O Nosferatu curvou-se diante do notebook, lambendo os beiços teatralmente, deixando a mostra os dentes tortos e amarelos. A tela exibia vários terminais diferentes, cada um uma serpente, um predador a espera do momento oportuno para o bote.
Dante aguardou pacientemente o retorno de seus pequenos espiões digitais, e quando a resposta chegou, enviou uma mensagem para sua assistente.
“Game on”
Ele disparou a rotina de monitoramento e ouviu um telefone tocar três vezes antes de ser atendido. A voz adocicada de Ariel iniciou o ataque.
“Boa noite, me chamo Vivian e ligo em nome da operadora Oi. Gostaria de falar com-” (interrompida)
“Eu não quero comprar nada.” Disse uma mulher rouca e insatisfeita por ter sido incomodada.
“Não estou vendendo nada senhora. Você por acaso se chama Eva? Devido a uma mudança de planos sua fatura vai ficar mais barata. Só preciso confirmar uns dados com a proprietária.”
“Ok, sou eu.”
Game over, pensou Dante. Era início da noite e o ancião se sentia extremamente sonolento e vazio. As letras brancas no display se misturavam quando sua mente vagava por mais que um instante. Alguma coisa estava mudando, alguém o estava chamando. Alguém perigoso.
“Eu preciso que a senhora clique no ícone que apareceu na área de trabalho duas vezes. Na nova tela ele vai pedir pra que você digite a senha de seu roteador, que está num adesivo embaixo do aparelho”
A garota era jovem, mas levava jeito pra coisa. Jovens aprendem rápido demais.
Um dos terminais do notebook saltou para a frente da tela com as credenciais de acesso gentilmente cedidas pela senhora Eva. O veneno surtia efeito e os logs do sistema-vítima eram rapidamente clonados.
“Muito obrigado e tenha uma boa noite. Peço que a senhora aguarde um instante para avaliar a chamada. No próximo mês sua fatura já virá com o desconto.”
Fim da chamada. Fim da resistência. Dante digita sem dificuldade os parâmetros do ataque final.
msf> ../ msfvenom logRetriever.py -Ss -Sn 0 Eva0 Eth0 pbloom.ssh
O instante antes da confirmação do sucesso carrega em si todo o peso do mundo. A ansiedade salta e os pulmões podres buscam inutilmente por ar. Vazio e medo fagulham até o surto de adrenalina correr pelas veias. O Nosferatu batuca a mesa com as pontas dos dedos e, quanto o resultado aparece na tela, o segundo de êxtase que o toma quase faz com que ele esqueça que está completa e verdadeiramente morto.
“Pegamos o filho da puta” diz a mensagem de sua aprendiz. Ela já está lançando a próxima etapa do ataque, referenciando os registros do cartão de crédito da mãe do dono de um dos maiores sites de revenge porn do Brasil com os dados usados para alugar os servidores de hospedagem na Croácia.
Dante se reclina sobre a cadeira e imagina os nós na rede que levam o computador de uma secretária aposentada até os confins mais sórdidos da pornografia amadora. Eva certamente não sabe de nada, mas isso não importa. Com os dados em sua tela, ele dispara o programa que gera os relatórios e os envia para para a polícia federal por meio de um conjunto de camadas que passa por 17 países cujas legislações são tão radicalmente diferentes que tentar rastreá-lo levaria anos, na melhor das hipóteses.
Sua cliente estaria satisfeita e lhe devia um favor. Uma semana de pesquisa, uma ligação, uma guerra contra oponentes desarmados. Sempre existe um elo frágil, e em noventa e nove por cento dos casos, esse elo frágil usa Windows desatualizado.
“Vou ir tomar um lanche. Avisa se quiser que eu traga alguém da rua”. Diz a última mensagem de Ariel. Uma moça de classe, certamente.
Ele não responde. Ainda haviam muitos negócios a serem tratados essa noite. Três mensagens. A velha bruxa dizia alguma coisa sobre o fim do mundo e cristais de Feng Shui. A Baronesa queria uma reunião urgentemente para discutir planos para uma guerra que está para acontecer desde que algum português bêbado aportou em Vera Cruz. Ingrid simplesmente disse ‘me chame‘.
Ingrid era a prioridade, sempre. Ele ligou para o chefe de segurança e pediu para que ele deixasse a visitante subir. Dante gostava de charadas e Ingrid era uma bastante difícil de decifrar. Desligou o notebook e a tela, agora escura, refletia sua face distorcida.
O Nosferatu roçou sua bochecha quitinosa com as unhas. A pele era seca e frágil, e mesmo um leve toque fazia com que pús e fedor o permeassem. Seu nariz era comprido, torto, quebrado umas tantas vezes em vida e outras tantas em morte, e seus olhos amarelos e diminutos o denunciavam como um eterno predador.
A porta do escritório se abriu, e a voz baixa e arrastada da visitante se fez presente “Saudações, rei rato. Trago-lhe oferendas.”
