terça-feira, 27 de março de 2012

A história do amor dos mortos: Dragões e sombras sobre Dresden, parte um.

Onze de outubro de 1944

A velha despertou, e por todo o matadouro, gritos de agonia se fizeram ouvir.

Com deliberada leveza, ela ordenou que sua forma de carne deslizasse pelo campo de abominações, sorvendo vitae e lamentos das pobres almas que em sua tentativa de fugir da guerra encontraram a sede de uma monstruosidade milenar.

Duas centenas de mulheres, ciganos, desertores e crianças estavam atadas em uma simbiose profana e doente. No momento certo, eles se levantariam e formariam um exército de ossos e ódio. E então a Tzimisce os jogaria ao fogo e ao abismo, de encontro a morte certa em uma batalha que eles nunca desejaram travar. Mas isto não tinha importância. Adele cairia, e isso valia qualquer sacrifício.

Era uma promessa antiga e amarga que mais de uma vez roubou-lhe a convicção. E ela estava prestes a se cumprir. A pequena flor de ébano – para Kella flor de carne – deveria deixar de existir.

Era a peça que faltava. A velha explorou seu corpo e sua mente por mais de cem mil noites e alcançou toda a maestria que a potência de seu sangue grosso permitiu.

Faltava destruir um único grilhão, a ultima mácula em sua carne imperfeita.

Ela já havia sido dragão, cervo e mariposa. Já havia sido templo, torre e espada. Já havia tomado um numero infinito de formas e levado imortais de sangue forte a loucura pela simples contemplação de seu semblante. No entanto, havia um único paradigma que ela nunca ousou quebrar.

Em sua longa jornada pelos confins do oriente, a Tzimisce aprendeu com os demônios da floresta que a flor que nasce em uma clareira verdejante nunca é tão bela e imponente quanto aquela que desabrocha em um campo de cinzas e morte. A metamorfose não escolhe o sábio, o forte, ou mesmo o preparado. Ela vem de dentro pra fora. Ela escolhe o determinado.

Ela precisava desabrochar, e para isso, destruiria o único aspecto humano que restava em sua alma apodrecida.

A metamorfista sabia que precisava retornar ao tempo em que Derek, o único sob o firmamento pelo qual ela nutria afeto, não lhe significava nada. Ela precisava do ódio dele, e faria isso destruindo Adele, sua criança amada.

Em algum lugar próximo, uma massa de bocas e pavor gemia em uníssono, implorando por uma misericórdia que não existia. A matusalém destacou uma quantidade incerta de apêndices rombudos e compridos das paredes ossudas. Era hora de trabalhar.

segunda-feira, 26 de março de 2012

A história de amor dos mortos: Dragões e sombras sobre Dresden, parte 2

Dresden, Treze de Fevereiro de 1945.


Kath entrou no salão de sombras, ao seu lado, Margareth Freyer, a templária mais feroz e leal da casa das sombras, protetora sacramentada de Adele, a flor do abismo e a rainha do sangue de ébano. E em seu peito, ela carregava uma notícia terrível que traria ódio e violência a alma apodrecida de uma anciã.

Quando as portas do salão de meias-noites se abriram, a Brujah sentiu as pernas perderem a força e sua convicção falhar, por toda a extensão do ambiente, a pura treva dançava a valsa fúnebre regida pela pequena anciã. Fios de sombra traçavam curvas sinuosas de encontro as carnes infantis da guardiã, cobrindo-a com uma camisola noturna e sapatinhos de laço vivo. O breu lhe penteava os cachos loiros com carinho e cuidado, e atrás dela, em um trono de medo, repousava a forma material do puro horror.

