terça-feira, 22 de abril de 2014

A controvérsia inerente da arte, Ato I: fiz de ti paleta e cavalete


Existe uma coisa bonita na violência. Uma coisa viva.

O filho da puta agonizava no chão. Chutei a boca dele com tanta força que quase perdi o equilíbrio.
Ele já não implorava mais. Seus gritos haviam se tornado um gemido patético e molhado que se repetia a cada golfada de sangue.

Encosto a ponta do pé-de-cabra na boca aberta e o suspendo no ar. Ele segura o metal quente como se beijasse uma puta. Os lábios se curvam, os olhos, imóveis em pavor estático, encaram o vazio em busca de uma esperança há muito estuprada.

Pergunto-me se ele sabe o por quê de ter recebido minha visita. Duvido que a resposta seja positiva. Tiro a Magnum do coldre e disparo contra uma das pernas do infeliz. Ela treme e se encolhe, depois fica rígida.
O buraco na coxa é uma das coisas mais lindas da criação, estou certo disso. As veias pretas e inchadas, soltas em meio aos ossos maculados e a carne violada, dançam para mim, uma beleza que de todos os malditos, só eu poderia apreciar.

Em um momento de inocência, permito-me viajar na leveza sublime do momento. Sinto as cores, cheiros e texturas, sinto o beijo do calor ferroso da vitae estrangeira e me enamoro por ela. Claro, havia sangue por todo o quarto, mas aquele, misturado a pólvora, o cobre e as vísceras, era meu pequeno altar especial.

Meu corpo oscila e me ajoelho, soltando as armas. Esfrego meu rosto no membro ferido, lambendo a chaga putrefata de minhas blasfêmia.

O gosto é meu carrossel, o cheiro, meu parque. Sou um passageiro que, sem rumo, viaja pelo estase.
Mergulho em seu sabor e me embriago. A essência roubada desce por minha garganta me debilitando e me trazendo o orgasmo da queda do paraíso. Contemplo pedaços de memórias partidas e me torno um ceifador de centelhas.

Deus, se eu não fosse legião, eu seria você.

Interrompo o rito com um suspiro. Lambo a ferida e sinto a carícia do chumbo quente. A pobre criatura gania como um cãozinho atropelado, indefeso perante minha indiferença. Jogo os cabelos pra trás antes de cair sentado ao lado dele. Seguro o pescoço fino, levanto seu rosto e o encaro firmemente. Os olhos estáticos começavam a ficar vazios, os lábios, finas lembranças vermelhas de uma amante de outrora, balançavam debilmente e suas longas madeixas douradas estavam tão empapadas de sangue que pareciam um caldo grudento de fetos abortados.

E que Caim me perdoe pela comparação anterior, mas depois de uma semana na companhia de um sacerdote tzimisce, algumas comparações simplesmente parecem mais adequadas que outras.

Faço um beicinho zombeteiro com os lábios e me esforço na minha melhor imitação de sotaque francês.

" Você sabe por que isso esta acontecendo, não é, mon cher?"

Eu sabia que não. Ele geme. Sorrio por dentro.

" Seu senhor ordenou que você invadisse terras de meu bispo. Que comprasse mortais e os vendesse. Que incendiasse o refúgio de meu Ductus. Ele morreu gritando e eu senti no peito um vazio tão aterrador que sinceramente acreditei que morreria com ele quando soube. Eramos muito próximos, sabe. Coisas do Sabá, você não entenderia, não ainda, pelo menos. Agora eu vou te propor um acordo e você vai aceitar. Pedi um ano de férias do bando pra terminar uma obra, eles entenderam e me deram esse tempo. Minha obra vai ser você. A cada noite vou enfiar esse pé-de-cabra mais e mais fundo no seu cu até ter certeza que você começou a gostar disso. Ai vou parar e enfiar ele na sua garganta. Mas não vai parar por ai. O que você viu hoje foi só o que nós artistas chamamos de conceito. Uma ideia geral sobre o que vai acontecer no decorrer do trabalho. Cada porrada e gemido que eu arrancar da sua carcaça fedorenta vai fazer parte de algo maior. Vai ser minha obra prima. Vai ser a porra do trabalho da minha vida, filho da puta. Vou encontrar cada coisa que em algum momento te foi preciosa e vou trazer aqui pra te fazer chorar e sofrer enquanto as estupro e mato. Quando eu acabar com você, monte de merda, vou ter em mãos um pedaço gosmento de cainita que vai fazer um lorde Tzimisce vomitar e você vai estar sorrindo e batendo palmas, porquê acredite, você vai entender que é melhor sofrer sorrindo pra mim. E não pense que quando o ano acabar vai estar livre. Eu vou te fazer cavar uma cova e te enterrar lá. E você só vai sair quando estiver pronto pra se juntar ao sabá. Ai sim, querido, seu sofrimento vai começar. Vamos ter muito tempo."
 