Ingrid era jovem, ousada e petulante. Vestia um casaco rosa roubado e jeans. O cabelo claro era ocultado pelo capuz e o pescoço pelo cachecol. Não fazia frio. Ela tirou as mãos dos bolsos e fez uma referência lenta e teatral, ainda curvada, levantou o rosto e sorriu. “O senhor fede como a peste. Em minha próxima visita, minha oferenda será de detergente”.
“Ingrid, querida” disse Dante, pausando em cada sílaba e medindo a reação da Malkaviana. “Ainda não tive oportunidade de lhe agradecer por nossa última conversa. Permita-me não destruí-la como forma de pagamento.”
Ele sorriu. Ela não.
“É muita gentileza de sua parte, meu bom senhor. No entanto, para a conversa desta noite será necessário um pagamento mais...tangível”.
“Isso irá depender do que você me oferecer, que-ri-da”.
Ingrid sentou-se no chão em uma meia-lótus. Fitou o vazio por um longo instante e sussurrou. “O senhor conhece o sabá?”
Dante, surpreso, levantou algo que em algum momento foi uma sobrancelha. “Mais do que gostaria. Porquê?”
Ingrid, aparentemente surpresa, respondeu “Não importa. Eles foram embora. O senhor lembra da estrela dos pesadelos?”
“A semana dos pesadelos?”
“Não. A estrela vermelha dos pesadelos. Não aquela dos comunistas. Aquela dos indianos”
“Sim. Eu me recordo.”
“Eu sonhei com ela. Lá naquele país dos terroristas. Ela está brilhando lá e o Sabá está indo matar ela, mas os velhos não querem por que eles são comunistas e tem medo dos pesadelos.”
Dante suspirou e mais uma vez agradeceu por ter instalado um sistema de microfones escondidos na sala. Ele precisaria ouvir essa conversa mais algumas vezes no futuro. A memória da semana dos pesadelos ainda lhe era pesarosa. Ele passou várias noites cuidando de seu amigo Abraham e procurando uma maneira de fazer o sangramento e os gritos cessarem. Ele falhou e Abraham se esvaiu. Ingrid continuou:
“Ai eu falei com a bruxa e ela disse que isso era porque pro diabo se reza olhando pro oeste, o que faz sentido, se você for pensar bem. Ela não reza pro diabo por que ela é bruxa e as bruxas só rezam pra terra. Você tem rezado pro diabo, senhor-Rei-roedor?”
O Nosferatu sorriu. Francisca, a bruxa Malkaviana que deve ser a vampira mais velha dessas terras, não sente o chamado. Ou talvez sinta e não perceba.
“Eu não sou comunista.” Respondeu Dante.
“Ah. E também” disse Ingrid “tinha um primo seu vindo buscar quem não fosse pra lá. Acho que chama Tuco. Nick Tuco.”
Dante, movendo-se rápido demais para que olhos jovens pudessem observá-lo, girou a chave de segurança embaixo da mesa e digitou a senha de doze dígitos. Grades pesadas caem sobre as janela de ambos os lados, bem como sobre a porta, e um notebook começou a bipar insistentemente sobre a mesa próxima. Dante saltou para a cadeira próxima e inseriu a senha de desbloqueio da máquina. Ingrid protestava pela falta de atenção, mas o Nosferatu encontrava-se em outra realidade.
ShrekNET já não mais existia, mas a mão armada do clã ainda espreitava cantos obscuros da rede. Dante lançou hideByMe, o programa que é responsável por checar as entradas e saídas dos terminais de seus aliados. Um a um, todos retornaram resultados positivos. O vampiro suspirou aliviado. As máquinas dessa rede precisam ser reativadas com uma senha cuja cifra só o clã conhece, caso alguma falhe, toda a rede é notificada. Seus aliados estavam (presumivelmente) seguros, pelo menos por enquanto.
Ingrid continuava “E aí eu disse pro guri que malkaviano não era bagunça e enfiei a cara dele no asfalto. Ei, posso ir embora?”
Dante retornou a sua mesa principal e inseriu o código de liberação da porta principal.
“Obrigado querida. Você me deu muito no que pensar. Por gentileza, diga a senhora Francisca que preciso conversar com ela. Sobre o fim do mundo e essas coisas.”
“Ah, digo sim, ela vai ficar bem feliz. Fim do mundo tem sido o assunto favorito dela nessa semana. Boa noite senhor Dante, é sempre um prazer fazer negócios com o senhor.”
Ela acena levemente e sai. Dante aciona as grades de proteção da porta novamente. Com o telefone em mãos, cancela todos os outros compromissos da noite e envia uma mensagem a Ariel.
“Tenho um novo alvo. Base64. As instruções vão estar lá quando você chegar. Não volte pra cá até que eu diga que é seguro.”
A Malkaviana responde em poucos momentos “OMW”. On my way. O Nosferatu, só e preocupado, ativa o hideByMe uma vez mais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário