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sexta-feira, 15 de março de 2019

V5 - Dante & Ingrid



O Nosferatu curvou-se diante do notebook, lambendo os beiços teatralmente, deixando a mostra os dentes tortos e amarelos. A tela exibia vários terminais diferentes, cada um uma serpente, um predador a espera do momento oportuno para o bote.


Dante aguardou pacientemente o retorno de seus pequenos espiões digitais, e quando a resposta chegou, enviou uma mensagem para sua assistente.


“Game on”


Ele disparou a rotina de monitoramento e ouviu um telefone tocar três vezes antes de ser atendido. A voz adocicada de Ariel iniciou o ataque.


“Boa noite, me chamo Vivian e ligo em nome da operadora Oi. Gostaria de falar com-” (interrompida)


“Eu não quero comprar nada.” Disse uma mulher rouca e insatisfeita por ter sido incomodada.


“Não estou vendendo nada senhora. Você por acaso se chama Eva? Devido a uma mudança de planos sua fatura vai ficar mais barata. Só preciso confirmar uns dados com a proprietária.”


“Ok, sou eu.”


Game over, pensou Dante. Era início da noite e o ancião se sentia extremamente sonolento e vazio. As letras brancas no display se misturavam quando sua mente vagava por mais que um instante. Alguma coisa estava mudando, alguém o estava chamando. Alguém perigoso.
“Eu preciso que a senhora clique no ícone que apareceu na área de trabalho duas vezes. Na nova tela ele vai pedir pra que você digite a senha de seu roteador, que está num adesivo embaixo do aparelho”


A garota era jovem, mas levava jeito pra coisa. Jovens aprendem rápido demais.


Um dos terminais do notebook saltou para a frente da tela com as credenciais de acesso gentilmente cedidas pela senhora Eva. O veneno surtia efeito e os logs do sistema-vítima eram rapidamente clonados.


“Muito obrigado e tenha uma boa noite. Peço que a senhora aguarde um instante para avaliar a chamada. No próximo mês sua fatura já virá com o desconto.”


Fim da chamada. Fim da resistência. Dante digita sem dificuldade os parâmetros do ataque final.


msf> ../ msfvenom logRetriever.py -Ss -Sn 0 Eva0 Eth0 pbloom.ssh


O instante antes da confirmação do sucesso carrega em si todo o peso do mundo. A ansiedade salta e os pulmões podres buscam inutilmente por ar. Vazio e medo fagulham até o surto de adrenalina correr pelas veias.  O Nosferatu batuca a mesa com as pontas dos dedos e, quanto o resultado aparece na tela, o segundo de êxtase que o toma quase faz com que ele esqueça que está completa e verdadeiramente morto.


“Pegamos o filho da puta” diz a mensagem de sua aprendiz. Ela já está lançando a próxima etapa do ataque, referenciando os registros do cartão de crédito da mãe do dono de um dos maiores sites de revenge porn do Brasil com os dados usados para alugar os servidores de hospedagem na Croácia.


Dante se reclina sobre a cadeira e imagina os nós na rede que levam o computador de uma secretária aposentada até os confins mais sórdidos da pornografia amadora. Eva certamente não sabe de nada, mas isso não importa. Com os dados em sua tela, ele dispara o programa que gera os relatórios e os envia para para a polícia federal por meio de um conjunto de camadas que passa por 17 países cujas legislações são tão radicalmente diferentes que tentar rastreá-lo levaria anos, na melhor das hipóteses.


Sua cliente estaria satisfeita e lhe devia um favor. Uma semana de pesquisa, uma ligação, uma guerra contra oponentes desarmados. Sempre existe um elo frágil, e em noventa e nove por cento dos casos, esse elo frágil usa Windows desatualizado.


“Vou ir tomar um lanche. Avisa se quiser que eu traga alguém da rua”. Diz a última mensagem de Ariel. Uma moça de classe, certamente.


Ele não responde. Ainda haviam muitos negócios a serem tratados essa noite. Três mensagens. A velha bruxa dizia alguma coisa sobre o fim do mundo e cristais de Feng Shui. A Baronesa queria uma reunião urgentemente para discutir planos para uma guerra que está para acontecer desde que algum português bêbado aportou em Vera Cruz. Ingrid simplesmente disse ‘me chame‘.


