quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A essência do mal e a vertigem da queda

Escrito por meu grande amigo Davi Wasserberg, que apesar de estar em seus primeiros passos no caminho de Caim e das tradições do sangue, é um escritor talentoso e tende a se tornar o criador de muitas aberrações humanitárias e obscenas, não só em meu pequeno e feio universo austro-germânico, mas nos cenários que ele mesmo, com o tempo, irá criar.
Boa leitura.

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Pobres seres humanos, presos a suas vidas cotidianas e fúteis, nem imaginavam a complexidade do mundo que os rodeia. O terror diário é ignorado por uma parcela de conformação, de comodismo e ceticismo. Os homens se perdem achando que se encontraram, que estão no auge da descoberta.

É incrível o modismo atual sobre histórias de vampiros bonzinhos que lutam contra a sede de sangue e a própria impulsividade de sua natureza maldita... É incrível como adolescentes adoram se iludir com a ideia de um vampiro romântico, encantador, apaixonado... um vampiro humanizado... idiotizado, por assim dizer.
Se eles conhecessem nossa natureza profana, jamais teriam a coragem de escrever e propagar tais histórias sobre nossa raça.

A maldição corrompe o que já é corrupto, a morte supera a vida e o gelo substitui o fogo de nossa essência. A alma de um ser humano que morre, se desprende do corpo para um novo destino, a maldição de um vampiro é ter sua essência eternamente aprisionada em sua carcaça moribunda... não mais a alma, mas a superficialidade do corpo é o que nos rege. Escravos dos desejos e dos impulsos, somos o potencial máximo da corrupção humana. Entre nós, não existem heróis, só existe quem pode mais.
Se há ou não causas nobres entre nós, não sei dizer. Tudo que sei é que também não sou um herói, sou apenas um predador rumo a próxima presa, numa noite de outono, em uma cidade satélite, residencial.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Comentários e explicações sobre a história de amor dos mortos.

Olá a todos.

Vou postar aqui a ordem de leitura dos contos, que, por sinal, esta bastante confusa.

Boa leitura a todos, e como sempre, feedback será bem vindo.

A história de amor dos mortos - um abismo de promessas viciadas

A história de amor dos mortos: Um breve preludio para os séculos de danação.

O sonho de uma princesa cativa

História de amor dos mortos: Uma noite de doença

Derek - Uma breve lembrança do pesadelo de inverno, ato I

A história de amor dos mortos: Lágrimas de julho

A história de amor dos mortos: Dragões e sombras sobre Dresden, parte I

A história de amor dos mortos: Dragões e sombras sobre Dresden, parte II

A história de amor dos mortos: Um ato de magoa simbólica

A história de amor dos mortos: Um conto sobre o fim







A história do amor dos mortos: Uma noite de doença


O vampiro deslizou pela janela com graciosidade, em um salto calculado atravessou os três metros que o separavam do chão e aterrissou com suavidade. A imundice da cidade o golpeou com força , tomando de assalto suas narinas e fazendo com que o aristocrata desejasse não possuir o olfato tão aguçado. Ele observou o feudo vagarosamente, e usando uma velha técnica que seus irmãos de armas chamavam de “contar os corpos”, ele mentalizou o número de casas, distinguiu aromas e calculou quanto tempo conseguiria se manter no pequeno vilarejo.
Infelizmente, não era muito tempo. Quatro meses, no máximo. Depois disso ele teria que abandonar seu pequeno anjo aos caprichos do destino.
O vampiro afastou o pensamento agourento concentrando-se em seu objetivo imediato. Apesar de sempre sonhar com o dia em que voltaria a fazer jorrar vitae de almas condenadas, ele sabia que neste momento não era apropriado. Ele via pouco mais do que trinta casas acabadas e tomadas por um tapete branco e opressor. Seriam os germânicos tão avessos ao pai inverno?
Não havia uma única pessoa fora de casa, nenhuma vela acesa, até mesmo os lobos agora desfrutavam do sono comatoso que só o frio do norte pode trazer.

