma vez. Ia ser uma noite infernal.

terça-feira, 27 de março de 2012

A história do amor dos mortos: Dragões e sombras sobre Dresden, parte um.

Onze de outubro de 1944

A velha despertou, e por todo o matadouro, gritos de agonia se fizeram ouvir.

Com deliberada leveza, ela ordenou que sua forma de carne deslizasse pelo campo de abominações, sorvendo vitae e lamentos das pobres almas que em sua tentativa de fugir da guerra encontraram a sede de uma monstruosidade milenar.

Duas centenas de mulheres, ciganos, desertores e crianças estavam atadas em uma simbiose profana e doente. No momento certo, eles se levantariam e formariam um exército de ossos e ódio. E então a Tzimisce os jogaria ao fogo e ao abismo, de encontro a morte certa em uma batalha que eles nunca desejaram travar. Mas isto não tinha importância. Adele cairia, e isso valia qualquer sacrifício.

Era uma promessa antiga e amarga que mais de uma vez roubou-lhe a convicção. E ela estava prestes a se cumprir. A pequena flor de ébano – para Kella flor de carne – deveria deixar de existir.

Era a peça que faltava. A velha explorou seu corpo e sua mente por mais de cem mil noites e alcançou toda a maestria que a potência de seu sangue grosso permitiu.

Faltava destruir um único grilhão, a ultima mácula em sua carne imperfeita.

Ela já havia sido dragão, cervo e mariposa. Já havia sido templo, torre e espada. Já havia tomado um numero infinito de formas e levado imortais de sangue forte a loucura pela simples contemplação de seu semblante. No entanto, havia um único paradigma que ela nunca ousou quebrar.

Em sua longa jornada pelos confins do oriente, a Tzimisce aprendeu com os demônios da floresta que a flor que nasce em uma clareira verdejante nunca é tão bela e imponente quanto aquela que desabrocha em um campo de cinzas e morte. A metamorfose não escolhe o sábio, o forte, ou mesmo o preparado. Ela vem de dentro pra fora. Ela escolhe o determinado.

Ela precisava desabrochar, e para isso, destruiria o único aspecto humano que restava em sua alma apodrecida.

A metamorfista sabia que precisava retornar ao tempo em que Derek, o único sob o firmamento pelo qual ela nutria afeto, não lhe significava nada. Ela precisava do ódio dele, e faria isso destruindo Adele, sua criança amada.

Em algum lugar próximo, uma massa de bocas e pavor gemia em uníssono, implorando por uma misericórdia que não existia. A matusalém destacou uma quantidade incerta de apêndices rombudos e compridos das paredes ossudas. Era hora de trabalhar.

segunda-feira, 26 de março de 2012

A história de amor dos mortos: Dragões e sombras sobre Dresden, parte 2

Dresden, Treze de Fevereiro de 1945.


Kath entrou no salão de sombras, ao seu lado, Margareth Freyer, a templária mais feroz e leal da casa das sombras, protetora sacramentada de Adele, a flor do abismo e a rainha do sangue de ébano. E em seu peito, ela carregava uma notícia terrível que traria ódio e violência a alma apodrecida de uma anciã.

Quando as portas do salão de meias-noites se abriram, a Brujah sentiu as pernas perderem a força e sua convicção falhar, por toda a extensão do ambiente, a pura treva dançava a valsa fúnebre regida pela pequena anciã. Fios de sombra traçavam curvas sinuosas de encontro as carnes infantis da guardiã, cobrindo-a com uma camisola noturna e sapatinhos de laço vivo. O breu lhe penteava os cachos loiros com carinho e cuidado, e atrás dela, em um trono de medo, repousava a forma material do puro horror.

A uma altura incerta, um massa disforme e corpulenta borbulhava para dentro de si mesmo, ostentando dentes de escuridão opaca e uma quantidade de olhos e apêndices em constante mudança. A coisa flutuava pela sala, derramando breu líquido por vários orifícios de propósito desconhecido. Kath foi tomada pela estranha sensação de que sua mente estava se fragmentando, e após um segundo de hesitação dolorosa, a voz da anciã roubou sua dor solene:

  • Saudações, Katherine da casa dos indomáveis. Seja bem vinda a meu santuário. Entre, por favor.
  • Com sua licença, Adele, campeã da casa das sombras.
Seguida de perto por Margareth, Kath deu três passos receosos para dentro do salão de horrores. Sombras indecisas avançaram em direção a ela e subiram por suas botas militares, roubando-lhe o calor e então se distanciando com um gesto da anciã.

  • Entendo que trazes noticias de nossos irmãos no sul, Brujah.
  • Trago noticias pesarosas, vossa iminência. Dresden será bombardeada ainda esta noite, é hora de evacuar a cidade.

