terça-feira, 31 de janeiro de 2012

História de amor dos mortos - Um conto sobre o fim



Os dois antigos contemplavam o céu de Atlanta serenamente. As nuvens carregadas indicavam a tempestade vindoura, e as sirenes estridentes das ambulâncias e viaturas davam um tom especial aquele inferno de concreto.
O bispo Eilert removia as cascas das infindáveis feridas amareladas de seu rosto, que estouravam em um pus rubro e gosmento que com certa dificuldade movia-se pela face entrincheirada do Nosferatu. O companheiro dele não era muito mais atraente.
Hrotger tinha o nariz pontudo e esponjoso que pendia sob os lábios inchados e sem cor. Por todo seu corpo, protuberâncias escuras e molhadas davam a ele o aspecto de uma vítima terminal da praga negra. Seus olhos verde musgo contrastavam ferozmente com sua forma monstruosa. Eram de uma selvageria tão grande que mesmo inquisidores de determinação inferior não ousavam contemplá-los. Talvez fosse o par de olhos mais valioso de todo o sabá, afinal, foram eles que contemplaram os sinais que o profeta mais antigo do clã traçou na própria carne antes de ser tragado pelo fogo dos obuses russos. Eles guardavam os segredos que o Priscus não revelaria a ninguém antes dos antigos se levantarem.

Hrotger observou a miriade irritante de arranha céus cinzentos que se estendia a sua frente, e mentalizou a destruição de centenas de casas coloniais inglesas. Aos poucos, o panorama em sua mente deu vida a carros feios, lojas inúteis e a uma infinidade de mortais igualmente inúteis. Em seguida, prédios grandes, aeroportos, corporações, e todo lixo que fazia a humanidade feder da maneira peculiar que só eles conseguiam. Então ele imaginou fogo e trevas correndo pelas ruas e devorando tudo em seu caminho, imaginou seus tataravós despertando e fazendo com que o precioso império de vidro que os filhos de Abel levaram séculos para construir ruísse em uma única noite.

Este era o conforto cruel do ancião. Se a espada de Caim falhasse e o mundo morresse, ele morreria sorrindo.

Eilert limpou a garganta, tentando inutilmente quebrar a concentração de seu companheiro. Era difícil entender o que se passava na cabeça dele, não só por ele ser mais forte e mais velho do que boa parte dos vampiros que ele já viu, mas por que ele já ouviu do próprio falecido cardeal Monçada que os pensamentos de Hrotger pertenciam apenas a ele mesmo. Não havia magica ou poder do sangue que pudesse invadi-los. E essa era uma das principais razões pela qual o mais rancoroso dos mortos havia conservado seu lugar por tanto tempo.
O bispo se levantou e olhou para a rua que estava a dezenas de metros abaixo deles. Curioso como as duas limousines paradas em frente ao enorme complexo empresarial não chamavam atenção alguma. Ele chegava a ter raiva disso. A duzentos anos atrás, um cainita tinha que ser muito esperto para sobreviver a fúria implacável dos caçadores. Hoje em dia só era necessário um celular e meia duzia de bajuladores.
Hrotger levantou o indicador ossudo e o pousou sobre uma taça que nem de longe parecia conter vinho. O liquido era de um vermelho escuro e vivo que parecia extremamente insatisfeito em ser mantido no carcere de vidro. O Nosferatu traçou giros irregulares na taça com extrema lentidão antes de arremessá-la ao asfalto. Eilert não protestou, e em segredo lamentou pelo infortuno destino do pobre Tzimisce que havia desagradado o Priscus por todos os motivos errados.
- Sabe, meu querido bispo, não entendo a estima que vocês americanos tem por soldados desobedientes. A voz do antigo soou rouca e baixa. Um chiado desanimado proferido por um leão que tinha consciência de que a morte era próxima. Ele continuou – Em minha antiga casa, e que Satã a consuma, teríamos esfolado esta patética desculpa para um guerreiro Tzimisce exatos dois segundos após ele faltar com respeito a seu lorde.
Eilert chiou baixo, prevendo mais uma conversa desagradável com o velho.

-Responderei a esta pergunta, vossa excelência, se o senhor me responder qual é o motivo pelo qual os antigos de nosso clã tem um desprezo tão grande pela América.