Fazia muito tempo que o vampiro não caminhava livremente por um vilarejo. Era uma sensação desesperadora, especialmente para ele, acostumado a ser o centro das atenções sempre que deixava a máscara cair.
A máscara. As vezes ele esquecia disso, e pessoas tinham que morrer. Esta era a lei desde os tempos de seus avós – silêncio ou morte final.
E este era o maior perigo. Se algum de seus irmãos de danação considerasse o plano dele ofensivo, ele facilmente seria condenado a prestigiar o nascer do sol. Sim, seu amor pela garota era perigoso e blasfemo em mais de uma maneira – e este risco tornava o esperança de triunfo ainda mais entorpecente.

A passos largos, a fome crescia. Fugir do mar azulado dos olhos de sua amada lhe custou mais vitae do que ele havia contabilizado para aquela noite. Ao passar pelo quartel arruinado imaginou quantas patéticas desculpas para soldados ali dormiam. Meia duzia, talvez ainda menos.
“Será que eles vão ser o suficiente para livrar este pedaço gelado do inferno da anemia de meu beijo?”

Não – mesmo que fossem seis duzias de homens de fé, eles não teriam chance. A fome o compelia a ser sempre mais forte, a ser o eterno carrasco das pobres almas que cruzavam seu caminho. Era difícil conviver com isso. O vampiro tinha consciência de que era um assassino e de que mataria tudo aquilo que aparecesse em seu caminho se tivesse a oportunidade, ele não possuía respeito algum a existência alheia e mais de uma vez fez escreveu longos tratados sobre a morte da alma nos mansos de seus irmãos de armas.
E lá estava ele, desesperadamente apaixonado por uma pequena flor de carne, um anjo triste que podia encontrar seu sono de morte a qualquer instante, pouco mais do que uma boneca de porcelana na mão do mais cruel dos carrascos, o tempo.
Ele avisou um casebre do outro lado da rua, um abrigo baixo e sujo de madeira e barro. O teto fora pintado de branco e era impossível saber se as flores ao lado da porta eram rosas ou crisântemos. A neve não deixava de ser irônica.
Levantando um leve sorriso, ele encostou a bochecha pálida na porta e se concentrou nos sons que mortais nunca conseguiriam ouvir. Conseguiu distinguir sem dificuldade que haviam ao menos sete pessoas no único comodo da casa, possivelmente uma família inteira. Ele empurrou a janela para a esquerda calmamente e sem dificuldade alguma entrou na casa. O arrependimento veio um segundo depois, e ele quase chorou ao ouvir a besta gritar.
O ar da doença distribuía sua graça sem preconceitos no berço dos recém-nascidos. As duas crianças que dificilmente tinham mais de um mês de vida carregavam na face as manchas vermelhas que eram o sinal do fim. A peste estava chegando, e ela não pouparia ninguém. Sobre a cama de palha, haviam duas mulheres idosas, um homem jovem esquelético e duas meninas que deveriam ter a mesma idade de sua amada. Eles não tinham cobertas ou casacos para espantar o frio, também não tinham comida sobre a mesa ou lenha para criar o fogo libertador. E todos eles, em maior ou menor grau, estavam doentes. O vampiro moveu-se cautelosamente, controlando o impeto de matança, e abriu a boca de uma das velhas. Os poucos dentes que lhe restavam estavam podres e amarelados, e a língua tinha um aspecto cinzento e asqueroso. Ela não sobreviveria aquela noite.
Ele se perguntou sobre qual seria o procedimento adequado, e, sem obter uma resposta clara, orou ao deus do abismo que não o ouvia para que a sabedoria de sua senhora lhe tomasse por apenas um segundo, que ele tivesse o lampejo de inspiração necessário para trazer luz as trevas da alma cansada.
Aparentemente, Tchernobog não o ouviu.

Talvez a família ainda resistisse a meia duzia de noites, mas este tempo seria mais do que o suficiente para que a febre rubra se consumisse todo o feudo. Há quanto tempo será que eles sofriam em silêncio? Seriam as pessoas deste lugar maldito tão indiferentes a ponto de não perceber que a morte estava a espreita?
Ele conhecia a sensação, e não se orgulhava disso. A fome destrói o coração dos homens.

Ele levantou uma das meninas pela cintura, sentindo uma estranha dor tomar seu peito. Ela era loira, magra e frágil. Uma mancha escura repousava sobre seu pescoço e descia pelo seio em formação. Ela suspirou baixinho, um gemido doloroso e doente. Derek segurou sua mandíbula com o polegar e o dedo médio, e em um gesto carinhoso, puxou a arcada dentária com gentileza e força. O sangue ralo começou a escorrer generosamente, e em poucos segundos, ela estava morta. O vampiro a deitou no chão frio e beijou sua testa.