A uma altura incerta, um massa disforme e corpulenta borbulhava para dentro de si mesmo, ostentando dentes de escuridão opaca e uma quantidade de olhos e apêndices em constante mudança. A coisa flutuava pela sala, derramando breu líquido por vários orifícios de propósito desconhecido. Kath foi tomada pela estranha sensação de que sua mente estava se fragmentando, e após um segundo de hesitação dolorosa, a voz da anciã roubou sua dor solene:

  • Saudações, Katherine da casa dos indomáveis. Seja bem vinda a meu santuário. Entre, por favor.
  • Com sua licença, Adele, campeã da casa das sombras.
Seguida de perto por Margareth, Kath deu três passos receosos para dentro do salão de horrores. Sombras indecisas avançaram em direção a ela e subiram por suas botas militares, roubando-lhe o calor e então se distanciando com um gesto da anciã.

  • Entendo que trazes noticias de nossos irmãos no sul, Brujah.
  • Trago noticias pesarosas, vossa iminência. Dresden será bombardeada ainda esta noite, é hora de evacuar a cidade.

Adele Levantou uma sobrancelha, sem demonstrar muita surpreza.

  • Conte-me mais
  • Mil e trezentos aviões aliados cruzaram a França com quase quatro mil toneladas de bombas incendiárias e explosivas. Uma bomba para cada duas pessoas da cidade, minha senhora.

Margareth soluçou, incrédula, e calculou mentalmente qual seria a força necessária para neutralizar esse ataque, pesarosamente chegou a conclusão de que esta força simplesmente não existia naquela hora perdida. Kath continuou:

  • É necessário que a senhora de a ordem de evacuação imediatamente, visando poupar nossos soldados.

Adele abaixou a cabeça, murmurando para si mesma:

  • Eles tem aviões, nós temos dragões.
  • Temos três, senhora, e a casa Tzimisce não concordou em sacrificá-los neste combate.

A pequenina levou a palma da mão diminuta a testa, e acariciou sua têmpora levemente.
  • E quanto a Yorrance, o Koldun?
  • Ele defende nossos feiticeiros em Berlim, senhora.
  • E os soldados de carne de Verminal?
  • Em Munique, protegendo a catedral, junto com as fúrias, o implacável, o conselho dos martelos, a rosa dos ossos e a cruz de Caim.
  • E a legião das sombras da Espanha?
  • Sitiada pela França, Itália e Inglaterra, bem como pelos assassinos do oriente, contratados pelos Ventrue, e pelos Giovanni.
  • E a Wehrwulf?
  • Detendo o avanço russo, junto com Haringoth, Hans, o bando da cicatriz e meus filhos e irmãos da rosa branca da germânia.
  • Quantos temos aqui?
  • Vinte e sete cainitas, nove deles com menos de dez invernos de morte. Nós três somos as mais velhas e poderosas da cidade.
  • E quanto a Dorother?
  • Ele levou suas crias para Hamburgo ontem, obedecendo as ordens da Cardeal.

Adele contraiu os dedos, rasgando a pele delicada do rosto. Filetes de sangue escuro desceram por seu rosto, tingindo de treva o que antes era um mar tempestuoso e azulado.

  • Derek...
  • Perdão, senhora?
  • Meu criador me disse uma vez que se eu continuasse com esta guerra eu acabaria abandonada por todos, enfrentaria traições de todos os lados, quebraria promessas importantes e clamaria pela ajuda dele. E disse também que ele não viria. Maldito bastardo.
  • Senhora...Preciso de sua ordem, o tempo é curto.
  • Vários séculos atrás, um parente de sangue meu ergueu a primeira parede de pedra que ainda hoje é parte desta cidade. Em morte, eu dediquei metade de meus anos a defendê-la. Sob meu comando, ela sobreviveu a pestes, religiões, franceses e todo esse tipo de lixo. Aqui é minha casa, e digo que vou ficar e defendê-la.

Margareth se ajoelhou, deixando que os longos cabelos escuros caíssem sobre o casaco militar.

  • Hoje e sempre, sou tua espada, minha mestra.

Katherine tentou encontrar palavras para protestar e sentiu a raiva aquecer seu sangue.

  • Vossa iminência, com todo o respeito a seu julgamento, não existe nenhuma chance de vitória.
    Um riso timido escapou dos lábios de Adele, preenchendo o salão com uma alegria infantil e alienigena. Era algo que simplesmente não deveria existir ali.