Adele Levantou uma sobrancelha, sem demonstrar muita surpreza.

  • Conte-me mais
  • Mil e trezentos aviões aliados cruzaram a França com quase quatro mil toneladas de bombas incendiárias e explosivas. Uma bomba para cada duas pessoas da cidade, minha senhora.

Margareth soluçou, incrédula, e calculou mentalmente qual seria a força necessária para neutralizar esse ataque, pesarosamente chegou a conclusão de que esta força simplesmente não existia naquela hora perdida. Kath continuou:

  • É necessário que a senhora de a ordem de evacuação imediatamente, visando poupar nossos soldados.

Adele abaixou a cabeça, murmurando para si mesma:

  • Eles tem aviões, nós temos dragões.
  • Temos três, senhora, e a casa Tzimisce não concordou em sacrificá-los neste combate.

A pequenina levou a palma da mão diminuta a testa, e acariciou sua têmpora levemente.
  • E quanto a Yorrance, o Koldun?
  • Ele defende nossos feiticeiros em Berlim, senhora.
  • E os soldados de carne de Verminal?
  • Em Munique, protegendo a catedral, junto com as fúrias, o implacável, o conselho dos martelos, a rosa dos ossos e a cruz de Caim.
  • E a legião das sombras da Espanha?
  • Sitiada pela França, Itália e Inglaterra, bem como pelos assassinos do oriente, contratados pelos Ventrue, e pelos Giovanni.
  • E a Wehrwulf?
  • Detendo o avanço russo, junto com Haringoth, Hans, o bando da cicatriz e meus filhos e irmãos da rosa branca da germânia.
  • Quantos temos aqui?
  • Vinte e sete cainitas, nove deles com menos de dez invernos de morte. Nós três somos as mais velhas e poderosas da cidade.
  • E quanto a Dorother?
  • Ele levou suas crias para Hamburgo ontem, obedecendo as ordens da Cardeal.

Adele contraiu os dedos, rasgando a pele delicada do rosto. Filetes de sangue escuro desceram por seu rosto, tingindo de treva o que antes era um mar tempestuoso e azulado.

  • Derek...
  • Perdão, senhora?
  • Meu criador me disse uma vez que se eu continuasse com esta guerra eu acabaria abandonada por todos, enfrentaria traições de todos os lados, quebraria promessas importantes e clamaria pela ajuda dele. E disse também que ele não viria. Maldito bastardo.
  • Senhora...Preciso de sua ordem, o tempo é curto.
  • Vários séculos atrás, um parente de sangue meu ergueu a primeira parede de pedra que ainda hoje é parte desta cidade. Em morte, eu dediquei metade de meus anos a defendê-la. Sob meu comando, ela sobreviveu a pestes, religiões, franceses e todo esse tipo de lixo. Aqui é minha casa, e digo que vou ficar e defendê-la.

Margareth se ajoelhou, deixando que os longos cabelos escuros caíssem sobre o casaco militar.

  • Hoje e sempre, sou tua espada, minha mestra.

Katherine tentou encontrar palavras para protestar e sentiu a raiva aquecer seu sangue.

  • Vossa iminência, com todo o respeito a seu julgamento, não existe nenhuma chance de vitória.
    Um riso timido escapou dos lábios de Adele, preenchendo o salão com uma alegria infantil e alienigena. Era algo que simplesmente não deveria existir ali.

  • É isso que os mestres do clã Brujah, os “indomáveis”, ensinam a suas crianças? Que estar em menor número enfrentando um inimigo com armamento superior é motivo para se render? Pobre criança...Saiba que se eu precisar pintar o firmamento com o nanquim do abismo assim o farei, e que por minha vontade nem mesmo uma única criança de peito vai perder seu sono essa noite. Entenda isso, patética desculpa para uma templária: Eu sou Lasombra, e os Lasombra nunca perdem.

Kath corou, forçando o sangue a lhe dar força e ódio “Eu...preciso...resistir” Margareth recuou um passo e puxando fios de escuridão, criou uma lâmina comprida e reta. Ela só esperava um comando.

  • Senhora... Preciso saber quais são suas ordens.
  • Diga a todos que quem quiser fugir não será punido, mas também não será bem vindo em minhas terras. E isto vale para aqueles que “estratégicamente” se ausentaram nas ultimas semanas.
  • Sim...Entendido. Tenho um ultimo aviso, se a senhora me permitir.
  • Claro, criança, fale de uma vez.
  • Uma Tzimisce russa chamada “Kella” avisou ao arcebispo de Barcelona que atacaria Dresden quando os céus fossem pintados de vermelho. Por intermédio de seus mensageiros, ele ordenou que eu lhe entregasse este aviso caso a senhora se recusasse a abandonar a cidade.