Hrotger assentiu calmamente, enquanto inspecionava a mente dos pombos da janela próxima.
Não eram espiões. Não ainda. Com um comando mental ele ordenou que os sete pássaros gordos sobrevoassem o perímetro da cidade e lhe trouxessem um relatório sobre as ações de cada um de seus batedores.
-Você cria concepções errôneas a meu respeito, meu bom Eilert. Não nutro nenhuma mágoa especial por este pedaço de terra. Eu o odeio como odeio todos os outros recantos de imundice deste universo condenado.
Não havia nenhuma alteração em seu tom de voz ou em seus olhos, mas mesmo assim, o bispo sabia que ele estava mentindo. Sim – havia muito espaço na alma do vampiro para odiar, mas este lugar ocupava um lugar tremendamente especial no coração negro do Nosferatu.
Era até compreensível, dependendo do ponto de vista. O velho nunca havia feito questão de sair de sua casa ancestral, nunca havia pedido pelo status que lhe foi conferido e em nenhum instante de sua não-vida ele desejou travar uma guerra que, aos olhos dos verdadeiros mestres do sabá, era tremendamente fútil.
-Então o senhor não nutre nenhum ressentimento por estar longe de sua casa?
O velho tentou lembrar-se de como era o processo que fazia seus pulmões crescerem e se contraírem, gerando um suspiro. Ele não conseguiu.
- Permita que este velho lhe conte uma história desagradável, meu querido bispo. Ela começou quando uma vagabunda feriu meu orgulho e fez com que eu desejasse a morte do mundo, ela continuou quando uma outra vagabunda fez minha pele derreter e esculpiu minha face nisto que você observa agora. Anos mais tarde, eu vi o fogo que saia da igreja queimando uma das meretrizes junto com os únicos três seres da criação que eu aprendi a respeitar. Séculos mais tarde, veio a convenção dos espinhos e eu cuspi na cara de Von Bauren e sua corja de filhos da puta, me voltei para Vasantasena e com a orientação dela defini o que hoje os jovens chamam de Sabá. Pareceu ótimo na época, mas a falta de controle de qualidade me faz acreditar que foi a pior empreitada de que já participei. Assinei tratados, conquistei cidades, derrubei governos, estuprei príncipes e primógenos.
Eu vi linguagens nascerem e morrerem, vi fés inteiras sendo destruídas. E acredite, me envolvi diretamente em mais de um destes acontecimentos. Eu presenciei o apodrecimento de cada uma das maravilhas perversas dos últimos oitocentos anos. Me diga, boa criança, existe algo que eu possa sentir além do ódio?

Eilert se contraiu, irritado. Ele esperaria ouvir uma história assim de um toreador choroso, não do mais respeitado dos mestres Nosferatu do sabá. As histórias sobre o poder e a crueldade de Hrotger eram tão numerosas quanto as cabeças que ele já havia posto na ponta da lança. E lá estava ele, se lamuriando pelo vitae derramado pelos séculos.
Uma pontada de dor desconfortável atingiu-lhe a têmpora. Então ele percebeu o quanto fora estupido. O mestre do clã dos ocultos estivera em sua mente o tempo todo. O bispo abaixou a cabeça em reverencia, esperando pelo golpe que inevitavelmente sorveria lhe a vida. A reputação da disciplina rígida de Hrotger só não maior do que sua predileção pela Diablerie. No entanto, houve uma surpresa.
-Retire-se, meu querido bispo, sua lição virá no tempo certo.
Sem exitar, Eilert abandonou a sacada.
Os pombos retornaram, trazendo noticias de peões e inimigos. Uns poucos “anarquistas” foram destruidos (“eles poderiam aprender um ou dois truques com os Tzimice”, pensou o antigo), mais ou menos uma duzia de mortais foram “recrutados” (“e ai está uma coisa que poderiam aprender com os Lasombra”), um brujah idiota virou pó ao levar doze tiros enquanto defendia um bando de jovens pichadores da “opressão policial”. Em um instante particularmente inspirador, Hrotger recordou o processo que gera um suspiro.
Ele fechou os olhos e tentou se lembrar de cada um dos malditos motivos pelo qual ele estava naquele pedaço do inferno. Eram muitos, e todos começavam com o nome dela.

“Adele, sua vagabunda, juro por meu sangue que antes do fim vou cuspir em seu cadáver.”

Ele sabia que não ia. Mas era uma jura agradável de se fazer. Ele não tinha nenhuma notícia dela há pelo menos cinco décadas, e isto era o suficiente para deixá-lo ainda mais deprimido do que de costume.
A verdade é que ele estava cansado demais pra continuar essa guerra ridícula. O único propósito pelo qual ele derrubou anciões e conquistou metade da Espanha foi mostrar a ela o quanto ele era forte e o quanto ele não precisava dela. Ele arrancou a cabeça de vinte príncipes só pra gritar bem alto “estou melhor sem você!”. Mas nada disso bastou. Ele ainda sentia falta daquilo que nunca teve.

O nosferatu estendeu a mão ossuda e apertou uma das aves até que se tornasse uma massa vermelha de penas e ossos, as outras aves se agitaram e fugiram desesperadas, o velho levantou-se e observou o voo desordenado dos animais.
“Vocês são mais espertos do que o sabá desse fim de mundo, e tem mais chances de sobreviver também.”

Mais uma vez, Hrotger teve ciência de que ia morrer rindo. Rindo de todos esses patifes, destes malditos jogos de poder, do Sabá, da Camarilla, de todo esse lixo patético que o fazia considerar seriamente a possibilidade de se jogar da sacada todas as noites. Ele olhou pra baixo mais uma vez. Não, não era alto o suficiente.
Ele estava cansado demais. Cansado de todas as noites dar as mesmas ordens ao mesmo bando de patifes só pra ver quem ia esfaquear quem em troca de contratos e assinaturas. E tudo isso pra que?
Pra que a rainha das cortes do sangue descesse do maldito trono e lhe desse um tapinha nas costas?

A noite estava acabando, e a paciência dele também. Ao entrar no apartamento, que poderia, na melhor das hipóteses, ser descrito como “rudimentar”, ele teve uma ideia.

Era hora de contar aos lideres o que ele sabia. De espalhar o caos e a destruição, de iniciar o banho de sangue que despertaria os antigos de seu sono. Guerra – era isso que ele precisava fazer. Dane-se a Camarilla, dane-se o Sabá, dane-se o maldito planeta.

Ele tirou o telefone do gancho e com repudio discou os números que jurou a si mesmo que nunca mais discaria.

Após um único bipe, ele disse:
- Lorde Derek, eu tive uma visão. Precisamos conversar.



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