  • É isso que os mestres do clã Brujah, os “indomáveis”, ensinam a suas crianças? Que estar em menor número enfrentando um inimigo com armamento superior é motivo para se render? Pobre criança...Saiba que se eu precisar pintar o firmamento com o nanquim do abismo assim o farei, e que por minha vontade nem mesmo uma única criança de peito vai perder seu sono essa noite. Entenda isso, patética desculpa para uma templária: Eu sou Lasombra, e os Lasombra nunca perdem.

Kath corou, forçando o sangue a lhe dar força e ódio “Eu...preciso...resistir” Margareth recuou um passo e puxando fios de escuridão, criou uma lâmina comprida e reta. Ela só esperava um comando.

  • Senhora... Preciso saber quais são suas ordens.
  • Diga a todos que quem quiser fugir não será punido, mas também não será bem vindo em minhas terras. E isto vale para aqueles que “estratégicamente” se ausentaram nas ultimas semanas.
  • Sim...Entendido. Tenho um ultimo aviso, se a senhora me permitir.
  • Claro, criança, fale de uma vez.
  • Uma Tzimisce russa chamada “Kella” avisou ao arcebispo de Barcelona que atacaria Dresden quando os céus fossem pintados de vermelho. Por intermédio de seus mensageiros, ele ordenou que eu lhe entregasse este aviso caso a senhora se recusasse a abandonar a cidade.

A pequenina mordeu os lábios, e uma fumaça azeviche e perfumada levantou das gotículas que tocaram o chão. Não – Hrotger não mentiria para ela – Não depois de todo esse tempo.

  • Ordeno que todos os cainitas a mim subordinados abandonem a cidade imediatamente, incluindo você, minha querida templária. Que seus carniçais os conduzam até Munique. Eu vou ficar e lutar.

Margareth se ajoelhou novamente, cerrando os punhos.

  • Perdoe-me, senhora, mas fiz um juramento perante o abismo e perante a taça. Enquanto houver vitae em minhas veias, lutarei para garantir tua glória e teu esplendor. Sou tua espada, e súplico humildemente que não traves teu combate sem mim.

Adele levantou os cantos dos lábios com gentileza, formando covinhas brincalhonas e angelicais.

  • Humildade nunca foi uma qualidade de que um Lasombra pudesse se orgulhar, minha templária. Kella é uma matusalém, e na companhia de meu senhor enfrentou dragões da Rússia e participou do ritual que levou ao sono a mais velha monstruosidade do clã Nosferatu. Ela já derrotou uma das serpentes do mundo morto e provavelmente destruiria a coragem de teu coração de guerreira simplesmente olhando em teus olhos. Ordeno que auxilies Katherine na evacuação da cidade, minha querida, e que partam imediatamente.

As duas guerreiras foram pegas de surpresa pela suavidade das palavras de Adele. Ela estava pronta para entrar em um combate que sabia que estava perdido. E ainda haviam mil e trezentos aviões rumando para a cidade.

Katherine se despediu formalmente e começou a marchar, seguida de perto pela hesitante Margareth. Acompanhada pelas trevas silenciosas, a garota cujo corpo não envelheceu mais do que quatorze invernos, manifestou seu poder de forma odiosa:

  • Maldito sejas tu, Derek, que deu a mim teu amor e a ela tua lealdade. Não vou me ajoelhar e pedir ajuda – me ensinas-tes a não me curvar a ninguém – Saibas que neste momento eu te odeio mais do que tudo no mundo, e que vou rasgar, morder e violar a pele imunda de sua confidente e jogar os pedaços sangrentos dela aos cães do abismo, só pra te mostrar o quanto te desprezo e o quanto te amo. É por você, meu senhor, que vou permitir que o reino que construí desfaleça diante de meus olhos. Que os dois milhões de mortais que protejo derramem sangue e lágrimas sobre tuas mãos, que morram todos! Que sofram tanto quanto vou sofrer quando eu mesma rasgar teu peito e tomar teu coração pra mim! Maldito, mil vezes maldito! Por que você escolheu que fosse assim?

