A falta de foco em um jogo narrativo de horror é um entrave bem grave. Se o jogador estiver ocupado respondendo a uma mensagem no celular enquanto o narrador descreve o enigma de um sacerdote nosferatu, a coisa vai complicar pro grupo como um todo. Do mesmo modo, se metade dos jogadores estiverem discutindo sobre o ultimo episódio de Game of Thrones enquanto deveriam estar planejando um ataque ao elísio, tem boa chance de tudo dar errado.
Por isso acho necessário usar de um pequeno recurso muitas vezes negligenciado por muitos narradores. Ele é simples, direto, rápido e extremamente eficiente. Basta meia duzia de parágrafos bem escritos, e lhe garanto que os jogadores vão entrar no jogo quase que automaticamente.
Sim - um pequeno conto introdutório antes de cada sessão faz milagres.
Vocês se lembram daqueles mini-contos de uma página do manual básico da segunda edição? Acho que eles são simplesmente perfeitos para climatizar qualquer jogo. Histórias sobre medo, fome e isolamento são ótimas para incitar os jogadores a entrarem nos personagens, um texto que faça com que eles se lembrem do que são - bestas caprichosas e sanguinárias que lentamente apodrecem por dentro em uma dança eterna de sangue e morte - vão lhe render histórias memoráveis a longo prazo.
Eu preparei um pequeno texto para servir de exemplo. Sinta-se a vontade para usufruir dele em seus jogos.
Se você sentir os efeitos dele em jogo e começar a criar seus próprios, eu ficaria muito feliz em lê-los.
E aqui vai ele:
"As vezes dói tanto que é difícil entender o que é verdade e o que é ilusão. Queima, machuca.
Os analgésicos ajudam, sim, as vezes eles são tudo que você tem. Quando a mente desliga e o corpo amortece, por alguns minutos você chega a pensar que está em paz. Mas o efeito passa e a dor volta.
Ela não esta maior simplesmente pelo fato de que ela já não tem mais pra onde crescer. Ela toma cada centimetro de sua alma e, enquanto você grita sem parar, tudo que ela faz é permanecer ali, impassível, indiferente. Ela consegue roer sua carne e cuspir pedaços sangrentos de você em sua boca, e o faz sem uma lágrima, um protesto ou um sorriso de simpatia.
Então você tenta matar a dor sentindo dor. Você se lembra de cada palavra que já te machucou, cada memória amarga, cada pequena cicatriz. Você junta todas elas e chora sem parar, cria um vazio no peito do tamanho da porra do mundo inteiro, e mesmo assim ele não é grande o bastante. A dor ainda está lá, rugindo, rasgando, exigindo que você pense nela.
Ela é covarde, cruel. Ela vai te comprar com verdades duras e vai te dizer que você implorou pra que ela estivesse ali. E você vai finalmente entender que é verdade, que a culpa é sua e que você trouxe essa coisa pra dentro de você.
Quando chega nessa parte, você já tem consciência de que não ha mais volta, que nunca vai mudar.
Sim - exatamente. Você ja é um escravo da dor, ja foi subvulgado totalmente.
Ai vem as drogas, as festas, os amigos falsos, as mentiras confortáveis. Cada vez que você estupra seu corpo com algum lixo sintético você sabe que está apodrecendo. Você quer, acima de tudo, morrer. Mas se você morrer, a dor vai embora, e isso é impensável. Você precisa dela. Cada vez que você se entrega a carícia de um desconhecido, você sente que pode ser a ultima vez, que está negando a si mesmo e que esse teatro patético é um grito desesperado que vômita aos quatro ventos todo seu ódio.
Ódio. É o que vem depois.
As fugas param de funcionar. Você precisa de uma bebida mais forte, de sexo mais intenso, de viagens que nunca acabem. Você não encontra nada disso, e ai você destroi tudo que estiver no seu caminho. Se você ainda tiver algum amigo, você vai perdê-lo. Se tiver dinheiro, vai gastá-lo. Você vai afundar tanto que aqueles que te amaram um dia vão desistir de tentar te ajudar.
E ai você vai encontrá-los. Talvez seja um homem sexy com a carreira de pó mais pura que você já viu. Ou a mulher de vestido decotado que quer transar até o sol nascer. Eles vão te fazer uma promessa, vão dizer que tudo vai passar, que tudo vai ficar melhor, que vão te mostrar um mundo novo onde a sua dor não significa mais nada.
É neste ponto que começa o sofrimento verdadeiro."
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