Ingrid era a prioridade, sempre. Ele ligou para o chefe de segurança e pediu para que ele deixasse a visitante subir. Dante gostava de charadas e Ingrid era uma bastante difícil de decifrar. Desligou o notebook e a tela, agora escura, refletia sua face distorcida.


O Nosferatu roçou sua bochecha quitinosa com as unhas. A pele era seca e frágil, e mesmo um leve toque fazia com que pús e fedor o permeassem.  Seu nariz era comprido, torto, quebrado umas tantas vezes em vida e outras tantas em morte, e seus olhos amarelos e diminutos o denunciavam como um eterno predador.


A porta do escritório se abriu, e a voz baixa e arrastada da visitante se fez presente “Saudações, rei rato. Trago-lhe oferendas.”


Ingrid era jovem, ousada e petulante. Vestia um casaco rosa roubado e jeans. O cabelo claro era ocultado pelo capuz e o pescoço pelo cachecol. Não fazia frio. Ela tirou as mãos dos bolsos e fez uma referência lenta e teatral, ainda curvada, levantou o rosto e sorriu. “O senhor fede como a peste. Em minha próxima visita, minha oferenda será de detergente”.


“Ingrid, querida” disse Dante, pausando em cada sílaba e medindo a reação da Malkaviana. “Ainda não tive oportunidade de lhe agradecer por nossa última conversa. Permita-me não destruí-la como forma de pagamento.”


Ele sorriu. Ela não.


“É muita gentileza de sua parte, meu bom senhor. No entanto, para a conversa desta noite será necessário um pagamento mais...tangível”.


“Isso irá depender do que você me oferecer, que-ri-da”.


Ingrid sentou-se no chão em uma meia-lótus. Fitou o vazio por um longo instante e sussurrou. “O senhor conhece o sabá?”


Dante, surpreso, levantou algo que em algum momento foi uma sobrancelha. “Mais do que gostaria. Porquê?”


Ingrid, aparentemente surpresa, respondeu “Não importa. Eles foram embora. O senhor lembra da estrela dos pesadelos?”


“A semana dos pesadelos?”


“Não. A estrela vermelha dos pesadelos. Não aquela dos comunistas. Aquela dos indianos”


“Sim. Eu me recordo.”

“Eu sonhei com ela. Lá naquele país dos terroristas. Ela está brilhando lá e o Sabá está indo matar ela, mas os velhos não querem por que eles são comunistas e tem medo dos pesadelos.”


Dante suspirou e mais uma vez agradeceu por ter instalado um sistema de microfones escondidos na sala. Ele precisaria ouvir essa conversa mais algumas vezes no futuro. A memória da semana dos pesadelos ainda lhe era pesarosa. Ele passou várias noites cuidando de seu amigo Abraham e procurando uma maneira de fazer o sangramento e os gritos cessarem. Ele falhou e Abraham se esvaiu. Ingrid continuou:


“Ai eu falei com a bruxa e ela disse que isso era porque pro diabo se reza olhando pro oeste, o que faz sentido, se você for pensar bem. Ela não reza pro diabo por que ela é bruxa e as bruxas só rezam pra terra. Você tem rezado pro diabo, senhor-Rei-roedor?”


O Nosferatu sorriu. Francisca, a bruxa Malkaviana que deve ser a vampira mais velha dessas terras, não sente o chamado. Ou talvez sinta e não perceba.


“Eu não sou comunista.” Respondeu Dante.


“Ah. E também” disse  Ingrid “tinha um primo seu vindo buscar quem não fosse pra lá. Acho que chama Tuco. Nick Tuco.”


Dante, movendo-se rápido demais para que olhos jovens pudessem observá-lo, girou a chave de segurança embaixo da mesa e digitou a senha de doze dígitos. Grades pesadas caem sobre as janela de ambos os lados, bem como sobre a porta, e  um notebook começou a bipar insistentemente sobre a mesa próxima. Dante saltou para a cadeira próxima e inseriu a senha de desbloqueio da máquina. Ingrid protestava pela falta de atenção, mas o Nosferatu encontrava-se em outra realidade.


ShrekNET já não mais existia, mas a mão armada do clã ainda espreitava cantos obscuros da rede. Dante lançou hideByMe, o programa que é responsável por checar as entradas e saídas dos terminais de seus aliados. Um a um, todos retornaram resultados positivos. O vampiro suspirou aliviado. As máquinas dessa rede precisam ser reativadas com uma senha cuja cifra só o clã conhece, caso alguma falhe, toda a rede é notificada. Seus aliados estavam (presumivelmente) seguros, pelo menos por enquanto.