A pequenina mordeu os lábios, e uma fumaça azeviche e perfumada levantou das gotículas que tocaram o chão. Não – Hrotger não mentiria para ela – Não depois de todo esse tempo.

  • Ordeno que todos os cainitas a mim subordinados abandonem a cidade imediatamente, incluindo você, minha querida templária. Que seus carniçais os conduzam até Munique. Eu vou ficar e lutar.

Margareth se ajoelhou novamente, cerrando os punhos.

  • Perdoe-me, senhora, mas fiz um juramento perante o abismo e perante a taça. Enquanto houver vitae em minhas veias, lutarei para garantir tua glória e teu esplendor. Sou tua espada, e súplico humildemente que não traves teu combate sem mim.

Adele levantou os cantos dos lábios com gentileza, formando covinhas brincalhonas e angelicais.

  • Humildade nunca foi uma qualidade de que um Lasombra pudesse se orgulhar, minha templária. Kella é uma matusalém, e na companhia de meu senhor enfrentou dragões da Rússia e participou do ritual que levou ao sono a mais velha monstruosidade do clã Nosferatu. Ela já derrotou uma das serpentes do mundo morto e provavelmente destruiria a coragem de teu coração de guerreira simplesmente olhando em teus olhos. Ordeno que auxilies Katherine na evacuação da cidade, minha querida, e que partam imediatamente.

As duas guerreiras foram pegas de surpresa pela suavidade das palavras de Adele. Ela estava pronta para entrar em um combate que sabia que estava perdido. E ainda haviam mil e trezentos aviões rumando para a cidade.

Katherine se despediu formalmente e começou a marchar, seguida de perto pela hesitante Margareth. Acompanhada pelas trevas silenciosas, a garota cujo corpo não envelheceu mais do que quatorze invernos, manifestou seu poder de forma odiosa:

  • Maldito sejas tu, Derek, que deu a mim teu amor e a ela tua lealdade. Não vou me ajoelhar e pedir ajuda – me ensinas-tes a não me curvar a ninguém – Saibas que neste momento eu te odeio mais do que tudo no mundo, e que vou rasgar, morder e violar a pele imunda de sua confidente e jogar os pedaços sangrentos dela aos cães do abismo, só pra te mostrar o quanto te desprezo e o quanto te amo. É por você, meu senhor, que vou permitir que o reino que construí desfaleça diante de meus olhos. Que os dois milhões de mortais que protejo derramem sangue e lágrimas sobre tuas mãos, que morram todos! Que sofram tanto quanto vou sofrer quando eu mesma rasgar teu peito e tomar teu coração pra mim! Maldito, mil vezes maldito! Por que você escolheu que fosse assim?

A pequenina se esvaia em lágrimas e sombras. Ela ordenou que seu servo chamasse Dagon e convocasse a legião dos famintos. Ela pagaria o preço, qualquer que ele fosse. Do lado de fora, duas templárias confusas assistiram ao nascimento de nuvens escuras, vivas e viscosas. A notícia do ataque era vomitada por rádios e torres em todos os cantos, e mortais corriam desesperadamente as centenas para seus porões. Duas duzias de vampiros foram convencidos a abandonar a cidade imediatamente pelos túneis apertados que apenas os mortos conheciam. E ao longe, uma sirene gritou de horror.

Os aviões estavam chegando.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Uma alma que sorri, ato V: O deus que desceu ao inferno