A pequenina se esvaia em lágrimas e sombras. Ela ordenou que seu servo chamasse Dagon e convocasse a legião dos famintos. Ela pagaria o preço, qualquer que ele fosse. Do lado de fora, duas templárias confusas assistiram ao nascimento de nuvens escuras, vivas e viscosas. A notícia do ataque era vomitada por rádios e torres em todos os cantos, e mortais corriam desesperadamente as centenas para seus porões. Duas duzias de vampiros foram convencidos a abandonar a cidade imediatamente pelos túneis apertados que apenas os mortos conheciam. E ao longe, uma sirene gritou de horror.

Os aviões estavam chegando.

sábado, 10 de março de 2012

A história do amor dos mortos: Lágrimas de Julho


Hrotger se espreguiçou nos restos da cama improvisada enquanto se preparava para sua noite especial. Nesta noite singela, ele comemoraria seu décimo primeiro aniversário de morte, e o quadragésimo de existência.
A seu lado, dormiam um alaude sem cordas e uma virgem sem coração. Ele a segurou com o esmero que só aqueles que odeiam a beleza acima de tudo podem ter.
Após arrancá-la do leito de palha em um silêncio sóbrio e sublime, ele a carregou nos braços através da cidade que dormia, para as imensidões dos campos além dos lobos e mortos. A viagem foi abençoada por uma noite quente e sem estrelas, daquelas que só a indiferença cruel de julho pode trazer.
Quando Hrotger alcançou seu tumulo, ele sorriu.
Sobre a terra intocada, havia uma rosa sem cor ou cheiro, e ela significava mais do que tudo no mundo. Adele ainda se lembrava.
O vampiro deitou a mulher sobre o chão, e deixou que seus lábios rachados e cheios de pus fossem de encontro aos dela, neste instante de carinho, a besta uivou forte em seu peito, sentindo que por um instante foi derrotada.
Após um longo minuto, ele percebeu que sua mão repousava sobre a cavidade que ele entalhou com as unhas no peito do cadáver. Era feia, vazia. Não havia naquele corpo um único sorriso ou desejo, o eterno sono de morte agora lhe abraçava em sua paz serena e egoísta.
Hrotger deitou-se ao lado dela, tendo o cuidado de não macular os cabelos loiros e sem vida de sua companheira com sua secreção biliosa. Uma gota furtiva tocou a pele tosca e torcida do nosferatu, e foi logo seguida por várias outras. O vampiro suspirou, tentando conter a fúria que pulsava dentro de si. Ele não havia dado a ninguém o direito de chorar por ele.

"Sangue, caminhe por mim."

Ao fim do pequeno encanto, as unhas do cainita saltaram e seus dedos se contorceram e esticaram, ficando grossas e pontudas, ele acariciou o rosto de sua amante pesarosamente, e com velocidade e determinação, ele partiu a mandibula dela.
Não havia sangue para jorrar. Era uma casa seca, debilitada, deformada. A semelhança entre os rostos dos dois açoitou com crueldade o orgulho do nosferatu. Em um sorriso torto, morto e involuntário, ele entendeu que eles tinham o mesmo vazio no peito.
Ele se entregou ao abraço da terra, e enquanto mergulhava no chão molhado da mãe Rússia, ele finalmente chorou.
Perto dali, uma garotinha apertava a mão de seu companheiro com força e tristeza. Os dois estavam envoltos no manto da ausência, e o mundo inteiro era alheio a presença deles.
Derek sorriu com gentileza.
"Creio que seja hora de partir, minha pequenina."
A garota abraçou a cintura de seu mestre sem tirar os olhos do corpo inerte da mortal.

"Eu queria dizer a ele que sinto muito."

"Isso faria diferença?"

A vampira balançou a cabeça negativamente, sorrindo.

