quinta-feira, 27 de junho de 2019

O guardião de meu irmão

Alvo contemplou o semblante soturno de seu senhor com um misto de desprezo e respeito. Ambos estavam nus no escuro, como era seu costume, saboreando o silêncio da morte e o cheiro adocicado do vitae do Cainita abatido no último ataque.

Rastrear um Nosferatu no Rio de Janeiro era uma tarefa bastante árdua mas não impossível para mortos de sangue refinado. Belisário, um ancião do clã e casa das sombras, fez do jovem a seus pés um exemplo do que há de cair sobre aqueles que se põe entre um guardião e sua presa.

“Observe” disse Bel. “A carne é escura, mas não completamente decomposta. Ele não deve ter mais de uns poucos anos de morte”.

Alvo segurou os dedos retorcidos do Nosferatu. As unhas sujas e amareladas não lhe foram de grande utilidade quando a noite se levantou e devorou suas pernas. Havia uma morbidez estranha e distante no tom de Belisário. Eles já haviam passado muitas noites em caçada - era seu trabalho, no fim das contas, mas a sobriedade da lição carregava um peso que para Alvo era novidade.

Belisário continuou “As coisas que você ouviu sobre a diretoria são verdade. Após a morte da Regente...É hora de sermos mais cuidadosos com nossos planos”.

Alvo se recordava. Muitos de seus contatos estavam silenciosos. Uns outros tantos haviam sido destruídos. Haviam boatos sobre vários Lasombra se unindo a Camarilla, o que soava como algo bastante estúpido.

“Eu recebi uma carta de nossos amigos” Bel continuou, referindo-se aos amigos da noite, o corpo governante do clã. “Para cada um de nós que se unir a Camarilla, um ancião do clã deve ser sacrificado.”

Então era verdade. Alvo sentiu um leve tremor em suas entranhas. Um formigamento de antecipação que em uma noite normal lhe causaria repulsa. Ele arrancou um dos dedos ossudos do Nosferatu e o esmagou no punho. Por um instante, pensou em gritar, rugir, deixar com que a besta o levasse para longe deste momento. O Ducti levantou os olhos e contemplou a noite sem estrelas antes de perguntar “Porquê?”

Belisario moveu-se lentamente para trás de Alvo e segurou seus ombros gentilmente. A carne era fria e incolor. “Cardeal Polônia levou a maior parte de nossas forças para o oriente. A guerra vai continuar a ser travada por lá até o sol apagar e a noite consumir tudo que existe”. Não havia teatralidade em sua voz. Era um lamento e uma maldição.

O ancião continuou “o sabá como você conhece existe por que os Lasombra inventaram a revolução. Quando eu tinha sua idade eu e meus irmãos matamos nossos senhores e nos libertamos de sua complacência e tirania. Nos banhamos em sangue antigo e por isso sobrevivemos as chamas da primeira inquisição. A guerra contra nossos avós é o motivo pelo qual existimos. Agora, a guerra tem um novo patamar. Eu sou o ancião que deve ser destruído para que nosso clã sobreviva.”

Muito do treinamento de Alvo fez sentido naquele momento. Quando ele foi arrancado de sua vida, de sua esposa, de seus filhos. Quando Belisário o feriu e o humilhou. Cada castigo e sermão foi parte de uma conspiração. O ódio aos senhores era a força motriz do clã - a cobiça, a inveja, a busca pela excelência onde quer que ela estivesse - eram ferramentas para preparar as crias da noite para o momento em que o sabá falhasse e uma nova geração de magistrados carregasse o cetro e manto de reis da noite.

Ainda era difícil de acreditar. Alvo passou umas tantas décadas levando fogo e treva para os elísios da Camarilla. Ele era o Ductus de um bando de guerra, um soldado sacramentado e abençoado pela taça da Vaulderie e pelos ritos de Caim. Ele pesou suas palavras demoradamente antes de continuar. “Eu não tenho nenhuma intenção de me unir a Camarilla, meu senhor.”

“Então eu falhei com você.“ Belisário deitou-se no chão e pequenas membranas de treva começaram a circulá-lo e a lamber sua carne. “Não vai ser simples, meu querido soldado. Você e seus irmãos vão tolerar toda sorte de humilhação e demérito pelas próximas décadas. É necessário. Quando sua base de poder for estabelecida, será hora de tomar o controle dos recursos da torre de marfim. Não estamos nos rendendo, não estamos abandonando nossa guerra - estamos usando das ferramentas que temos da melhor maneira que podemos. A inquisição é um inimigo mais poderoso do que a Camarilla jamais foi.”

Havia verdade nas palavras do velho Lasombra. Muitos refúgios comunais foram incinerados nos últimos meses e bandos inteiros foram aniquilados por meio de ataques surpresa ao meio dia. Alvo sentou-se sobre o que restava do Nosferatu abatido e pressionou sua mão esquerda contra a testa. “Quantos do clã vão se unir a torre?”

“Poucos, a princípio. O preço é alto e é necessário escolher os sacrifícios com cuidado. Os mais ambiciosos e competentes Ancillae serão os primeiros a serem chamados. A cidade do México irá cair, Montreal logo em sequência e por fim nossas bases aqui, na América do Sul. Sem o punho firme dos amigos da noite o sabá estará desorganizado demais para se defender. Os anciões que morrerem em nossa manobra vão deixar um vácuo de poder que vai canibalizar o que restar de nossa cruzada. Será nossa última e gloriosa guerra civil, e é uma pena que não estarei aqui para influenciá-la.”

“De fato, uma pena.” Respondeu Alvo. O vínculo com o senhor lhe martelava a alma neste momento. Ele queria matá-lo, não pelo clã, pelos amigos da noite ou pelo caralho que fosse - ele queria matá-lo porque este jogo estúpido era uma afronta e uma aberração a tudo aquilo que o sabá significava.