Depois de dois dias em que eu estava tremendamente confuso e triste, acordei com o som de vários estranhos entrando em meu cárcere. Eu me levantei para recebê-los, mas golpearam minha cabeça rápido demais e o impacto da arma de choque na minha coxa foi forte demais. Doía pra caramba. Mas o que me incomodava de verdade era eu não conseguir me mexer enquanto um imbecil de jaleco e roupa tática enfiou a agulha no meu braço. Ele esvaziou a seringa, e eu fiquei olhando pra ele, sem entender o que estava acontecendo. Aparentemente, ele compartilhava de minha reação. Meus lábios começaram a formigar, minha visão ficou um pouco turva, e então ele colocou outra agulha no mesmo lugar e repetiu o processo. Eu perdi a consciência e mergulhei em meu sono insone.
Acordei em uma viatura que realizava uma ascendência sinuosa por colinas cheias de flores brancas e azuis iluminadas por um céu de baunilha tão claro que chegava a doer. O cheiro quente e leve daqueles campos alheios ao sofrimento me batia com mais força do que qualquer homem ou deus que já tivesse cruzado meu caminho. Era tudo tão bonito, tão puro, tão intocado, que eu simplesmente não conseguia entender. Eu não sabia o que eu tinha que fazer para roubar o sorriso jocoso de cada flor e de cada nuvem. O ar fugia de meus pulmões enquanto lágrimas azedas lavavam meu rosto. Nenhuma das obscenidades blasfemas que eu já havia presenciado era tão seco, tão bruto, tão tormentosamente cruel.
Não sei bem o que aconteceu. Mais eu queria matar. Queria matar tudo que existia.
Uma cortina vermelha caiu sobre meus olhos, ódio em sua forma mais pura. Quando a consciência retornou, eu estava socando a grade de proteção com tanta força que meus pulsos sangravam. O veiculo estava parado, e eu estava só. Sem algemas, sem mordaça, sem flores.
Eu sai do carro e o que vi me fez gritar de tanto rir.
Era um hospício. Um maldito hospício. Agora sou um louco que precisa de cuidados?
Examinei o perímetro. Ao longe, murou absurdamente altos feitos de lancetas de metal não apresentavam nenhum portão a vista. Haviam três construções ali. Obras de arte da feiura e do mau gosto. Eram grandes, cinzentos, opressores. Centenas de pequenas janelas abrigavam pares de olhos imóveis que esperavam com extrema expectativa por qualquer movimento meu. Eu lhes concedi isso e me movi em direção a construção mais próxima.
Havia um peso estranho em meus pensamentos. Cansaço. Dúvida. Receio. É difícil ter certeza. A baunilha dos céus agora sangrava, em tons de vermelho e púrpura, como se deus estivesse inquieto. Curiosamente, isso não me deixou em paz.
As portas de madeira escura cederam com facilidade. Cupins haviam devorado boa parte do que um dia havia sido um entalhe de algo que eu poderia, na melhor das hipóteses, dizer que era uma serpente, uma balança e algumas outras formas menos reconhecíveis.
Eu entrei em silêncio, e percebi que mais uma vez eu estava sozinho.
Nunca, nunca mais, eu deixei de estar sozinho.

Uma alma que sorri, ato IV: a deusa que me quer

Passei os próximos meses trancado em uma sala de paredes amareladas e feias.
O único contato que tive com outras pessoas neste período eram os guardas que semanalmente retiravam as fezes e os lençóis sujos da cela. Sete deles me imobilizavam a cada vez, permitindo que eu sentisse o calor de seus corpos e o cheiro de seu medo. Eu sorria para eles enquanto minha mente fantasiava a morte e o sexo de cada um. Eles nunca entendiam. Nunca olhavam pra mim. Nenhum deles queria minha sabedoria, e eu nunca – nunca mesmo – vou conseguir entender como alguém pode adorar a ignorância.
Em uma noite particularmente inspiradora, quer dizer, acho que era noite, fazia algum tempo que eu não via o mundo lá fora, homens armados com escudos e cassetetes entraram na sala enquanto outros me prendiam a uma maca. A curiosidade me compelia a testar a rigidez daqueles bastões contra os corpos de meus captores, mas havia pouco propósito nisso. Atravessamos o corredor e em alguns minutos eu vi aquele inferno de gente mais uma vez. Todos gritando, me ovacionando “Seu filho da puta dos infernos”, “Seu monstro maldito”, “O diabo encarnado”, “você vai virar minha puta seu doente”. Ah, sim, o companheirismo entre os encarcerados parecia estar mais forte do que nunca. Senti orgulho disso. Se eu pudesse acenar para eles, eu teria o feito. Mas me contentei em imaginar uma orgia sem precedentes. Em imaginar o horror que o deus dos outros teria em contemplá-la. Sim, era um bom plano.
Minha jornada terminou em uma pequena sala extraordinariamente limpa. Ela era dividida em duas por uma parede de vidro, e de cada lado, havia um telefone. Os policiais me deixaram o mais em pé que podiam, e encostaram o plástico frio do aparelho em meu rosto. E então eu a vi.

Era alta, magricela, loira e feia. Uma daquelas garotas espertas o suficiente para sair da faculdade sem transar com todos os professores e idiota o suficiente pra trabalhar com gente feito eu.
Ela pegou o telefone do lado dela da sala e sorriu pra mim. E por todos os motivos errados, eu a desejei demais.

Ela falava alguma coisa sobre seu interesse em “meu caso” enquanto eu imaginei o sabor de sua língua e o cheiro de sua boceta. Acho que foi ai que eu reparei que eu nunca tinha penetrado em uma mulher. Quando comecei a rir, ela parou de falar.
Eu concordei com o que quer que ela tenha dito e com a caneta na boca, assinei um X na linha que os guardas apontaram.
Quando ela saiu, tentei o máximo que pude decorar as linhas do traseiro dela. Quando me voltei a seu rosto, vi que ela me contemplava. Ela levantou os cantos dos lábios e eu vi covinhas infantis se formando. Era um desafio, um chamado. E eu precisava tê-la.
Eu me senti desejado. E isso foi maravilhosamente perturbador. Eu não sabia o que fazer e isso me atormentava.
Hoje em dia eu já não penso mais nessas coisas. Eu já entendo demais das coisas que ninguém devia saber. Eu sei o que sou, pra ela, pra todo mundo. E deus não se arrepende jamais.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A história do amor dos mortos: Um ato de mágoa simbólica

Derek sorriu sem jeito enquanto sua companheira removia seu punho de dentro da caixa torácica do traidor recém abatido.
"Giangaleazzo, escória antitribu, una-se ao abismo em nome de Caim, do Sabá e da casa das sombras" Disse o vampiro com a habitual rispidez romântica e teatral.

