Naquela tarde profana, o sopro do avô inverno entoava o réquiem para os caídos com uma notoriedade especial.
Quantos guerreiros haviam sido abatidos no ataque? Era difícil ter certeza, principalmente por que os vampiros não ligavam para estes pequenos detalhes.
A ordem do voivode tinha sido clara. “Sem prisioneiros”, falhar significaria meses de punição nas caprichosas garras do demônio do leste. Não era uma possibilidade agradável.
Os quatro mortos se entreolhavam em silêncio, esperando o retorno de seu batedor.
“Quanto tempo esperaremos pelo relatório?” Disse o que parecia ser o líder dos mortos.
“O suficiente, meu irmão” Respondeu Derek, enquanto se aproximava de porta de uma igreja em chamas.
“Quantas vezes eu já lhe disse que não és meu irmão, criança! Somos soldados a serviço do mestre, e eu sou seu maldito líder, é só isso.”
Ele avançou, cansado da insubordinação do cainita desgarrado. No caminho, pegou o corpo de uma criança empalada e puxou os ossos de suas costelas para criar uma maça, rasgando carne e veias sem discernimento.
“Agora vou te ensinar a respeitar seus superiores!”
Os outros dois vampiros, Arshak e Heind, não moveram um músculo. Os longos invernos de morte haviam lhes ensinado a respeitar cada um dos caprichos de seu lorde. Derek também não reagiu.
O Tzimisce segurou a haste de osso e carne com as duas mãos monstruosas, e saltou sobre seu adversário com impeto e ódio. A besta rugia e exigia sangue.
Com toda a calma habitual, Derek calculou sete formas de contra-atacar, dois segundos antes da conclusão do golpe, ele descartou a todas elas e, com um passo de dançarino, desvencilhou-se para a esquerda.
O demônio amaldiçoou seu inimigo, e gritando, girou os braços furiosamente e estocou o ar. Derek não estava mais lá.
Arshak e Heind sacaram as espadas e ordenaram que o sangue fortalecesse o corpo. Nenhum deles possuía a segunda visão refinada o suficiente para enxergar o mando de trevas de seu adversário.
Os três vampiros se reuniram, Arshak foi o primeiro a falar.
“Pelo que sabemos ele pode se esconder até a Gehenna devorar a todos nós, meu senhor.”
Heind puxava os ossos para fora das costelas, visivelmente perturbado pelo combate.
“Ele não é covarde, meu amigo, é apenas alienado demais com essa história de 'um sangue em Caim'.”
“Pro inferno com a filosofia dele” disse Esme, o líder. “Quero os malditos testículos desse verme nos portões de nosso manso.”
Ele sinalizou para que os três se separassem e procurassem por qualquer sinal do vampiro. Foi um erro fatal.
Há poucos metros dali, debaixo da sombra da cruz, Derek observava a tudo com absoluto desinteresse. Eles eram estúpidos, brutos. Fingiam ter respeito por seus mestres e tradições, mas estavam tão consumidos por sua besta que mal conseguiam se lembrar da tradição que os acorrentava ao solo da mãe Rússia.
Ele entrou na igreja arruinada, concedendo a si mesmo a luxuria de esquentar seu coração com determinação sobrenatural na casa do deus porco. Muitos camponeses fugiram para o refugio do filho do carpinteiro no início do ataque, e por algum motivo misterioso, a cruz e o sacerdote foram de pouco uso perante a sede dos quatro mortos.
Por todos os campos, bancos quebrados abrigavam pilhas de corpos cuja fé foi despedaçada e a vida extirpada. Os seis homens mais velhos da vila foram crucifixados de cabeça para baixo, sua carne para sempre profanada em nome da vontade imortal do mais cruel dos Voivodes.
“Meu amado mestre, será que isto é realmente necessário? É preciso exaltar o poder da carne e do chicote com tamanha crueldade?”
O vampiro se aproximou do altar, cobrindo a boca com a mão, por um instante, chegou a pensar que não seria capaz de contemplar a obra de arte blasfema que seus companheiros criaram.
O padre do vilarejo estava deitado sobre o altar de pedra, seu peito aberto ostentava um coração que ainda batia em soluços frágeis e irregulares. Seu intestino havia sido costurado a suas costas, formando uma cruz esponjosa e úmida. Logo ele morreria intoxicado pelas próprias fezes.
Ceifar-lhe a vida neste instante seria um ato de clemência?
Era difícil ter certeza. Derek era, acima de tudo,um assassino. Seu mestre anunciava aos quatro ventos que ele era “a mais faminta lâmina que já tive em meu salão de armas”. Afinal de contas, quantas centenas de inimigos já caíram perante seu poder? Bastava um comando do mestre para que ele levasse a espada até os confins da terra mãe.
Mesmo assim, a cada vez que ele matava, algo definhava e apodrecia dentro dele – sim, a cada vez que ele atendia a um dos sórdidos caprichos do Voivode, sua alma morria um pouco. Ela estava enclausurada, doente, mas ele não podia abandoná-la.
Esme entrou no santuário, cuspindo nos corpos em desprezo a fé do deus de seus inimigos. Derek observou-o calmamente. Ele tinha pouco mais de dois metros de altura, todo seu corpo era coberto por uma carapaça quitinosa repleta de poros gangrenosos dos quais escorria um líquido viscoso e escuro. O elmo de osso era arqueado e críptico, dando ao vampiro um aspecto alienígena e selvagem. Seu braço direito era uma espada pontuda e cheia de farpas, e no braço esquerdo, ele carregava um enorme escudo branco e vermelho feito de pessoas.
“Por acaso pretendes se esconder para sempre, verme? Saiba que posso sentir toda a imundice emanada de teu sangue inferior! Logo terás o mesmo destino da meretriz que -”
Antes de concluir a frase, Esme conheceu a desagradável sensação de ter as pregas vocais separadas do pescoço. O demônio se contraiu ao sentir o sangue espirrar torrencialmente, sua voz, antes imponente, agora era um chiado patético e amargo. Um instante depois, Derek contraiu o punho e acertou o demônio no plexo solar, a força do golpe foi o suficiente para arremessar o Tzimisce
Derek acariciou a garganta de Esme, e lentamente sorveu o sangue que lhe tingia os dedos. Ele desceu pela garganta com dificuldade, era amargo, seco. Puro sangue russo. No peito do vampiro, a besta urrou por mais e Derek contorceu a face rosnando. Ele sabia que não conseguiria resistir.
Arshak e Heind tentaram entrar, mas sabiam que não era sábio. Nada ficava entre o abutre de Novgorod e sua presa.
Abaixo dele, Esme resistia como podia, ele fez com que o sangue que lhe sobrava curasse as feridas, mas ele não foi o suficiente para devolver-lhe a carne perdida. Após um longo e desconfortável minuto, Derek falou:
“Perdoa-me, mestre, dono de meu coração e minha alma condenada. O sacrifício que lhe ofereço é pequeno e bem sei que sua sede é insaciável. Como fez nosso avô, este humilde servo agora ceifa o ramo podre da arvore gloriosa de tua linhagem. Que a morte deste desgarrado sirva de exemplo a teus filhos queridos, e que nenhum deles desonre a tradição sagrada da terra e do sangue. Perdoa-me pai pois falhei em discipliná-lo enquanto havia tempo, castigue-me pai, pois sei que mereço punição por meu erro.”
O vampiro sentiu as presas crescerem dentro da boca. Era hora de matar.
“Perdoe-me, meu irmão.”
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