Os olhos dele viram pra dentro e contemplo uma expressão caricata de horror congelado. Ele desmaia em meus braços e me sinto pronto pra começar a trabalhar.

Será uma longa noite.







segunda-feira, 21 de abril de 2014

A história de amor dos mortos: prelúdio para uma viagem noturna

Derek sempre sentia que estava esquecendo de alguma coisa que para alguém vivo seria muito importante.
Ele atravessou a rua da metrópole como se nada mais existisse. Invisível aos mundanos, cada cheiro e cor lhe era uma lembrança dolorosa.
Munique era velha e, como todas as coisas vivas, estava morrendo.
“Eu acredito no ódio” Lhe disse sua pequena companheira improvável. Os amantes não vistos pararam por um instante em uma grande praça aberta, de mãos dadas, escolheram um banco protegido das luzes mecânicas da noite e ali permaneceram, Adele no colo de seu senhor.
“ Acredito que já debatemos a respeito em um século passado, minha criança.” Sua voz soou mais melancólica do que ele desejava. Gotas de nanquim sangravam na realidade próxima e as flores apodreciam gritando horrorizadas.
“De fato, meu amor. Na terra dos gregos, quando encontramo-nos com a Helena. A rosa velha. Ela disse-me que somos paixão e fome,  discordastes e fizestes de nossa estadia uma lição. Afirmastes que eramos egoísmo e carne, que a paixão de nosso vício era uma manifestação negativa de algo que fomos quando vivos, caçadores, e que os séculos nos moldavam tanto quanto permitimos. Hoje eu descordo do senhor.”
Derek ponderou. Seus olhos se fecharam e uma voz morta lhe sussurrou pedaços de insanidade. Ele a calou com um abano dos dedos e desejou que houvesse treva.
O pequeno espaço foi tomado de assalto pelas vísceras pretas do mundo caído. A pouca vegetação que resistiu a presença profana da criança morreu gritando. Não havia  som e tempo, e o antigo finalmente sentiu-se em paz. Ele tocou a mãozinha diminuta de sua amada e beijou sua orelha. Ela se eriçou e se esticou, seus cachos dourados roçando o queixo fino do ancião.
“Você diz que somos ódio por ele parecer natural a nossa essência, criança minha. Quando assume tal fato me leva a pensar em um dualismo torto e romântico, em que tenhamos um oposto exato de amor. Creio que isto seja muito improvável. Poucos de nós de fato melhoram ou pioram com o tempo. Deixados alheios a nossas filosofias, permanecemos estáticos, por mais cruéis ou viciosos que sejamos. Criamos os caminhos ou somos levados a eles em uma tentativa desesperada de fugir da estaticidade aterradora de nossa maldição peculiar. O culto ao sangue, a carne, a noite... Cada um tem suas promessas, mas sabemos que, no fim, fomos nós que criamos uma ordem hierárquica de leis e tradições que mantiveram nossa sanidade e integridade ao longo dos séculos. A chama humana de nossos inimigos, o que seria se não uma negação de nosso eu interior, o ‘self’ daqueles judeus esquisitos dos livros que você tanto ama?”
Adele sorriu e apertou a mão de seu senhor. O toque suave lhe trouxe memórias de outros tempos, de todos os anos malditos que passaram distantes por todos os motivos errados do mundo.
