História de amor dos mortos - Um abismo de promessas viciadas

- Acaso tu me amas, meu servo?

Perguntou o suserano, enquanto tentava recolher o intestino que insistia em escorrer pelo tapete felpudo, manchando a pele curtida dos escalpos das virgens para sempre ali acorrentadas.

- Sim, meu mestre. Eu te amo tanto quanto a força de teu sangue e tua feitiçaria me permitem, mas minha sede é alheia aos caprichos de teu laço rubro. Nesta noite, encontrarás tua morte final

O velho rugiu, e o que deveria soar como um trovão mal passava de um chiado idoso e senil. Em seu silêncio contemplativo, Derek observava sua nova obra profana.

Naboslav, seu mestre amado e voivode destas terras, tentava alcançar uma perna que talvez não fosse sua. Haviam tantos pedaços de Slachta e de cainitas desafortunados por ali que era difícil ter certeza da origem de cada membro. Entranhas, braços, cabeças e outras partes menos reconhecíveis estavam dispostas sem seguir algum padrão especifico, dispostos ao acaso pelas mãos de um açougueiro descuidado. As mãos do Lasombra tremiam agora, tanto quanto tremeram quando ele ordenou que os cães do mundo morto rasgassem e partissem a frágil realidade daquele momento aterrador. Ele queria ajudar seu mestre, queria dizer que sentia muito, que tudo ia ficar bem, que tudo foi um erro cruel e que ele queria ser perdoado.

A força do laço perdurava, mesmo naquele instante de morte sublime.

Derek fechou os olhos e, falando na língua morta, chamou a escuridão. Uma nuvem pesada e viscosa engoliu velas gordas e pedaços de carne atormentada, e finos braços de piche se enrolaram em pedaços de carniçais de guerra há pouco abatidos, tirando-os do caminho.

Uma única parte do salão de armas conservava sua luz, um circulo claustrofóbico e trêmulo que em seu interior abrigava a carcaça quase inerte de Naboslav. Outrora, Naboslav o Koldun, agora, Naboslav o derrotado. O Tzimisce reuniu as poucas forças que lhe restavam enquanto colocava seus dedos no lugar. O indicador havia sido completamente dilacerado por uma das bestas do abismo, bem como parte da palma da mão esquerda. Ele avaliou a situação com cuidado enquanto procurava por sua genitália. Não, ela não estava em nenhum lugar visível. Por algum motivo alienígena ao ancião, seus testículos lhe faziam muita falta. Era hora de recorrer ao poder do laço, embora o velho tivesse certas duvidas a respeito da existência do mesmo.

- Me digas, meu filho, por que levas-te tua espada a meu peito? Acaso não lembras quem esculpiu tua lâmina em carinho e osso?

O Tzimisce sabia que sua habilidade com palavras amorosas era, na melhor das hipóteses, rudimentar. Mas era o que lhe restava, considerando o pouco sangue que ainda fluía por seu peito. De algum lugar da escuridão, a voz serena e melodiosa do Lasombra se projetou, fria e amarga como sempre foi, e ainda assim, tão majestosa quanto a descendência russa lhe permitia.

- Me chamas de filho, mestre.

O Tzimisce tentou conter o asco sem muito sucesso enquanto colocava no lugar uma costela que havia se dobrado em um ângulo muito improvável. Ele se lembrou dos lamentos de seus prisioneiros cristãos, da forma tola e fútil como gritavam e imploravam. Ele não ia implorar, não agora, nem nunca. Ele pensou em assumir a forma de sangue e fugir pela janela que estava em algum lugar da escuridão, pensou em tentar dominar a vontade de seu servo mais uma vez, mas mudou de ideia rapidamente quando ele surgiu do mar de trevas e cravou a lança em sua recém adquirida perna. A dor física era insignificante, a dor no orgulho, por outro lado, era intolerável. Sim, ele precisava implorar, precisava enganar esse bastardo maldito e então lhe arrancar a beleza osso por osso quando suas forças retornassem.

- Pois é isto que sempre fostes para mim, meu filho e minha espada! Por quantas décadas de homem te abriguei em meu manso? Acaso tomas minha hospitalidade como ninharia? É assim que tratas aquele que levou o sangue de centenas a tua boca só para te deixar corado e forte para o inverno?

Derek estava sorrindo, e continuou a fazê-lo enquanto enrolou um fio de nanquim grosso e pegajoso no pescoço do cainita a seus pés. Com um movimento de suas mãos, dois filetes de treva pura subiram por suas costas, e então escorreram pela realidade que sangrava. Eram asas de ébano, penas grossas dos corvos do mundo além do mundo. O Lasombra se ajoelhou, e em uma reverência sublime, beijou a testa de seu suserano.

- Sempre fui teu capataz e teu mastim, meu bom lorde. Um soldado leal que arrastou teus inimigos ao inferno que melhor lhes coubesse, mas temo que eu nunca tenha sido mais bem vindo a tua mesa que os Slachta do canil. Por meu amor a ti, levei guerra e dor aos confins da cristandade, levantei armas contra turcos de sangue ralo e contra as hordas do norte. Tudo por ti, mestre, pela força de tua magia e de teu sangue. Já não sou mais escravizado por tua vontade, mas saiba que não nutro mágoas ou ressentimentos. É tudo minha culpa, e lhe peço perdão por isso.

