terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Prelúdio noturno para o grande levante

“Esta feito, minha senhora.”
A templária se levantou. O cabelo negro e liso ainda manchado pelo vermelho do combate. A seus pés, morte e miséria. O bispo havia se provado indigno de sua posição.
Adele acariciava seus próprios cachos cor-de-ouro com a mão esquerda, as maçãs do rosto estavam pálidas pela sede e seu vestido de festa havia sido arruinado, atingido em mais de um lugar pelos fragmentos de uma granada rebatida pelo definitivamente-finado bispo de Stuttgard.
“Sinto-me...vazia.” A pequenina mordeu o lábio inferior delicadamente ao falar. Sua voz baixa pairou como um suspiro pelo estacionamento. Ela encarou as paredes e os carros quebrados e os vidros partidos com pesar.
A cidade lhe era estranha , suja. O brujah despedaçado a seus pés havia questionado o julgamento da Priscus abertamente e por isso havia morrido, mas a vitória não trouxe a Adele nenhuma satisfação.
Algo a consumia já a algum tempo. Um desejo de liberdade que urrava e esperneava e era açoitado mais e mais ferrenhamente a cada noite, a cada rito, a cada movimento nas cortes de sangue.
“Rainha de meu sangue, se é alimento que desejas, o providenciarei” Disse a templária.
Mesmo em pedaços, ela era firme. Sua armadura noturna havia se dissipado no combate. Ela estava nua em sua palidez gloriosa, perfurações rosadas afligiam-lhe o ombro esquerdo e uma das mãos havia sido quebrada , fragmentos amarelados de ossos escapavam-lhe pela palma e os dedos estavam torcidos em ângulos improváveis.
“Não é a fome que me aflige, espada de meu poderio. É a fadiga.” Respondeu a Lasombra, pensativa, caminhando nas pontas dos pés divisando os restos sangrentos do inimigo abatido.
“Nomeie o que desejar, minha senhora, e será feito.” Disse a confusa templária, enquanto reatava os ossos e fazia seu corpo cuspir as ultimas balas.
“Vamos para Munique, minha campeã. Exigirei do velha profeta as respostas que ele me deve. Levante a hoste e convoque meus subordinados, é tempo de levar o martelo e a foice aos aliados de meu sire.”
A ultima palavra foi expelida com pesar. Adele não desejava mais guerra, mais batalhas. Ele não tinha cobiça real por mais poder ou domínios, mas era necessário. Era o caminho que ela sabia trilhar.   
“Será feito como ordenastes, minha senhora.” Respondeu a templária inabalável.
                                                                              .....



O lugar era o nada, e no nada existia uma torre.

Um corvo cego pairava na unica janela e sangue escorria de seu bico.

Quando as gotas tocavam o beiral, as pedras fumaceavam.

O sangue era preto e tinha cheiro de morte.

Dentro da torre dormia um mago feito de carne e sonhos e espelhos e essas coisas de que magos são feitos.
 
Ele dormia por estar cansado. Por muito tempo o mago fez torres em lugar nenhum e elas nunca foram altas o bastante.

O céu era preto e tinha cheiro de morte.

Em algum lugar no céu havia uma torre.

Na torre, um corvo cego pairava.
...



Continua.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O espelho do mago - Ato 1

Uma pequena história sobre um favor prestado a alguém que não pertencia ao sangue e a interação entre meus Lasombra e meus Malkavian, em três partes