Ingrid continuava “E aí eu disse pro guri que malkaviano não era bagunça e enfiei a cara dele no asfalto. Ei, posso ir embora?”


Dante retornou a sua mesa principal e inseriu o código de liberação da porta principal.


“Obrigado querida. Você me deu muito no que pensar. Por gentileza, diga a senhora Francisca que preciso conversar com ela. Sobre o fim do mundo e essas coisas.”

“Ah, digo sim, ela vai ficar bem feliz. Fim do mundo tem sido o assunto favorito dela nessa semana. Boa noite senhor Dante, é sempre um prazer fazer negócios com o senhor.”


Ela acena levemente e sai. Dante aciona as grades de proteção da porta novamente. Com o telefone em mãos, cancela todos os outros compromissos da noite e envia uma mensagem a Ariel.


“Tenho um novo alvo. Base64. As instruções vão estar lá quando você chegar. Não volte pra cá até que eu diga que é seguro.”  

A Malkaviana responde em poucos momentos “OMW”. On my way. O Nosferatu, só e preocupado, ativa o hideByMe uma vez mais.

sábado, 10 de março de 2012

A história do amor dos mortos: Lágrimas de Julho


Hrotger se espreguiçou nos restos da cama improvisada enquanto se preparava para sua noite especial. Nesta noite singela, ele comemoraria seu décimo primeiro aniversário de morte, e o quadragésimo de existência.
A seu lado, dormiam um alaude sem cordas e uma virgem sem coração. Ele a segurou com o esmero que só aqueles que odeiam a beleza acima de tudo podem ter.
Após arrancá-la do leito de palha em um silêncio sóbrio e sublime, ele a carregou nos braços através da cidade que dormia, para as imensidões dos campos além dos lobos e mortos. A viagem foi abençoada por uma noite quente e sem estrelas, daquelas que só a indiferença cruel de julho pode trazer.
Quando Hrotger alcançou seu tumulo, ele sorriu.
Sobre a terra intocada, havia uma rosa sem cor ou cheiro, e ela significava mais do que tudo no mundo. Adele ainda se lembrava.
O vampiro deitou a mulher sobre o chão, e deixou que seus lábios rachados e cheios de pus fossem de encontro aos dela, neste instante de carinho, a besta uivou forte em seu peito, sentindo que por um instante foi derrotada.
Após um longo minuto, ele percebeu que sua mão repousava sobre a cavidade que ele entalhou com as unhas no peito do cadáver. Era feia, vazia. Não havia naquele corpo um único sorriso ou desejo, o eterno sono de morte agora lhe abraçava em sua paz serena e egoísta.
Hrotger deitou-se ao lado dela, tendo o cuidado de não macular os cabelos loiros e sem vida de sua companheira com sua secreção biliosa. Uma gota furtiva tocou a pele tosca e torcida do nosferatu, e foi logo seguida por várias outras. O vampiro suspirou, tentando conter a fúria que pulsava dentro de si. Ele não havia dado a ninguém o direito de chorar por ele.

"Sangue, caminhe por mim."

Ao fim do pequeno encanto, as unhas do cainita saltaram e seus dedos se contorceram e esticaram, ficando grossas e pontudas, ele acariciou o rosto de sua amante pesarosamente, e com velocidade e determinação, ele partiu a mandibula dela.
Não havia sangue para jorrar. Era uma casa seca, debilitada, deformada. A semelhança entre os rostos dos dois açoitou com crueldade o orgulho do nosferatu. Em um sorriso torto, morto e involuntário, ele entendeu que eles tinham o mesmo vazio no peito.
Ele se entregou ao abraço da terra, e enquanto mergulhava no chão molhado da mãe Rússia, ele finalmente chorou.
Perto dali, uma garotinha apertava a mão de seu companheiro com força e tristeza. Os dois estavam envoltos no manto da ausência, e o mundo inteiro era alheio a presença deles.
Derek sorriu com gentileza.
"Creio que seja hora de partir, minha pequenina."
A garota abraçou a cintura de seu mestre sem tirar os olhos do corpo inerte da mortal.

"Eu queria dizer a ele que sinto muito."

"Isso faria diferença?"

A vampira balançou a cabeça negativamente, sorrindo.

"Sabe, amor, as vezes me pergunto se o certo é me manter distante."