"Acho que estamos ficando velhos demais pra isso, meu amigo". Disse Kella.

"Acho que estamos velhos demais pra essa guerra estupida a pelo menos nove séculos". Respondeu o Lasombra.

Eles se entreolharam, concordando em um silêncio triste e verdadeiro. Ela espalmava o sangue sujo e os pedaços de ossos podres com asco e indignação, todos os cinco olhos cinzentos da metamorfista estavam perdidos em pensamentos distantes, malignos.

"Com todo o respeito, Lorde Derek, posso lhe perguntar qual foi o motivo que levou esta criatura que agora se encontra a nossos pés a trair seu clã, aliar-se a Camarilla, caçar seus filhos e irmãos e tentar converter nossa estimada Adele?"

"Eu não tenho estas respostas, Kella, e sinceramente não me importo com nada disso. Ele é um traidor, um conspirador e um inimigo. A morte final o alcançou por isso, e agora Milão irá queimar e mais uma vez vai pertencer ao sabá."

"Você nunca foi um bom mentiroso."

Ele abaixou a cabeça e ordenou que as sombras formassem um machado em suas mãos, a lâmina fria e negra maculou a realidade daquele instante de silêncio doloroso, e os dois velhos continuaram a caminhar. Ela retomou a conversa após um curto incidente que envolveu dois ônibus de turistas, algumas viaturas, um nosferatu confuso e excessivamente confiante e quinze braços do abismo.

"Eu não compreendo. Lutamos um pelo outro desde o tempo em que os dragões de sangue forte assombravam os sonhos dos camponeses de nosso manso e mesmo assim eu não te compreendo."

Derek parou e tentou calcular alguma resposta confortável, sem muito sucesso. Ele deslizou as costas das mãos sensíveis pelos cabelos longos e grossos de sua companheira, e então beijou demoradamente a bochecha espinhenta e ossuda da Tzimisce.
Cada centímetro do corpo profano de Kella havia sido desenhado com carinho pela caneta de um poeta louco. Os seios rosados e fartos, a cintura fina e assexuada, as pernas felinas e magras, os braços cheios de esporas pontudas...Cada detalhe foi estudado e aperfeiçoado por séculos de determinação  inquebrável. Ela era, afinal, uma das mais antigas e poderosas guerreiras do clã e casa do leste, uma das mestras do sabá e a ponte fundamental entre os metamorfistas e a velha guarda do clã. O lasombra a respeitava e admirava mais do que ele era capaz de explicar, não só pelo poder da idade e da taça, mas pela lealdade e confiança que só os seculos de dores e mágoas compartilhadas são capazes de dar.
Ela ficou visivelmente chocada com a súbita demonstração de afeto e algo dentro de sua pele draconiana e escamosa tremeu quando os sete espinhos das costas ficaram eriçados e hesitantes.

"Sinto muito." Disse o vampiro em um tom anormalmente alto "Acho que deixamos nossas almas apodrecerem por tanto tempo que as vezes esquecemos que um pequeno gesto de amor pode dar sentido ao que não tem sentido. Nós estamos morrendo há muito tempo e sabemos disso. Você tem seu ofício de carne e eu tenho minha obrigação como sacerdote, mas todas as noites, quando o sol esta prestes a esmurrar nossa cara, sabemos que estamos morrendo e que tudo que nos resta é um eventual ato de amor."
Durante todo o resto da noite, eles não trocaram uma única palavra. Enquanto soldados de carne e bandos menos importantes vigiavam saídas e aeroportos, os misticos do clã das sombras do norte sitiaram uma capela e pilharam tomos de conhecimento e magia que muitos julgaram estar para sempre perdidos. Os Tzimisce de sangue ariano conduziram exércitos de cães do inferno e carniçais guerreiros pelos esgotos, auxiliados por muitos olhos e orelhas anonimas, eles varreram seis ninhadas com o conhecimento que a vida imunda do subsolo pode lhes dar.
A unica  resistência efetiva veio por parte dos Giovanni, que lutaram clamando por seus mortos e seus ritos obscenos. Don Pietro foi destruído, bem como sua esposa, filhos, e os filhos de seus filhos. Nada pode resistir por muito tempo a fúria de dois matusaléns magoados.