Sou movimento, oblíquo e inconstante.
Mergulho minha Forma Espelhada na realidade primária. Um corpo a quem pertence minha vontade. Penso, manifesto, faço-me carne.
Encontro-me em um lugar enlouquecido. Sons mecânicos ecoam por corredores amarelados que cheiravam a urina e inconstância. Uma presença quase-morta me acolhia. Um eco jovem,um sussurro de consciência mordiscando a mortandade.
Deslizo por salões inquietos. Em meu caminho, mortais em vestes brancas tremem de pavor. Um coração para em algum lugar. Eles são cegos a minha presença, mas ainda conseguem me sentir.
Alimento-me de pensamentos fragmentados e absorvo horrores escondidos em mentes  oprimidas. Vejo nomes de poder e manifestações mesquinhas de ego e pretensa razão.
A vastidão quimérica do labirinto de corredores me absorve. Mil aromas alienígenas me cegam e chamo o poder para encontrar o caminho.
Em meu peito podre pulsava a fome e a dor corpórea. Eu já não mais sabia andar com a graciosidade de outrora, não mais sabia caçar aqueles do sangue que me serviam de verdadeiro sustento. O preço pelo invólucro de carne era alto.
Enfim encontro o quarto do escolhido. Atravesso o beiral da porta aberta e sou surpreendido pelo choque da aura.
Ele estava lá, pequeno e ossudo. Um garotinho, não mais velho do que Aquela que me é preciosa   era no dia em que a trouxe para a noite. Era pálido, fétido e doentio. Não tinha cabelos e sua pele purulenta parecia estar desgrudando da face. Nos cantos da boca, feridas oleosas e vermelhas se faziam presentes. Estava sobre uma cama imunda em meio a fezes e restos de comida.Um dos olhos era branco e oleoso, o outro era cinzento e semicerrado. Estava morrendo e por isso podia me contemplar.
“Você é o diabo?” Disse a voz errática da criança. Ele não tremia e não dava sinais de que desviaria o olhar. Me aproximo e ele não recua.
“Eu sou Derek e empunho o cetro do rei do firmamento, e ajo em seu nome. Sou Lasombra, rimador da hora tardia e sacerdote do fim de tudo.” Respondo em um tom mental que só os despertos sabiam ouvir. Tento mover meus lábios, mas já não me recordava do processo que formava palavras em carne.
 Eu tinha tanta fome.
“O que quer de mim? Eu juro que não fiz nada” A sobrancelha do olho vazado e os joelhos se levantam. Ele abraça as pernas e apóia o queixo nos joelhos.
“Eu venho em nome do avô de teu avô, que uma dia foi meu aliado. Tenho um dever a cumprir com aqueles de sua descendência.”
Rugidos metálicos ao longe, gaiolas se abrindo e animais regojizando. Uma luz vermelha piscava. Um coração pulsava pela ultima vez. Sangue ralo e sujo era derramado, não longe de mim.
“E...eles vão vir me pegar. Va-Vão  me machucar e e-eu não q-q-quero” A criança chorava agora. Ela não cheirava a medo ou desespero, só mágoa e ódio.
“Você esta desperto. Eles não podem te ferir. A carne é só uma casca.” Minhas palavras não surtiam efeito. Não fosse ele descendente de Tethanon, eu violaria seus pensamentos e o forçaria a entender. Mas eu não podia. Sua mente estava ferida e além do meu alcance.
“E-eu...eu não posso fugir, não tenho pra onde fugir” Negação. A condição natural da mortalidade
“Você não esta preso. Não existem paredes além dos espelhos, e os espelhos se curvam diante daqueles que olham para si mesmos. Não existem muros ou portas ou grades, olhe-se no espelho e entenda o caminho.”
Minhas palavras finalmente o tocam. Seu rosto se levanta e pende para os lados como se estivesse solto do pescoço. O olho bom gira para trás e a língua, suja e fibrosa, escapa pelo canto da boca. Ele baba antes de começar a rir histericamente e ouço passos se aproximando.
“MAS...O ESPELHO...ESTA QUEBRADO”



Continua.

domingo, 25 de janeiro de 2015

História de amor dos mortos: O não-estar

-- Breve texto sobre misticismo do abismo em ação no Astral. --

Era tarde e eu estava morto.
Eu era torre de Noite Escura. Já não tinha um corpo de carne há muito tempo. Não me recordava do que costumava ser e sentir.
Eu estava em um lugar sem cor. Uma floresta insana perdida na inexistência. O Astral. Ao meu redor, estranhas macieiras ossudas despontavam a esmo. Seus frutos eram corpos infantes  e inchados. Eles viviam, moribundos, e murmuravam versos de decadência em uníssono.
Cordões de prata ligavam os frutos-crianças, eles vibravam a cada novo verso, como se puxados por um titereiro invisível, a supra vontade do não-existir, o além das consciências, o vento no fim do tempo.
Torno-me pensamento e ação. Crio o Verbo e chamo o Poder. Deixo de Permanecer e me vejo em uma encruzilhada entre muitas pontes e muitas vontades. Projeto o caminho em dimensões que não mais existiam e, no Escuro, invoco meu direito de sacerdote.
A noite nasce além do firmamento e as pontes são engolidas. Treva líquida borbulha em dimensões não existentes e os caminhos sangram. Sinto a dor dos mundos que poderiam ter existido mordiscar minha alma condenada. Uma infinidade de gritos sufocados no carrossel do inevitável. Portões violados e selados.
Algo morre no horizonte inalcançável. Eu suspiro e meu caminho se torna verdadeiro. A mandíbula do abismo se abre e o piche etéreo se torna condutor da verdade. Finos braços de nanquim escapam pelo portal. Manifestações do sangue, manifestações do poder.
Uma velha vontade ruge e o feitiço se completa. Aquela região era agora consagrada aos Verdadeiros Mortos Abortados.
Em outro plano, em outro tempo e lugar, um homem pequeno enlouquecia e clamava pelos Antigos. Projeto meu nome em sua mente e ele me pertence. Instruo-o no caminho. Ele faz sacrifícios de sangue para Dagon e oferece seu corpo em holocausto.
Concentro-me no conceito da ausência do sopro. Evaporo. Torno-me uma entidade do não-estar.
Morro.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

[incompleto] Fagulha de consciência

 - Texto incompleto a espera de revisão futura - 







Cicatriz moveu-se pesadamente pela sala da chacina, ferido pelo combate que há pouco travaram. Uma haste metálica havia atravessado seu ombro e três de seus sete olhos haviam sido dilacerados. Ele arrastava um dos lupinos abatidos pelo pé. A fera era parte pelo ensanguentado e parte ossos expostos.
“Irmão”, disse ele a Adalbrecht, com a cabeça abaixada. “Este um tem ossos firmes. Um bom cálice para a conflagração. Sua benção se faz necessária.”
O Lasombra estava absorto em pensamentos. A palidez de sua pele havia sido realçada pelo esforço da batalha. Ele observou o guerreiro e o corpo por um breve instante.
“De fato, espada de minha alma, este um é digno de nossa cerimônia. O rito se iniciará de imediato.”
...
Ao mesmo tempo, em outro lugar.
“Permissão para fumar, senhor” Disse Devus, com um sorriso zombeteiro nos lábios que não o pertencia.
“Concedida” Respondeu secamente Andrew, enquanto ajustava o Zoom da mira do rifle de caça.
Dev cambaleou pelo arranha-céu, os dedos tateando os bolsos do casaco em busca do isqueiro. Alice, que estava dentro e fora dele, e estava em lugar nenhum, sentou-se na beirada do peitoril.
“A vista daqui é maneira, Dev, não sei por que passamos tanto tempo enfiados em esgotos e em tripas de não-sei-o-que.”
Dev puxou a fumaça do Marlboro light para si, deixando o calor descer por sua garganta. Sua amada, vestida em couro com botas largas e pretas, havia prendido o cabelo e pintado os lábios de vermelho. Estava linda. Ao lado dela, o Brujah finalizava os ajustes na mira da arma. Ele só esperava um sinal.
“Fazemos o que nos cabe, meu amor. Servimos a Caim.” Disse Dev em um sussurro, procurando a lua que havia se refugiado atrás de nuvens gordas e sem cor.
“Silêncio, profeta” Retrucou o Brujah. “Sua presença é tolerada, não é desejada.”
Alice, inexistente para o Ductus, pigarreou e mostrou a língua. “Mate esse filho da puta, Dev, mate por mim.”
Dev recuou e pensou em fogo. Virou as costas para o Ductus e sua amante estava novamente a sua frente. “Mate”, insistiu.
Ele tragou mais uma vez. Fechou os olhos e mentalizou sua senhora. A velha bruxa há muito havia desaparecido, em seu ultimo encontro, tudo que recebeu foram instruções enigmáticas a cerca da cardeal de Dresden e do bando que agora integrava. Pensou em uma palavra esquecida que havia aprendido com larvas insanas do mundo espelhado. N’lah.
O malkaviano não gostava de magia. Não gostava de nada que não entendia. Lembrou-se de suas poesias de criança, dos versos que escrevia quando sua alma mortal não estava olhando.
Ar’c Nth ehnir, Ar’c Nth N’lah. Que haja sopro, que haja morte.
 Suspirou e apagou o cigarro com a ponta da bota. Estalou os dedos e o Ductus pressionou o gatilho. Fagulhas de som ao longe,  vidro partido, um corpo ao chão.
“Esta feito, profeta” Disse Andrew, relaxando os ombros. “Sua colaboração é apreciada. Encontrarei-me com veiga e traçaremos o próximo passo. Reporte diretamente a Adele no Salão Escuro.
Dev franziu os ombros. “Será feito, Ductus de minha carne. A Alma da Espada permanece afiada.”