"Não querida, não é. Mas é a maneira que temos de fazer com que menos lágrimas toquem o chão. O tempo e o sangue são nossos carcereiros, e só eles tem o poder de te tirar dos sonhos dele. Nós o protegeremos enquanto ele não for forte o suficiente para perceber isso."

O ancião levantou o dedo indicador e desejou que as sombras daquela noite sem luz saciassem sua fome com o corpo da mulher, e assim foi feito.

"Parabéns pelo seu aniversário, Hrotger, espero que encontres tudo aquilo que procuras."

A criança se surpreendeu com o tom mórbido que sua voz tomou, e quando ela levantou o rosto, percebeu que os olhos de seu amor, que antes eram azulados e brilhantes, agora refletiam o mar das trevas da alma em todo seu esplendor doentio. Ele estava fazendo uma pergunta ao abismo, e em breve, seus lábios perfeitos sussurrariam uma das verdades viciadas do outro lado do espelho.
A vampira esfregou sua bochecha magra nas costas da mão de seu mentor, e depois, beijou-a demoradamente.
A voz do abismo quebrou o silêncio da carícia. Era lenta, insensível e sem calor.

"Este corpo imortal irá te amar para todo o sempre, criança."

Sobre o túmulo de um leproso, uma rosa sem cor desistiu de lutar e finalmente morreu.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

História de amor dos mortos - Um conto sobre o fim



Os dois antigos contemplavam o céu de Atlanta serenamente. As nuvens carregadas indicavam a tempestade vindoura, e as sirenes estridentes das ambulâncias e viaturas davam um tom especial aquele inferno de concreto.
O bispo Eilert removia as cascas das infindáveis feridas amareladas de seu rosto, que estouravam em um pus rubro e gosmento que com certa dificuldade movia-se pela face entrincheirada do Nosferatu. O companheiro dele não era muito mais atraente.
Hrotger tinha o nariz pontudo e esponjoso que pendia sob os lábios inchados e sem cor. Por todo seu corpo, protuberâncias escuras e molhadas davam a ele o aspecto de uma vítima terminal da praga negra. Seus olhos verde musgo contrastavam ferozmente com sua forma monstruosa. Eram de uma selvageria tão grande que mesmo inquisidores de determinação inferior não ousavam contemplá-los. Talvez fosse o par de olhos mais valioso de todo o sabá, afinal, foram eles que contemplaram os sinais que o profeta mais antigo do clã traçou na própria carne antes de ser tragado pelo fogo dos obuses russos. Eles guardavam os segredos que o Priscus não revelaria a ninguém antes dos antigos se levantarem.

Hrotger observou a miriade irritante de arranha céus cinzentos que se estendia a sua frente, e mentalizou a destruição de centenas de casas coloniais inglesas. Aos poucos, o panorama em sua mente deu vida a carros feios, lojas inúteis e a uma infinidade de mortais igualmente inúteis. Em seguida, prédios grandes, aeroportos, corporações, e todo lixo que fazia a humanidade feder da maneira peculiar que só eles conseguiam. Então ele imaginou fogo e trevas correndo pelas ruas e devorando tudo em seu caminho, imaginou seus tataravós despertando e fazendo com que o precioso império de vidro que os filhos de Abel levaram séculos para construir ruísse em uma única noite.

Este era o conforto cruel do ancião. Se a espada de Caim falhasse e o mundo morresse, ele morreria sorrindo.