O sol já irradiava seus primeiros raios dolorosos quando Derek conduziu sua companheira pelo abismo de volta para o refúgio ancestral em Moscou. Ao fim da viajem, Milão mais uma vez era a capital do sabá na Itália.

Os dois vampiros foram acariciados gentilmente pelo doce frio da fortaleza subterrânea. Há duzentos e cinquenta anos o santuário do Lasombra protegia os segredos mais terríveis da mãe Rússia, e a pelo menos cento e cinquenta ele era também o refugio e o laboratório de Kella. Eles se sentaram sobre a tampa de um dos quatro caixões de pedra e permitiram que a letargia diurna lhes tomasse o corpo. Instantes antes do beijo de Morpheus, A Tzimisce chiou e suspirou as palavras que lhe roubaram a mente durante toda aquela noite de conquistas dolorosas.

"Tudo aquilo que amei, amei em Caim e na metamorfose. Hoje acho que não sei mais amar. O que realmente nos resta, meu amigo?"

"Acho que se em algum momento aprendemos a amar de verdade, isso se foi com o sangue. O que nos resta, como eu disse, são eventuais atos simbólicos."

Derek Chamou as trevas e em um gesto teatral e solene, envolveu sua companheira em seus braços antes de deitar-se sobre a pedra fria. No abraço dos mortos atormentados, não havia um só pensamento ou suspiro. Eles estavam cansados e estressados demais para chegar a qualquer conclusão sobre seus próprios sentimentos atrofiados.

Em outro lugar e em outra noite, a cria pródiga de Derek ordenou que seus assassinos atacassem dois bispos da cidade do México. Ela queria acabar com aqueles conflitos inúteis, com aqueles Lasombra  inúteis, e com aquela regente inútil. Ela não era a mais forte, nem a mais velha e possivelmente não era a mais adequada para assumir o controle do Sabá. Mas era um risco necessário.
A rainha das cortes de sangue estava prestes a iniciar seu plano mestre, e ao final disso tudo, ela poderia despedaçar o peito e o orgulho de seu senhor só pra mostrar a ele que ele estava errado quando disse que abraçá-la foi o maior dos erros e que os dois nunca deveriam ter feito a jura que jamais conseguiriam cumprir.
No fundo de seu coração negligenciado, ela sabia que este era o amor que só os mortos sabiam cultivar, a história de séculos de ódio e paixão dilaceradoras que consumia a vontade e condenava ao inferno cada um de seus pensamentos.
"É por você, meu sire, que levarei a espada a seu peito. É por minha devoção a você que te destruirei, farei isso chorando, e estarei chorando por tudo aquilo que nunca conseguimos ser."

A história estava chegando ao fim. A história de amor e morte que só aqueles que se apaixonam por todos os motivos errados sabem contar.

Adele chorou naquela noite, e Derek a acompanhou inconscientemente. Naquela noite fria e sem sentido, uma Tzimisce confusa travou um combate terrível contra si mesma e fez uma promessa em nome de tudo aquilo que que já não lhe significava mais nada.
"Vou matar vocês dois antes do fim, e vou gritar aos quatro malditos ventos o quanto sou grata a cada um de vocês por me ensinarem o caminho da metamorfose e o caminho do coração."

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

História de amor dos mortos - Um conto sobre o fim



Os dois antigos contemplavam o céu de Atlanta serenamente. As nuvens carregadas indicavam a tempestade vindoura, e as sirenes estridentes das ambulâncias e viaturas davam um tom especial aquele inferno de concreto.
O bispo Eilert removia as cascas das infindáveis feridas amareladas de seu rosto, que estouravam em um pus rubro e gosmento que com certa dificuldade movia-se pela face entrincheirada do Nosferatu. O companheiro dele não era muito mais atraente.
Hrotger tinha o nariz pontudo e esponjoso que pendia sob os lábios inchados e sem cor. Por todo seu corpo, protuberâncias escuras e molhadas davam a ele o aspecto de uma vítima terminal da praga negra. Seus olhos verde musgo contrastavam ferozmente com sua forma monstruosa. Eram de uma selvageria tão grande que mesmo inquisidores de determinação inferior não ousavam contemplá-los. Talvez fosse o par de olhos mais valioso de todo o sabá, afinal, foram eles que contemplaram os sinais que o profeta mais antigo do clã traçou na própria carne antes de ser tragado pelo fogo dos obuses russos. Eles guardavam os segredos que o Priscus não revelaria a ninguém antes dos antigos se levantarem.

Hrotger observou a miriade irritante de arranha céus cinzentos que se estendia a sua frente, e mentalizou a destruição de centenas de casas coloniais inglesas. Aos poucos, o panorama em sua mente deu vida a carros feios, lojas inúteis e a uma infinidade de mortais igualmente inúteis. Em seguida, prédios grandes, aeroportos, corporações, e todo lixo que fazia a humanidade feder da maneira peculiar que só eles conseguiam. Então ele imaginou fogo e trevas correndo pelas ruas e devorando tudo em seu caminho, imaginou seus tataravós despertando e fazendo com que o precioso império de vidro que os filhos de Abel levaram séculos para construir ruísse em uma única noite.

Este era o conforto cruel do ancião. Se a espada de Caim falhasse e o mundo morresse, ele morreria sorrindo.

Eilert limpou a garganta, tentando inutilmente quebrar a concentração de seu companheiro. Era difícil entender o que se passava na cabeça dele, não só por ele ser mais forte e mais velho do que boa parte dos vampiros que ele já viu, mas por que ele já ouviu do próprio falecido cardeal Monçada que os pensamentos de Hrotger pertenciam apenas a ele mesmo. Não havia magica ou poder do sangue que pudesse invadi-los. E essa era uma das principais razões pela qual o mais rancoroso dos mortos havia conservado seu lugar por tanto tempo.
O bispo se levantou e olhou para a rua que estava a dezenas de metros abaixo deles. Curioso como as duas limousines paradas em frente ao enorme complexo empresarial não chamavam atenção alguma. Ele chegava a ter raiva disso. A duzentos anos atrás, um cainita tinha que ser muito esperto para sobreviver a fúria implacável dos caçadores. Hoje em dia só era necessário um celular e meia duzia de bajuladores.
Hrotger levantou o indicador ossudo e o pousou sobre uma taça que nem de longe parecia conter vinho. O liquido era de um vermelho escuro e vivo que parecia extremamente insatisfeito em ser mantido no carcere de vidro. O Nosferatu traçou giros irregulares na taça com extrema lentidão antes de arremessá-la ao asfalto. Eilert não protestou, e em segredo lamentou pelo infortuno destino do pobre Tzimisce que havia desagradado o Priscus por todos os motivos errados.
- Sabe, meu querido bispo, não entendo a estima que vocês americanos tem por soldados desobedientes. A voz do antigo soou rouca e baixa. Um chiado desanimado proferido por um leão que tinha consciência de que a morte era próxima. Ele continuou – Em minha antiga casa, e que Satã a consuma, teríamos esfolado esta patética desculpa para um guerreiro Tzimisce exatos dois segundos após ele faltar com respeito a seu lorde.
Eilert chiou baixo, prevendo mais uma conversa desagradável com o velho.

-Responderei a esta pergunta, vossa excelência, se o senhor me responder qual é o motivo pelo qual os antigos de nosso clã tem um desprezo tão grande pela América.

Hrotger assentiu calmamente, enquanto inspecionava a mente dos pombos da janela próxima.
Não eram espiões. Não ainda. Com um comando mental ele ordenou que os sete pássaros gordos sobrevoassem o perímetro da cidade e lhe trouxessem um relatório sobre as ações de cada um de seus batedores.
-Você cria concepções errôneas a meu respeito, meu bom Eilert. Não nutro nenhuma mágoa especial por este pedaço de terra. Eu o odeio como odeio todos os outros recantos de imundice deste universo condenado.
Não havia nenhuma alteração em seu tom de voz ou em seus olhos, mas mesmo assim, o bispo sabia que ele estava mentindo. Sim – havia muito espaço na alma do vampiro para odiar, mas este lugar ocupava um lugar tremendamente especial no coração negro do Nosferatu.
Era até compreensível, dependendo do ponto de vista. O velho nunca havia feito questão de sair de sua casa ancestral, nunca havia pedido pelo status que lhe foi conferido e em nenhum instante de sua não-vida ele desejou travar uma guerra que, aos olhos dos verdadeiros mestres do sabá, era tremendamente fútil.
-Então o senhor não nutre nenhum ressentimento por estar longe de sua casa?
O velho tentou lembrar-se de como era o processo que fazia seus pulmões crescerem e se contraírem, gerando um suspiro. Ele não conseguiu.
- Permita que este velho lhe conte uma história desagradável, meu querido bispo. Ela começou quando uma vagabunda feriu meu orgulho e fez com que eu desejasse a morte do mundo, ela continuou quando uma outra vagabunda fez minha pele derreter e esculpiu minha face nisto que você observa agora. Anos mais tarde, eu vi o fogo que saia da igreja queimando uma das meretrizes junto com os únicos três seres da criação que eu aprendi a respeitar. Séculos mais tarde, veio a convenção dos espinhos e eu cuspi na cara de Von Bauren e sua corja de filhos da puta, me voltei para Vasantasena e com a orientação dela defini o que hoje os jovens chamam de Sabá. Pareceu ótimo na época, mas a falta de controle de qualidade me faz acreditar que foi a pior empreitada de que já participei. Assinei tratados, conquistei cidades, derrubei governos, estuprei príncipes e primógenos.
Eu vi linguagens nascerem e morrerem, vi fés inteiras sendo destruídas. E acredite, me envolvi diretamente em mais de um destes acontecimentos. Eu presenciei o apodrecimento de cada uma das maravilhas perversas dos últimos oitocentos anos. Me diga, boa criança, existe algo que eu possa sentir além do ódio?