"Morte gera morte."

Ele chamou a noite profunda e ordenou que as trevas destruíssem em silêncio e que elas levassem os cadáveres consigo. Sete braços negros e famintos se levantaram e envolveram pescoços e peitos, apertando com toda a determinação do mundo morto. Após doze segundos dolorosos, Derek abandonou a casa e retornou ao castelo com pensamentos sombrios e verdadeiros. A peste poderia se expandir e devorar a todos neste fim de mundo, e se ele se alimentasse de qualquer um, a doença iria se propagar por seu beijo para todo o sempre. E então Adele morreria, seu mundo morreria e seu sonho se perderia em meio a solidão.

Ele se sentou no chão, ao lado da criança, e segurando sua mão diminuta, ele chorou. 

A história do amor dos mortos: Um ato de mágoa simbólica

Derek sorriu sem jeito enquanto sua companheira removia seu punho de dentro da caixa torácica do traidor recém abatido.
"Giangaleazzo, escória antitribu, una-se ao abismo em nome de Caim, do Sabá e da casa das sombras" Disse o vampiro com a habitual rispidez romântica e teatral.

"Acho que estamos ficando velhos demais pra isso, meu amigo". Disse Kella.

"Acho que estamos velhos demais pra essa guerra estupida a pelo menos nove séculos". Respondeu o Lasombra.

Eles se entreolharam, concordando em um silêncio triste e verdadeiro. Ela espalmava o sangue sujo e os pedaços de ossos podres com asco e indignação, todos os cinco olhos cinzentos da metamorfista estavam perdidos em pensamentos distantes, malignos.

"Com todo o respeito, Lorde Derek, posso lhe perguntar qual foi o motivo que levou esta criatura que agora se encontra a nossos pés a trair seu clã, aliar-se a Camarilla, caçar seus filhos e irmãos e tentar converter nossa estimada Adele?"

"Eu não tenho estas respostas, Kella, e sinceramente não me importo com nada disso. Ele é um traidor, um conspirador e um inimigo. A morte final o alcançou por isso, e agora Milão irá queimar e mais uma vez vai pertencer ao sabá."

"Você nunca foi um bom mentiroso."

Ele abaixou a cabeça e ordenou que as sombras formassem um machado em suas mãos, a lâmina fria e negra maculou a realidade daquele instante de silêncio doloroso, e os dois velhos continuaram a caminhar. Ela retomou a conversa após um curto incidente que envolveu dois ônibus de turistas, algumas viaturas, um nosferatu confuso e excessivamente confiante e quinze braços do abismo.

"Eu não compreendo. Lutamos um pelo outro desde o tempo em que os dragões de sangue forte assombravam os sonhos dos camponeses de nosso manso e mesmo assim eu não te compreendo."

Derek parou e tentou calcular alguma resposta confortável, sem muito sucesso. Ele deslizou as costas das mãos sensíveis pelos cabelos longos e grossos de sua companheira, e então beijou demoradamente a bochecha espinhenta e ossuda da Tzimisce.
Cada centímetro do corpo profano de Kella havia sido desenhado com carinho pela caneta de um poeta louco. Os seios rosados e fartos, a cintura fina e assexuada, as pernas felinas e magras, os braços cheios de esporas pontudas...Cada detalhe foi estudado e aperfeiçoado por séculos de determinação  inquebrável. Ela era, afinal, uma das mais antigas e poderosas guerreiras do clã e casa do leste, uma das mestras do sabá e a ponte fundamental entre os metamorfistas e a velha guarda do clã. O lasombra a respeitava e admirava mais do que ele era capaz de explicar, não só pelo poder da idade e da taça, mas pela lealdade e confiança que só os seculos de dores e mágoas compartilhadas são capazes de dar.
Ela ficou visivelmente chocada com a súbita demonstração de afeto e algo dentro de sua pele draconiana e escamosa tremeu quando os sete espinhos das costas ficaram eriçados e hesitantes.