“Uma Espada.” Respondeu o Ductus, enquanto se retirava.

Um instante de presciência

Era tarde e eu estava morto.
Algo havia me abandonado. Algo quente e bonito cujo nome eu já não mais me recordava. Uma pessoa, uma sensação, algo parecido.
Eu tinha tanta fome.
Em minha mente, flashes de momentos não vividos. Dores as quais eu era estranho. Um passado que já não era mais meu. Eu ouvia aqueles que não estavam ali, e eles chamavam com tanta força, gritavam para mim, dentro de mim. Estava tão nervoso.
O posto de gasolina era a neutralidade da insignificância. Eu não sabia dizer se estava ali de verdade. Nada ali, nem minha existência, importavam. Nada exceto ele, que de todo o cardume torpe da casualidade, era o mais bonito.
As portas se abrem em um silvo. Como se nada mais existisse, me ajusto a realidade temporal e as cruzo, invisível aos olhos dos cegos. Ele estava lá, atrás do balcão, um boné vermelho e um avental, um sorriso cansado e noturno, olhos verde e musgo. A sua frente, um casal de argentinos atípicos e barulhentos. Síbilo morte e ambos tremem e choram apavorados por conta de uma abominação que não estava lá. Síbilo doença e eles apodrecem, mudos, enquanto as paredes da alma imortal se partem. Eles, fracos, morrem por dentro enquanto meu escolhido treme de pavor.
Se movimento vagarosamente para trás do balcão. Os estrangeiros encolhem-se em posição fetal e sangram pelos olhos e ouvidos.
O doce aroma adocicado de míngua mental desperta o caçador em mim.
Tenho tanta, tanta fome.  
Posiciono-me atrás de minha refeição. Embriago-me com o  cheiro de seu suor e suplico por um perdão que não existia. Bebo de sua culpa enquanto roubo sua memória. Ouço sua pulsação e entro na sintonia. Ataco. Mato.
Meus lábios mergulham no mar rubro do ser anônimo de minha vítima. Minha língua toca a alma e lambe a culpa. O fluxo do doce vitae me toma e faz de mim o ceifador.
Em minha consciência, um caleidoscópio. Sinto o gosto de cada promessa e vislumbro os futuros agora impossíveis. O corpo enrijece em meus braços e o coração acelera, implorando por uma misericórdia que não existia em mim.
Seco, ele vai ao chão. A ultima batida de seu peito ainda ecoando em meu ser. Pego um maço de cigarros detrás do caixa, ainda torpe pelo calor da vida roubada. Algo sussurra em mim. Torno-me novamente uma ranhura na ferida do universo, invisível aos além do sangue. Observo a tela de cristal líquido enquanto acendo o cigarro. A fumaça escapava de minha magia. Ela flutuava sozinha, desenhando câncer  e apodrecimento na carcaça inerte do mundo morto.
Um novo som. Culpa. Ele é calado por um rugido interno. “Mais”, gritava o eu surdo a mim. Abandono a loja e me dirijo ao horizonte. Algo pesava no fundo do peito. Carregava o gosto de meu amado no fundo do peito e o saboreava. Havia qualquer coisa de baunilha e passado em sua essência.
Afasto os pensamentos com um esforço hercúleo. Concentro-me no futuro próximo. Uma cidade cairia, um príncipe seria decapitado, A Espada reinaria em mais um pedaço fétido do Brasil. Penso nas outras dez mil mortes de outras dez mil noites. Penso em dez mil noites que estavam por vir e em dez mil sabores de mentes e corpos interrompidos.
Algo em mim grita mais uma vez, em rejúbilo. A parte morta de mim estava satisfeita.
E eu tinha tanta, tanta fome.