Eilert se contraiu, irritado. Ele esperaria ouvir uma história assim de um toreador choroso, não do mais respeitado dos mestres Nosferatu do sabá. As histórias sobre o poder e a crueldade de Hrotger eram tão numerosas quanto as cabeças que ele já havia posto na ponta da lança. E lá estava ele, se lamuriando pelo vitae derramado pelos séculos.
Uma pontada de dor desconfortável atingiu-lhe a têmpora. Então ele percebeu o quanto fora estupido. O mestre do clã dos ocultos estivera em sua mente o tempo todo. O bispo abaixou a cabeça em reverencia, esperando pelo golpe que inevitavelmente sorveria lhe a vida. A reputação da disciplina rígida de Hrotger só não maior do que sua predileção pela Diablerie. No entanto, houve uma surpresa.
-Retire-se, meu querido bispo, sua lição virá no tempo certo.
Sem exitar, Eilert abandonou a sacada.
Os pombos retornaram, trazendo noticias de peões e inimigos. Uns poucos “anarquistas” foram destruidos (“eles poderiam aprender um ou dois truques com os Tzimice”, pensou o antigo), mais ou menos uma duzia de mortais foram “recrutados” (“e ai está uma coisa que poderiam aprender com os Lasombra”), um brujah idiota virou pó ao levar doze tiros enquanto defendia um bando de jovens pichadores da “opressão policial”. Em um instante particularmente inspirador, Hrotger recordou o processo que gera um suspiro.
Ele fechou os olhos e tentou se lembrar de cada um dos malditos motivos pelo qual ele estava naquele pedaço do inferno. Eram muitos, e todos começavam com o nome dela.

“Adele, sua vagabunda, juro por meu sangue que antes do fim vou cuspir em seu cadáver.”

Ele sabia que não ia. Mas era uma jura agradável de se fazer. Ele não tinha nenhuma notícia dela há pelo menos cinco décadas, e isto era o suficiente para deixá-lo ainda mais deprimido do que de costume.
A verdade é que ele estava cansado demais pra continuar essa guerra ridícula. O único propósito pelo qual ele derrubou anciões e conquistou metade da Espanha foi mostrar a ela o quanto ele era forte e o quanto ele não precisava dela. Ele arrancou a cabeça de vinte príncipes só pra gritar bem alto “estou melhor sem você!”. Mas nada disso bastou. Ele ainda sentia falta daquilo que nunca teve.

O nosferatu estendeu a mão ossuda e apertou uma das aves até que se tornasse uma massa vermelha de penas e ossos, as outras aves se agitaram e fugiram desesperadas, o velho levantou-se e observou o voo desordenado dos animais.
“Vocês são mais espertos do que o sabá desse fim de mundo, e tem mais chances de sobreviver também.”

Mais uma vez, Hrotger teve ciência de que ia morrer rindo. Rindo de todos esses patifes, destes malditos jogos de poder, do Sabá, da Camarilla, de todo esse lixo patético que o fazia considerar seriamente a possibilidade de se jogar da sacada todas as noites. Ele olhou pra baixo mais uma vez. Não, não era alto o suficiente.
Ele estava cansado demais. Cansado de todas as noites dar as mesmas ordens ao mesmo bando de patifes só pra ver quem ia esfaquear quem em troca de contratos e assinaturas. E tudo isso pra que?
Pra que a rainha das cortes do sangue descesse do maldito trono e lhe desse um tapinha nas costas?

A noite estava acabando, e a paciência dele também. Ao entrar no apartamento, que poderia, na melhor das hipóteses, ser descrito como “rudimentar”, ele teve uma ideia.

Era hora de contar aos lideres o que ele sabia. De espalhar o caos e a destruição, de iniciar o banho de sangue que despertaria os antigos de seu sono. Guerra – era isso que ele precisava fazer. Dane-se a Camarilla, dane-se o Sabá, dane-se o maldito planeta.

Ele tirou o telefone do gancho e com repudio discou os números que jurou a si mesmo que nunca mais discaria.

Após um único bipe, ele disse:
- Lorde Derek, eu tive uma visão. Precisamos conversar.