Eilert limpou a garganta, tentando inutilmente quebrar a concentração de seu companheiro. Era difícil entender o que se passava na cabeça dele, não só por ele ser mais forte e mais velho do que boa parte dos vampiros que ele já viu, mas por que ele já ouviu do próprio falecido cardeal Monçada que os pensamentos de Hrotger pertenciam apenas a ele mesmo. Não havia magica ou poder do sangue que pudesse invadi-los. E essa era uma das principais razões pela qual o mais rancoroso dos mortos havia conservado seu lugar por tanto tempo.
O bispo se levantou e olhou para a rua que estava a dezenas de metros abaixo deles. Curioso como as duas limousines paradas em frente ao enorme complexo empresarial não chamavam atenção alguma. Ele chegava a ter raiva disso. A duzentos anos atrás, um cainita tinha que ser muito esperto para sobreviver a fúria implacável dos caçadores. Hoje em dia só era necessário um celular e meia duzia de bajuladores.
Hrotger levantou o indicador ossudo e o pousou sobre uma taça que nem de longe parecia conter vinho. O liquido era de um vermelho escuro e vivo que parecia extremamente insatisfeito em ser mantido no carcere de vidro. O Nosferatu traçou giros irregulares na taça com extrema lentidão antes de arremessá-la ao asfalto. Eilert não protestou, e em segredo lamentou pelo infortuno destino do pobre Tzimisce que havia desagradado o Priscus por todos os motivos errados.
- Sabe, meu querido bispo, não entendo a estima que vocês americanos tem por soldados desobedientes. A voz do antigo soou rouca e baixa. Um chiado desanimado proferido por um leão que tinha consciência de que a morte era próxima. Ele continuou – Em minha antiga casa, e que Satã a consuma, teríamos esfolado esta patética desculpa para um guerreiro Tzimisce exatos dois segundos após ele faltar com respeito a seu lorde.
Eilert chiou baixo, prevendo mais uma conversa desagradável com o velho.

-Responderei a esta pergunta, vossa excelência, se o senhor me responder qual é o motivo pelo qual os antigos de nosso clã tem um desprezo tão grande pela América.

Hrotger assentiu calmamente, enquanto inspecionava a mente dos pombos da janela próxima.
Não eram espiões. Não ainda. Com um comando mental ele ordenou que os sete pássaros gordos sobrevoassem o perímetro da cidade e lhe trouxessem um relatório sobre as ações de cada um de seus batedores.
-Você cria concepções errôneas a meu respeito, meu bom Eilert. Não nutro nenhuma mágoa especial por este pedaço de terra. Eu o odeio como odeio todos os outros recantos de imundice deste universo condenado.
Não havia nenhuma alteração em seu tom de voz ou em seus olhos, mas mesmo assim, o bispo sabia que ele estava mentindo. Sim – havia muito espaço na alma do vampiro para odiar, mas este lugar ocupava um lugar tremendamente especial no coração negro do Nosferatu.
Era até compreensível, dependendo do ponto de vista. O velho nunca havia feito questão de sair de sua casa ancestral, nunca havia pedido pelo status que lhe foi conferido e em nenhum instante de sua não-vida ele desejou travar uma guerra que, aos olhos dos verdadeiros mestres do sabá, era tremendamente fútil.
-Então o senhor não nutre nenhum ressentimento por estar longe de sua casa?
O velho tentou lembrar-se de como era o processo que fazia seus pulmões crescerem e se contraírem, gerando um suspiro. Ele não conseguiu.
- Permita que este velho lhe conte uma história desagradável, meu querido bispo. Ela começou quando uma vagabunda feriu meu orgulho e fez com que eu desejasse a morte do mundo, ela continuou quando uma outra vagabunda fez minha pele derreter e esculpiu minha face nisto que você observa agora. Anos mais tarde, eu vi o fogo que saia da igreja queimando uma das meretrizes junto com os únicos três seres da criação que eu aprendi a respeitar. Séculos mais tarde, veio a convenção dos espinhos e eu cuspi na cara de Von Bauren e sua corja de filhos da puta, me voltei para Vasantasena e com a orientação dela defini o que hoje os jovens chamam de Sabá. Pareceu ótimo na época, mas a falta de controle de qualidade me faz acreditar que foi a pior empreitada de que já participei. Assinei tratados, conquistei cidades, derrubei governos, estuprei príncipes e primógenos.
Eu vi linguagens nascerem e morrerem, vi fés inteiras sendo destruídas. E acredite, me envolvi diretamente em mais de um destes acontecimentos. Eu presenciei o apodrecimento de cada uma das maravilhas perversas dos últimos oitocentos anos. Me diga, boa criança, existe algo que eu possa sentir além do ódio?