“Creio que não me expressei adequadamente, meu Derek.” Uma pequena pausa, um comando mental para um escravo em outro continente. “Acredito no ódio por que é ele que sinto em mim quando chamo o poder. Em algum momento eu fui uma criança oca, um pedaço de um nada. Esses judeus esquisitos que tanto desprezas tem teorias das mais interessantes a esse respeito. Somos moldados pelo meio, enquanto vivos, enquanto mortos, temos a perda deste molde  de forma gradual, e o definhamento não é atenuado pelas filosofias de morte, como dissestes, ele é disfarçado. Você se lembra do nome de sua mãe de carne? Certamente que isso foi importante um dia. Certamente que teu ofício de sacerdote e teus muitos invernos de abismo lhe tomaram essas memórias preciosas. Quando eu era jovem, você me confessou que sua mãe lhe deu um cobertor  em uma noite cruel, e que isso acabou matando-a. Por muitas noites, eu rezei escondida, agradecendo sua mãe por isso enquanto dormia em seus braços. Você teria me repreendido se eu tive lhe confessado isso na época, não? Mas estou divagando, perdoe-me. Sua mente é invulnerável a tudo exceto a seu próprio ego. Você escolheu esquecer dessas coisas, e escolheu não esquecer de mim. Você escolheu esquecer das cores do mediterrâneo para que pudesse se maravilhar com elas novamente caso viajássemos juntou outra vez, e escolheu não esquecer jamais de alguém que um dia lhe feriu, mesmo que tenha o destruído em uma era que o tempo engoliu. O mundo não se recorda de Naboslav, o cruel, mas Derek, meu sacerdote, o mataria mil vezes mais porquê isso satisfaria seu ego, mesmo sendo uma negação do caminho. Você, como eu, é amor e ódio, meu Derek, pois estas são as únicas verdades que nos mantém sãos.”
Derek desvaneceu e se fez noite. Seu ser uniu-se a treva conjurada e a engoliu, e ele tornou-se um ser líquido de sombra e horror. Adele seguiu os passos do mestre e tornou-se, também, o espelho do mundo morto.
Ele era uma coisa fria e pavorosa. Uma enorme massa surreal de tentáculos e bocas, com duzias de dentes serrilhados e opacos, e mais surgiam a cada segundo. Ela, por sua vez, era uma boneca monstruosamente  oblíqua, uma criança da noite feita de um breu profano que caçoava das amarras de toda a criação.
A consciência de Derek rugiu além das grades do universo e ao levante de sua voz uniram-se os rangidos das correntes que prendiam deuses abortados na aurora da criação.
“Somos noite, criança. Somos pavor. Você e eu não podemos nos prender as leis e conceitos daqueles menores do que nós. Você é minha rainha e eu sou seu sacerdote. Eu sou a apoteose com a noite e este é seu destino. Todos os jogos e sorrisos e discursos são menores do que a verdade do abismo e bem sabes. Eu sou o cetro do rei do firmamento, você é a  coroa. Não há filosofias ou artes maiores do que nós e bem sabes.”
Derek borbulhou e retomou seu corpo. Mais uma vez, estava nu na noite. Sua amada logo o seguiu, seu vestido delicado pairando sobre a carne macia com duzias de lacinhos vermelhos.
“Adoro quando você fica assim, Sire” Ela sorri e as covinhas de seu rosto trazem um suspiro aos lábios de Derek. “Sabe que não entendo dessas coisas nem metade do que você e que eu juro que já tentei. Você me disse pra esperar o tempo certo, me disse isso já fazem uns quinhentos anos, nunca argumentei. Eu fiz os ritos mesmo quando estávamos longe e eu me ocupei com outras mil coisas. Sei que muito de meu poder vem disso e sei que o senhor me explica tanto quanto pode. Mas as vezes acho que ainda me falta algo fundamental. Eu sinto falta de cada parte humana de mim, e cada vez que jogo esses jogos tolos, me sinto bem. Quando minha templária escova meus cabelos, eu me sinto bem. Quando o senhor me beija e quando navegamos por mares tranquilos, me sinto bem. Não peço que entendas, mas desejo que o senhor não me julgue. Isso pode ser feito, meu Derek?”
“Teu desejo é meu caminho, minha Adele.”
Ele se aproximou lentamente, abrindo os braços suavemente e então envolvendo a criança. Os dois permaneceram abraçados por um longo momento.