As entranhas que ainda habitavam o corpo de Naboslav se contorceram. Se ele ainda tivesse o que vomitar, ele teria o feito. Após uma nova e breve avaliação de sua situação, ele chegou a conclusão de que estava em uma encrenca dos diabos. Derek era tão velho e de sangue tão grosso quando ele, também era um mestre da potência cainita, ou "abraço do Kraken" como ele costumava chamar, Derek não era só mais rapido como também era um guerreiro muito mais experiente, e o laço de sangue que havia o deixado de quatro por noventa anos aparentava simplesmente ter deixado de existir. Dificilmente seria possível concluir um feitiço antes de ter a língua separada da boca de uma maneira pouco ortodoxa e se algum dos seus servos ainda existisse, ele provavelmente já teria atravessado metade da Rússia pra fugir das coisas pavorosas que seu algoz conjurou dos confins do abismo. Restava continuar com os blefes e tentar capturar as emoções confusas do bastardo.

- Eu não nutro ressentimento, meu filho. Nem lhe culpo por nada. Eu te fiz forte, te dei carne dura e o conforto de meu castelo, lhe dei propósito quando você já não tinha nenhum. O que eu fiz, fiz por ti.

O filete se contorceu sobre o pescoço do ancião, apertando sem misericórdia e forçando os olhos vermelhos a quase saltarem da face, ele arfou e tentou canalizar o sangue para fortalecer o corpo, mas as palavras do guardião o impediram. A voz dele, agora rouca e insensível, transbordava de uma fúria além dos sentidos. A treva ficou mais pesada, e o pequeno círculo de luz encolheu.

- Me obrigastes a matar minha senhora para teu deleite, por três noites eu profanei o corpo dela com meu abismo enquanto bebia de teu sangue. Por três noites eu morri junto com ela, eu deixei de existir e passei a te amar com a determinação que só os mortos sabem ter. Minha garganta queimou enquanto eu sorvi a existência dela, seu maldito! Quando a ultima gota rubra abandonou o seio dela, eu senti meu peito apodrecer e mergulhei em um mar de tormento que só foi ofuscado por sua bruxaria obscena! Roubastes minha vontade e por noventa anos fizeste de mim teu capacho, me obrigastes a liderar tuas hordas de crias defeituosas por guerras que nunca foram minhas e me fizestes queimar os sonhos de homens de fé para saciar teus caprichos viciosos! Roubaste de mim o propósito, demônio, e agora que tenho um novo, tua morte será apenas mais uma das cicatrizes em minha eternidade!

Derek levantou o pulso, e suas asas de morte se estenderam majestosamente, dentro delas, Naboslav via a morte em uma centena de facetas, e pela primeira vez em muitos anos, ele sentiu pavor.

Elas se fecharam sobre ele, cortando como navalhas, dilacerando carne e osso sem preconceitos, antes de ter a garganta partida em uma míriade de pedaços cinzentos, o Tzimisce gritou – gritou como uma de suas incontáveis vítimas, ainda mais alto do que seu mais atormentado prisioneiro, sentindo que era absolutamente incapaz de propiciar tanta dor e ódio quanto seu assassino.

Após três ciclos de morte, só havia o silêncio do lento escorrer de entranhas pelas asas noturnas do Lasombra. Um anjo de morte profana, encharcado de tripas e rancores. Ao estender os braços, ele ordenou que a escuridão fosse embora. Ela recuou receosamente, devanescendo aos poucos e deixando o guardião só no matadouro.

Ele se levantou, e abraçando a si mesmo, deixou que sua consciência mergulhasse no abismo.

Era um oceano turvo e caudaloso, o mundo morto de seus avós. Por várias horas ele deslizou a esmo, sentindo a calma das trevas eternas inundar seu ser e lhe revelar os segredos proibidos e ancestrais. Havia uma promessa a ser cumprida.

A voz do deus morto ecoou pelas paredes ocas da alma do vampiro. Ela não tinha calor ou forma, nem tom distinguível, ela simplesmente era mais velha do que o tempo e mais indiferente do que a própria solidão.

"Aquele que caminha a meia noite, a quem pertence o sangue."

"Minha verdade que não lhe escapa, minha forma que por ti canalizo."

"Herdeiro de minha mácula, cetro de minha vestimenta de rei do firmamento, maior que o deus vivo é o que de teu corpo transborda."

"Um acordo em sangue escuro, óleo de meu poderio, livre de teus limites de carne, preso a tua obrigação de sacerdote."

"Teu corpo é meu espelho, em ti navego na luminescência do cosmo, juntos encontraremos a herdeira de meu reino, e tu farás dela tua filha e tua amante, pois é a lua que rege o mar noturno, e é Vênus que reflete o abismo de tua consciência."

"Por nove noites de homem mortal teu corpo será meu, pois nove são os ciclos da alma, nove são as verdades do abismo, e nove são os legados de teu avô."

"E que no fim da era de marte, eu desperte dentro dela, e que o poder seja consumado e que seu mundo seja parte do meu. Que seja este teu laço e tua promessa. Que tu transcendas, e que encontres a paz da solidão naquilo que procuras."

Quando Derek despertou de seu momento onírico, carregando verdades e profecias que condenavam o mundo vivo, ele pensou, por apenas um segundo, em desistir. Mas não havia nenhum motivo para isso. O abismo lhe deu um novo propósito, e isto era tudo que importava.

Ele se despediu de sua carne, e por nove noites de homem, ele dormiu e sonhou.

Sonhou com cabelos dourados, com palavras quentes e apaixonadas, ele viu a face de um anjo juvenil e o amou mais do que tudo, ele sentiu as maozinhãs diminutas da menina lhe tocando a face e ajudando a sorver lágrimas que ainda estavam por vir. Apesar de ainda não ter nascido para o mundo, ela seria responsável pela morte dele.

"Adele" Foi a palavra sussurrada em sua consciência pelo deus do mundo morto. Era o nome que faria a existência tremer em horror.

Adele – Rainha da casa das sombras, mestra das cortes de sangue. Sim, o abismo havia feito uma promessa. E o abismo não mente jamais.

Em seu sono comatoso, Derek sorria.