Eilert se contraiu, irritado. Ele esperaria ouvir uma história assim de um toreador choroso, não do mais respeitado dos mestres Nosferatu do sabá. As histórias sobre o poder e a crueldade de Hrotger eram tão numerosas quanto as cabeças que ele já havia posto na ponta da lança. E lá estava ele, se lamuriando pelo vitae derramado pelos séculos.
Uma pontada de dor desconfortável atingiu-lhe a têmpora. Então ele percebeu o quanto fora estupido. O mestre do clã dos ocultos estivera em sua mente o tempo todo. O bispo abaixou a cabeça em reverencia, esperando pelo golpe que inevitavelmente sorveria lhe a vida. A reputação da disciplina rígida de Hrotger só não maior do que sua predileção pela Diablerie. No entanto, houve uma surpresa.
-Retire-se, meu querido bispo, sua lição virá no tempo certo.
Sem exitar, Eilert abandonou a sacada.
Os pombos retornaram, trazendo noticias de peões e inimigos. Uns poucos “anarquistas” foram destruidos (“eles poderiam aprender um ou dois truques com os Tzimice”, pensou o antigo), mais ou menos uma duzia de mortais foram “recrutados” (“e ai está uma coisa que poderiam aprender com os Lasombra”), um brujah idiota virou pó ao levar doze tiros enquanto defendia um bando de jovens pichadores da “opressão policial”. Em um instante particularmente inspirador, Hrotger recordou o processo que gera um suspiro.
Ele fechou os olhos e tentou se lembrar de cada um dos malditos motivos pelo qual ele estava naquele pedaço do inferno. Eram muitos, e todos começavam com o nome dela.

“Adele, sua vagabunda, juro por meu sangue que antes do fim vou cuspir em seu cadáver.”

Ele sabia que não ia. Mas era uma jura agradável de se fazer. Ele não tinha nenhuma notícia dela há pelo menos cinco décadas, e isto era o suficiente para deixá-lo ainda mais deprimido do que de costume.
A verdade é que ele estava cansado demais pra continuar essa guerra ridícula. O único propósito pelo qual ele derrubou anciões e conquistou metade da Espanha foi mostrar a ela o quanto ele era forte e o quanto ele não precisava dela. Ele arrancou a cabeça de vinte príncipes só pra gritar bem alto “estou melhor sem você!”. Mas nada disso bastou. Ele ainda sentia falta daquilo que nunca teve.

O nosferatu estendeu a mão ossuda e apertou uma das aves até que se tornasse uma massa vermelha de penas e ossos, as outras aves se agitaram e fugiram desesperadas, o velho levantou-se e observou o voo desordenado dos animais.
“Vocês são mais espertos do que o sabá desse fim de mundo, e tem mais chances de sobreviver também.”

Mais uma vez, Hrotger teve ciência de que ia morrer rindo. Rindo de todos esses patifes, destes malditos jogos de poder, do Sabá, da Camarilla, de todo esse lixo patético que o fazia considerar seriamente a possibilidade de se jogar da sacada todas as noites. Ele olhou pra baixo mais uma vez. Não, não era alto o suficiente.
Ele estava cansado demais. Cansado de todas as noites dar as mesmas ordens ao mesmo bando de patifes só pra ver quem ia esfaquear quem em troca de contratos e assinaturas. E tudo isso pra que?
Pra que a rainha das cortes do sangue descesse do maldito trono e lhe desse um tapinha nas costas?

A noite estava acabando, e a paciência dele também. Ao entrar no apartamento, que poderia, na melhor das hipóteses, ser descrito como “rudimentar”, ele teve uma ideia.

Era hora de contar aos lideres o que ele sabia. De espalhar o caos e a destruição, de iniciar o banho de sangue que despertaria os antigos de seu sono. Guerra – era isso que ele precisava fazer. Dane-se a Camarilla, dane-se o Sabá, dane-se o maldito planeta.

Ele tirou o telefone do gancho e com repudio discou os números que jurou a si mesmo que nunca mais discaria.

Após um único bipe, ele disse:
- Lorde Derek, eu tive uma visão. Precisamos conversar.



domingo, 15 de janeiro de 2012

A raiz de todo o mal, ato II: Lobos e leprosos


A indecisão tomou a vampira novamente. Ela já havia assistido as matanças de seu irmão mais de uma vez. Ele era um dos mais condecorados templários do sabá germânico e com toda certeza era o mais cruel. Seu senso estético sempre incluiu vísceras e entranhas o suficiente para chocar alguns anciões de sangue menos nobre.

Se ela o seguisse para a chacina, o que ela ganharia com isso? Mais pregos no caixão?
Ela já havia assistido recém nascidos serem presos ao ventre de suas mães, ela já sentiu a consciência falhar ao ver gemêos tornarem-se siameses e siameses tornarem-se quadrupedes profanos que usavam seus intestinos como chicotes.

Talvez ela não tivesse a coragem para ser uma Ductus do sabá. Talvez ela tenha nascido na família errada, na época errada. Ou talvez ela devesse agradecer a Freya e Baldur por ter sido trazida a morte por uma das lobas do norte, e não por um dos demônios do leste.