“Eu senti sua falta, meu Derek. Você sempre foi tudo de humano que existia em mim. Sempre vai ser. Por mais blasfemo que seja, a noite não é maior do que o afeto que sinto por você. Você me deu amor e ódio, quer admita isso ou não. Entende meu ponto agora? Somos maiores que o ego, somos a feitiçaria profana que nos manteve unidos mesmo depois de tudo.”
Derek se recordou de uma batalha antiga ao lado de uma aliada rancorosa. Em momentos perdidos, ele se sentiu pequeno e frágil. A chama humana queimou-lhe a carne a cada noite que passou longe de sua amada criança.
“O que sou, sou por você, no abismo. Eu não sei mais odiar, minha Adele, mas sei amar. Este é meu propósito na existência, é estar a seu lado. Nossa feitiçaria é uma ferramenta para um fim, e o fim é mais claro agora. Somos um do outro e este é o sentido do ser.”
Ela intensificou o abraço, dedinhos frágeis e brancos uniram-se e tornaram-se rosados pelo esforço. Derek sentia que seu universo inteiro estava a lhe abraçar.
“Será que a velha rosa ainda existe? Eu gostaria de rever a terra dos gregos. Tio Boukhelpos também costumava passear por lá. Talvez devêssemos viajar mais, meu senhor. Tenho tanto a te mostrar.”
Derek ponderou por um instante. Helena há muito havia se escondido. Mas ele sabia onde encontrá-la. O cheiro do sangue era forte naquela terra, mesmo de linhagens tão esquecidas. E quanto a Boukhelpos, sim, seria agradável encontrar o velho guerreiro. Sua ultima conversa havia sido em uma floresta escura da Africa, enquanto caçavam a prole de Montano. Certamente que havia muito o ser aprendido com o filho do tenebroso.
“Teu desejo é nosso caminho, minha querida”
“Vamos parar em meu reino. Preciso lhe apresentar minha templária, é uma criança adorável que passou décadas ouvindo seu nome. Creio que ela tem muito a aprender com o senhor.”
“Será feito. Mas receio que eu precise de um mapa escrito em Latim para planejar a rota. E sem computadores, querida. Eles estão além de minha compreensão.”
“Eu posso cuidar disso, amor meu. Estava me perguntando se você admitiria que odeia computadores.”
O sorriso sarcástico da criança confundiu o Lasombra tremendamente. Ele se sentiu feliz e, por mais de um instante, vivo. Pensou em palavras de poder e desejou uma jornada tranquila. Pensou nos lábios de sua criança e nos beijos que trocariam em lugares perdidos e envelhecidos. Pensou no profeta louco e nas visões que compartilhariam. Pensou em Kella e se certificou de que ela estava morta e enterrada.
“Talvez tenha razão, minha querida. Mas não da maneira que imagina. Eu nunca ofendi um computador. São eles que me odeiam e ofendem. Juro que nunca os provoquei.”
“Existe uma ironia deliciosa nisso, Derek meu. Você já destruiu civilizações por elas terem me ferido, mas é incapaz de vencer um inimigo que não tem braços ou dentes. Entende que precisa mudar?”
“Eu juro que tento” Disse, incomodado, o atônito Derek.
“Daremos um jeito nisso em breve. Será a mais desafiadora das lições que já tive, tenho certeza.”
“Prometa ser paciente, minha cria.”
“Prometo que não matarei nada no treinamento”
Sorrindo, os dois amantes ofuscados deslizaram pela treva, devorando a vida que encontraram no caminho. Adele, feliz por estar sendo, pela primeira vez, a mestra, e Derek, confuso como nunca esteve antes.
Ao longe, um corvo grasnou anunciando a chuva vindoura. O corvo mudou de forma e se segurou desajeitadamente no parapeito. Aisha rastreou o antigo por quase três décadas, e agora finalmente sabia do destino dele.