"Sinto muito." Disse o vampiro em um tom anormalmente alto "Acho que deixamos nossas almas apodrecerem por tanto tempo que as vezes esquecemos que um pequeno gesto de amor pode dar sentido ao que não tem sentido. Nós estamos morrendo há muito tempo e sabemos disso. Você tem seu ofício de carne e eu tenho minha obrigação como sacerdote, mas todas as noites, quando o sol esta prestes a esmurrar nossa cara, sabemos que estamos morrendo e que tudo que nos resta é um eventual ato de amor."
Durante todo o resto da noite, eles não trocaram uma única palavra. Enquanto soldados de carne e bandos menos importantes vigiavam saídas e aeroportos, os misticos do clã das sombras do norte sitiaram uma capela e pilharam tomos de conhecimento e magia que muitos julgaram estar para sempre perdidos. Os Tzimisce de sangue ariano conduziram exércitos de cães do inferno e carniçais guerreiros pelos esgotos, auxiliados por muitos olhos e orelhas anonimas, eles varreram seis ninhadas com o conhecimento que a vida imunda do subsolo pode lhes dar.
A unica  resistência efetiva veio por parte dos Giovanni, que lutaram clamando por seus mortos e seus ritos obscenos. Don Pietro foi destruído, bem como sua esposa, filhos, e os filhos de seus filhos. Nada pode resistir por muito tempo a fúria de dois matusaléns magoados.

O sol já irradiava seus primeiros raios dolorosos quando Derek conduziu sua companheira pelo abismo de volta para o refúgio ancestral em Moscou. Ao fim da viajem, Milão mais uma vez era a capital do sabá na Itália.

Os dois vampiros foram acariciados gentilmente pelo doce frio da fortaleza subterrânea. Há duzentos e cinquenta anos o santuário do Lasombra protegia os segredos mais terríveis da mãe Rússia, e a pelo menos cento e cinquenta ele era também o refugio e o laboratório de Kella. Eles se sentaram sobre a tampa de um dos quatro caixões de pedra e permitiram que a letargia diurna lhes tomasse o corpo. Instantes antes do beijo de Morpheus, A Tzimisce chiou e suspirou as palavras que lhe roubaram a mente durante toda aquela noite de conquistas dolorosas.

"Tudo aquilo que amei, amei em Caim e na metamorfose. Hoje acho que não sei mais amar. O que realmente nos resta, meu amigo?"

"Acho que se em algum momento aprendemos a amar de verdade, isso se foi com o sangue. O que nos resta, como eu disse, são eventuais atos simbólicos."

Derek Chamou as trevas e em um gesto teatral e solene, envolveu sua companheira em seus braços antes de deitar-se sobre a pedra fria. No abraço dos mortos atormentados, não havia um só pensamento ou suspiro. Eles estavam cansados e estressados demais para chegar a qualquer conclusão sobre seus próprios sentimentos atrofiados.

Em outro lugar e em outra noite, a cria pródiga de Derek ordenou que seus assassinos atacassem dois bispos da cidade do México. Ela queria acabar com aqueles conflitos inúteis, com aqueles Lasombra  inúteis, e com aquela regente inútil. Ela não era a mais forte, nem a mais velha e possivelmente não era a mais adequada para assumir o controle do Sabá. Mas era um risco necessário.
A rainha das cortes de sangue estava prestes a iniciar seu plano mestre, e ao final disso tudo, ela poderia despedaçar o peito e o orgulho de seu senhor só pra mostrar a ele que ele estava errado quando disse que abraçá-la foi o maior dos erros e que os dois nunca deveriam ter feito a jura que jamais conseguiriam cumprir.
No fundo de seu coração negligenciado, ela sabia que este era o amor que só os mortos sabiam cultivar, a história de séculos de ódio e paixão dilaceradoras que consumia a vontade e condenava ao inferno cada um de seus pensamentos.
"É por você, meu sire, que levarei a espada a seu peito. É por minha devoção a você que te destruirei, farei isso chorando, e estarei chorando por tudo aquilo que nunca conseguimos ser."

A história estava chegando ao fim. A história de amor e morte que só aqueles que se apaixonam por todos os motivos errados sabem contar.

Adele chorou naquela noite, e Derek a acompanhou inconscientemente. Naquela noite fria e sem sentido, uma Tzimisce confusa travou um combate terrível contra si mesma e fez uma promessa em nome de tudo aquilo que que já não lhe significava mais nada.
"Vou matar vocês dois antes do fim, e vou gritar aos quatro malditos ventos o quanto sou grata a cada um de vocês por me ensinarem o caminho da metamorfose e o caminho do coração."