"Agradecer"

A sinfonia de gritos quebrou seu devaneio e a pôs em movimento. Ela imaginou a reação dos mortais a contemplarem a forma monstruosa do Tzimisce. Pavor, pavor puro. Quem seriam eles, afinal?
Fugitivos buscando abrigo no coração do sabá alemão? Espiões feridos? Almas inocentes trazidas para uma guerra que não lhes pertencia?
Havia pouco tempo para ponderar. O som de ossos partidos e lágrimas sufocadas lhe dividia a alma. Não havia o que se fazer, mas se ela não acompanhasse o irmão no combate, ela iria sofrer as consequências.
No sabá não há espaço para a misericórdia, não há espaço para corações que ainda batem com paixões por "cascas de carne".

Ela cruzou uma esquina e sentiu o sangue ferver embaixo dos olhos e transbordar. O pouco ar que ainda habitava seus pulmões foi expulso em um rugido gutural enquanto as unhas saltavam dos dedos e os ossos estalados formaram garras. Era, mais uma vez, hora de matar, pelo sabá, pela mãe Europa, e por aquele que, apesar de toda a mágoa, o Tzimisce ainda era seu amado irmão.

Sobre a forma monstruosa e familiar, estavam três criaturas caricatas e retorcidas, cobertas por trapos pretos que mal cobriam sua pele esponjosa e doente. Todos eles eram horrores especiais, formas destruídas pala maldição cruel dos leprosos de Caim.

Ela examinou a cena em um instante e calculou o angulo correto para o ataque. Por todos os lados pedaços magros e cinzentos de mortais estavam expostos como as carnes de um açougue. Entre o que um dia foram crianças, velhos e mulheres ela conseguiu distinguir alguns rostos partidos que não chegaram a ter tempo de perceber a armadilha em que tinham sido colocados.

Os mortos não eram prioridade agora. Os filhos de Caim eram os inimigos. Dos três que estavam sobre o Tzimisce, dois estavam fora de combate, as garras cruéis do vampiro penetraram seu tórax de encontro ao coração e agora os órgãos atrofiados sofriam com a pressão da força monstruosa do demônio.
Ele tinha seus próprios problemas. Em sua bocarra havia uma granada sem o pino. Um movimento e seria seu fim. E o nosferatu que estava sobre ele parecia disposto antecipar o momento. Os joelhos do leproso estavam presos nos espinhos ossudos do peito do Tzimisce, eles sangravam um liquido grosso e pegajoso que a Gangrel soube na mesmo hora se tratar de sangue semita. Era hora de agir.
"Heimdall, como tu eu sou responsável pela vigília da ponte da alma de meus irmãos, que eu seja como tua espada, e que em minha fúria eu parta os gigantes do caminho"

Ela sentiu o vitae correr por suas veias. Ele a fortalecia e renovava o calor que o beijo da morte havia lhe roubado. Com um comando mental, ordenou que seu corpo se movesse mais rápido do que o tempo.

Ela saltou, traçando um arco de morte em sua colheita profana. As garras entraram na base de sua coluna e traçaram um caminho doloroso pela carne cinzenta, rasgando ossos e tecidos podres e só parando na base das costelas. O peso do corpo da Gangrel foi o suficiente para arremessar o Nosferatu a quase dois metros de distancia. Com a queda, novos ossos foram partidos e os gritos de dor não puderam ser sufocados pela prudencia do vampiro deformado.

Ela afundou as garras enquanto rugia e mergulhava no caos da besta uivante.
"Grite, grite pra mim"
Sangue para todos os lados. Era tudo conseguia ver e cheirar. Sua vontade se contorcia de pavor.
A vampira rasgou, mordeu e retalhou o leproso como se fosse um lobo sobre o cervo abatido.
"Mate, mate a todos eles"
Sangue e mais sangue. Vísceras putréfagas misturadas a intestinos e outras partes menos reconhecíveis eram dilaceradas com voracidade por garras e dentes famintos.

O rugido gutural que marcou o mergulho dos caninos poderosos no pescoço da criatura.
"Beba até que ele vire pó"

O êxtase rubro inundou o corpo da Gangrel, nutrindo-a com a paixão e o líbido que só em um momento da não-vida ela possuiu. O fluxo do elixir trazia-lhe a paz que a espada de Caim havia lhe negado. Era um instante de silêncio em meio a tempestade da alma. Era o fogo que queimava a garganta, fortalecendo e maculando a alma calejada da mulher.