“Somos um clã de trevas profundas” Disse Belisário. “Espero que encontre descanso nisso, minha cria. Existem forças agindo na noite que fazem com que aqueles tão velhos quanto eu sejam uma ameaça maior ao sabá do que qualquer pequena ou grande traição que possamos maquinar”.

Alvo sentiu que havia terrível e monstruoso nas palavras de seu senhor. O ancião carregava um olhar vazio, distante, e sua voz estava muito mais adocicada e afável do que de costume. Belisário era um arcebispo. Uma criatura vil e repulsiva que em noites de ritae se banhava no sangue de dezenas e recitava as litanias de Caim com paixão e devoção insanas. Não cabia a alguém de tamanha potência de sangue se deixar levar por sentimentalismos e filosofias baratas.

“Mestre, peço que o senhor me conte o que lhe aflige. Minha paciência para esse jogo encontra-se em seu fim.”

Belisário suspirou e fechou os olhos. Quando os abriu, eles eram órbitas negras. Fumaça escura saiu de sua boca e narinas e um grunhido seco revelou suas presas afiadas e sedentas.

“Tudo que existe é nossa guerra, Alvo. Tudo que importa é que sejamos vitoriosos. E se eu lhe dissesse que estamos perdendo? Que desde sempre estávamos cientes de que não seríamos vitoriosos? Que as centenas que condenamos à morte e a morte final sofreram por que quisemos fazê-las sofrer, e não por um propósito maior? Eu menti para você conforme foi necessário durante o tempo que passamos juntos. Não vou mentir agora. A história que te ensinei, sobre como eu e meus irmãos matamos nosso pai - ela não é inteiramente autêntica."

A noite ficou ainda mais silenciosa. Alvo absorveu o peso das palavras, questionando se seu senhor estava a jogá-lo em mais um exercício cruel destinado a fortalecê-lo. Era pouco provável. A história da morte do antediluviano Lasombra era recitada a todos os membros do clã até que fosse amarrada a sua mente. O cerca ao castelo, a morte do opressor, a quebra de grilhões. Ela era contada na Palla Grande anualmente em meio a sacrifícios e fogueiras. A memória dos que pereceram na batalha era venerada e o clã se sentia mais forte sabendo que sua transgressão fratricida foi o que possibilitou que o sabá existisse.

“A cruzada no oriente médio” Continuou Belisário “ela confirmou o que muitos suspeitavam. Nossos bandos estão diablerizando anciões às dúzias em busca da morte de nossos ancestrais genocidas. E eles estão nos chamando. Estão chamando aqueles de sangue forte o suficiente para ouví-los. Não sabemos quais os desígnios do pai tenebroso, mas sabemos que é ele. Anciões de outros clãs também ouvem seus avós os convocando para protegê-los das Espadas de Caim. Se ele não morreu durante a revolta, é por que era impossível matá-lo. Eu não quero acreditar nisso, mas mesmo agora, ouço seu chamado. Prefiro que você me mate aqui e garanta com isso uma chance de reinar na Camarilla do que atender ao chamado do pai e lutar contra o Sabá. Não estou lhe oferecendo uma escolha, meu querido assassino. Eu vou morrer para que meu clã possa ter uma chance de lutar em uma noite vindoura.”

Alvo sentiu a besta gritando em seu peito. Ódio, puro e bruto, era algo que os Lasombra desprezavam. Controle e domínio sobre a besta eram preferíveis sempre. O Ductus levantou-se e caminhou em círculos em volta de seu senhor. A velocidade dos passos era infrequente e um turbilhão de pensamentos o impedia de tomar uma decisão. Ele se sentia fraco e enganado e sua fúria o fazia ganir e solfejar como um animal acuado. Ele era Lasombra. Era o guardião de seus irmãos. Era a espada de Caim na grande cruzada. Alvo espremeu os olhos com as pontas dos dedos, respirou profundamente e gritou antes de continuar a caminhar em volta de seu senhor.

“Se lhe serve de algum consolo, meu querido Alvo, de todas as minhas crias, você foi a única que eu sempre considerei digna de levar adiante minha linhagem. Não carrego de você mágoa nenhuma”.
A súplica de Belisário caiu sobre ouvidos surdos. Era claro para Alvo que ele as havia ensaiado muitas vezes antes de proferí-las.

O Ductus chamou a noite e fez de seus punhos tesouras tenebrosas. Ele saltou sobre seu senhor e enfiou-as em seus olhos. Rugindo freneticamente pressionou as membranas do mundo morto contra a carne cinzenta e antiga de seu senhor. Ele queria gritar, queria argumentar, queria pedir desculpas, mas foi incapaz de se controlar.

A besta exigiu o seu quinhão e tudo que existia para alvo era o sangue ancião de seu pai-em-morte. Ele bebeu profundamente, parando pouco antes do fim. O Ductus não derramou nenhuma lágrima enquanto o corpo antigo abaixo de si se desvanecia em cinzas e podridão. Alvo estava irritado, sedento e desejando vingança.

Pro inferno com a Camarilla, com a inquisição, com os amigos da noite e com toda essa bosta. Os antediluvianos estavam chamando seus filhos para defendê-los na grande cruzada e Alvo não tinha a intenção de abandonar sua guerra sem antes dar tudo de si.

Pertencer a Espada de Caim é estar em guerra. Contra os velhos, até o fim do mundo, sem nunca se comprometer, nunca recuar, nunca negociar com aqueles que seguram a mordaça e a corrente. Belisário duvidou da causa e morreu um covarde. Alvo não cometeria o mesmo erro.

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