"Sabe, amor, as vezes me pergunto se o certo é me manter distante."

"Não querida, não é. Mas é a maneira que temos de fazer com que menos lágrimas toquem o chão. O tempo e o sangue são nossos carcereiros, e só eles tem o poder de te tirar dos sonhos dele. Nós o protegeremos enquanto ele não for forte o suficiente para perceber isso."

O ancião levantou o dedo indicador e desejou que as sombras daquela noite sem luz saciassem sua fome com o corpo da mulher, e assim foi feito.

"Parabéns pelo seu aniversário, Hrotger, espero que encontres tudo aquilo que procuras."

A criança se surpreendeu com o tom mórbido que sua voz tomou, e quando ela levantou o rosto, percebeu que os olhos de seu amor, que antes eram azulados e brilhantes, agora refletiam o mar das trevas da alma em todo seu esplendor doentio. Ele estava fazendo uma pergunta ao abismo, e em breve, seus lábios perfeitos sussurrariam uma das verdades viciadas do outro lado do espelho.
A vampira esfregou sua bochecha magra nas costas da mão de seu mentor, e depois, beijou-a demoradamente.
A voz do abismo quebrou o silêncio da carícia. Era lenta, insensível e sem calor.

"Este corpo imortal irá te amar para todo o sempre, criança."

Sobre o túmulo de um leproso, uma rosa sem cor desistiu de lutar e finalmente morreu.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Uma alma que sorri, ato V: O deus que desceu ao inferno

Depois de dois dias em que eu estava tremendamente confuso e triste, acordei com o som de vários estranhos entrando em meu cárcere. Eu me levantei para recebê-los, mas golpearam minha cabeça rápido demais e o impacto da arma de choque na minha coxa foi forte demais. Doía pra caramba. Mas o que me incomodava de verdade era eu não conseguir me mexer enquanto um imbecil de jaleco e roupa tática enfiou a agulha no meu braço. Ele esvaziou a seringa, e eu fiquei olhando pra ele, sem entender o que estava acontecendo. Aparentemente, ele compartilhava de minha reação. Meus lábios começaram a formigar, minha visão ficou um pouco turva, e então ele colocou outra agulha no mesmo lugar e repetiu o processo. Eu perdi a consciência e mergulhei em meu sono insone.
Acordei em uma viatura que realizava uma ascendência sinuosa por colinas cheias de flores brancas e azuis iluminadas por um céu de baunilha tão claro que chegava a doer. O cheiro quente e leve daqueles campos alheios ao sofrimento me batia com mais força do que qualquer homem ou deus que já tivesse cruzado meu caminho. Era tudo tão bonito, tão puro, tão intocado, que eu simplesmente não conseguia entender. Eu não sabia o que eu tinha que fazer para roubar o sorriso jocoso de cada flor e de cada nuvem. O ar fugia de meus pulmões enquanto lágrimas azedas lavavam meu rosto. Nenhuma das obscenidades blasfemas que eu já havia presenciado era tão seco, tão bruto, tão tormentosamente cruel.
Não sei bem o que aconteceu. Mais eu queria matar. Queria matar tudo que existia.
Uma cortina vermelha caiu sobre meus olhos, ódio em sua forma mais pura. Quando a consciência retornou, eu estava socando a grade de proteção com tanta força que meus pulsos sangravam. O veiculo estava parado, e eu estava só. Sem algemas, sem mordaça, sem flores.
Eu sai do carro e o que vi me fez gritar de tanto rir.
Era um hospício. Um maldito hospício. Agora sou um louco que precisa de cuidados?
Examinei o perímetro. Ao longe, murou absurdamente altos feitos de lancetas de metal não apresentavam nenhum portão a vista. Haviam três construções ali. Obras de arte da feiura e do mau gosto. Eram grandes, cinzentos, opressores. Centenas de pequenas janelas abrigavam pares de olhos imóveis que esperavam com extrema expectativa por qualquer movimento meu. Eu lhes concedi isso e me movi em direção a construção mais próxima.
Havia um peso estranho em meus pensamentos. Cansaço. Dúvida. Receio. É difícil ter certeza. A baunilha dos céus agora sangrava, em tons de vermelho e púrpura, como se deus estivesse inquieto. Curiosamente, isso não me deixou em paz.
As portas de madeira escura cederam com facilidade. Cupins haviam devorado boa parte do que um dia havia sido um entalhe de algo que eu poderia, na melhor das hipóteses, dizer que era uma serpente, uma balança e algumas outras formas menos reconhecíveis.
Eu entrei em silêncio, e percebi que mais uma vez eu estava sozinho.
Nunca, nunca mais, eu deixei de estar sozinho.

Uma alma que sorri, ato IV: a deusa que me quer

Passei os próximos meses trancado em uma sala de paredes amareladas e feias.
O único contato que tive com outras pessoas neste período eram os guardas que semanalmente retiravam as fezes e os lençóis sujos da cela. Sete deles me imobilizavam a cada vez, permitindo que eu sentisse o calor de seus corpos e o cheiro de seu medo. Eu sorria para eles enquanto minha mente fantasiava a morte e o sexo de cada um. Eles nunca entendiam. Nunca olhavam pra mim. Nenhum deles queria minha sabedoria, e eu nunca – nunca mesmo – vou conseguir entender como alguém pode adorar a ignorância.
Em uma noite particularmente inspiradora, quer dizer, acho que era noite, fazia algum tempo que eu não via o mundo lá fora, homens armados com escudos e cassetetes entraram na sala enquanto outros me prendiam a uma maca. A curiosidade me compelia a testar a rigidez daqueles bastões contra os corpos de meus captores, mas havia pouco propósito nisso. Atravessamos o corredor e em alguns minutos eu vi aquele inferno de gente mais uma vez. Todos gritando, me ovacionando “Seu filho da puta dos infernos”, “Seu monstro maldito”, “O diabo encarnado”, “você vai virar minha puta seu doente”. Ah, sim, o companheirismo entre os encarcerados parecia estar mais forte do que nunca. Senti orgulho disso. Se eu pudesse acenar para eles, eu teria o feito. Mas me contentei em imaginar uma orgia sem precedentes. Em imaginar o horror que o deus dos outros teria em contemplá-la. Sim, era um bom plano.
Minha jornada terminou em uma pequena sala extraordinariamente limpa. Ela era dividida em duas por uma parede de vidro, e de cada lado, havia um telefone. Os policiais me deixaram o mais em pé que podiam, e encostaram o plástico frio do aparelho em meu rosto. E então eu a vi.

Era alta, magricela, loira e feia. Uma daquelas garotas espertas o suficiente para sair da faculdade sem transar com todos os professores e idiota o suficiente pra trabalhar com gente feito eu.
Ela pegou o telefone do lado dela da sala e sorriu pra mim. E por todos os motivos errados, eu a desejei demais.

Ela falava alguma coisa sobre seu interesse em “meu caso” enquanto eu imaginei o sabor de sua língua e o cheiro de sua boceta. Acho que foi ai que eu reparei que eu nunca tinha penetrado em uma mulher. Quando comecei a rir, ela parou de falar.
Eu concordei com o que quer que ela tenha dito e com a caneta na boca, assinei um X na linha que os guardas apontaram.
Quando ela saiu, tentei o máximo que pude decorar as linhas do traseiro dela. Quando me voltei a seu rosto, vi que ela me contemplava. Ela levantou os cantos dos lábios e eu vi covinhas infantis se formando. Era um desafio, um chamado. E eu precisava tê-la.
Eu me senti desejado. E isso foi maravilhosamente perturbador. Eu não sabia o que fazer e isso me atormentava.
Hoje em dia eu já não penso mais nessas coisas. Eu já entendo demais das coisas que ninguém devia saber. Eu sei o que sou, pra ela, pra todo mundo. E deus não se arrepende jamais.