Como todos os outros momentos de silenciosa contemplação da vida da vampira, ele acabou.
Ela sentiu a dor da alma do nosferatunosferatu, ao imaginar seu próprio corpo derretendo e sendo re-esculpido por um artista doente. Alguem como seu irmão.

Quando o controle do corpo retornou, ela estava de joelhos no chão, observando o sangue nas mãos e na alma.
Ela não sabia quantos cainitas ela já havia matado, mas este era o primeiro que ela sorvia até secar.
Embora não tenha sido a primeira vez que algo morreu dentro dela, esta foi a primeira vez em que ela tinha sido o catalizador.

A mão monstruosa de seu irmão tocou seu ombro e a pôs de pé; era hora de continuar.

Os dois não trocaram nenhuma palavra durante o percurso. Ela quiz perguntar a ele como ele se livrou da granada, o que aconteceu com os nosferatu, quem eram as pessoas mortas a seu redor, o que estava acontecendo com ela e uma infinidade de outras coisas. Mas simplesmente não havia energia o suficiente. Eles colocaram seus prisioneiros nas costas e seguiram viagem. Após duas horas sem encontrar ninguém pelas ruas de Munique, o Tzimisce quebrou o silêncio:

"Você lutou como uma Valquíria, Skadi"

Eram palavras ineficientes, calculadas. Ela se perguntou quanto tempo seu irmão levou para formulá-las.
"Obrigado Lars."
"Possuo a resposta para a duvida que lhe assombra"
A resposta para o que? Para a eternidade de brutalidade e sanguinolência há que ela foi condenada pelos caprichos de uma vadia que ficou excitada demais com o protesto de uma garota revoltada? Para a solidão eterna e o apodrecimento da alma? Para as leis impossíveis de seguir?
"Eu não tenho duvidas, meu irmão. Tenho apenas uma certeza"
Os dentes do Tzimisce encolheram e ele fechou a boca com extrema dificuldade. Os dois cruzaram mais duas quadras antes dele terminar de formular sua frase.
"E qual seria essa certeza, minha irmã?"
"Vocês são um bando de grandes filhos da puta."  

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

contos - o espelho e o abismo


Era um exercício de crueldade.

A rainha do abismo se sentava enfrente a penteadeira toda noite, e toda noite ordenava que a escuridão lhe penteasse os longos cabelos negros.

Ela sofria, às vezes chorava, quando se lembrava de cada uma das noites horríveis que tinha passado em agonia e solidão dês de que sua amada partiu.

Odeio você Aldérvirth. Odeio com todas as minhas forças;

A verdade é que ela era muito emotiva para ser cardeal do Sabá. Ela tinha o coração partido e uma cicatriz tão profunda na alma que nem mesmo toda a paixão da espada de Caim era capaz de curar.

Mas era um exercício de amor também.

Aldérvirth soube lhe dar carinho em suas primeiras noites como filha de Caim. Ela vinha toda noite, compartilhar de sua sabedoria e lhe mostrar que ainda havia algo pelo que valesse viver. A simpatia de Aldérvirth era tanta que ela usava do legado ancestral de seu clã, a ofuscação, para sumir da frente do espelho, em solidariedade a maldição Lasombra.

 Foi o amor que eu nunca tive em vida, o amor que os vivos me negaram.

As imagens do templo em chamas ainda flutuavam em sua mente, os gritos da cabala de Aldérvirth, o cheiro de pele e sangue queimados, os cavaleiros Ventrue, seus peões mortais.

“Viemos purificar esse lugar herege com a luz de nosso senhor, Jesus Cristo!”

A dor da lembrança ficava mais forte agora. Sua amada usou de sua magia para combater seus inimigos, e também para dominar a Lasombra e obrigá-la a fugir.
Ela ouviu o ultimo grito de dor de sua amada, e ouviu o rugido de triunfo de seu inimigo.
Ela ouvia esses gritou todas as noites, sempre que se sentava em frente ao espelho, e, toda noite, ela jurava que destruiria cada Ventrue e cada cristão desse mundo. Em nome de seu amor e em nome de seu ódio.

Não existem, nesse mundo ou em outros, muitas criaturas capazes de resistir ao ódio da rainha do abismo.