Bem vindo, ilustre visitante. Esse é um lugar onde (vez ou outra) coloco contos de vampiro. Estou lentamente atualizando com histórias feitas com personagens da quinta edição do jogo. Boa Leitura.
quarta-feira, 27 de março de 2019
Sofia & Jazmín
A mata era fechada, fria e cheia de remorso. Era madrugada e a lua sufocava em meio a nuvens negras e famintas.
Duas mortas avançavam por uma trilha errante em direção ao templo. Estavam cansadas e tinham sede. A primeira hávia perdido parte dos lábios no último combate. O corte ia da base do queixo até a orelha. Três foram as garras que a mãe-terra usou para sua vingança, três os talhos no rosto de Sofia.
“Se Patrick estiver errado, e a coisa não estiver aqui, vamos precisar de um novo sacerdote”, disse a vampira, usando um pedaço da manga arruinada da jaqueta de couro para limpar a ferida. Sua companheira, intocada pelas garras de Gaia por conta de sua feitiçaria, limitou-se a sorrir.
Elas caminharam até os primeiros raios de sol despontarem. Traçaram as linhas de proteção e chamaram os nomes que seu sacerdote havia lhes ensinado. O poder se manifestou e a terra lhes acolheu, protegendo-as do abraço de Apolo e da morte-em-dia.
Na noite seguinte elas caçaram. Encontraram uns poucos nativos e uns tantos mosquitos. Algo não as desejava lá, algo antigo e poderoso. Seguiram pela margem de um rio sem nome e sacrificaram uns tantos pescadores - suficiente para os rituais de cura e para os ofícios sacros, mas não para o que lhes mostraria o caminho correto.
Na quarta noite, Sofia sentiu cheiro de fé. Jazmín, a feiticeira, fez-se sombra e desvaneceu. Sua mágica fez com que ela fosse uma espiã eficiente. Ela desenhou com gravetos secos e sangue obtido em holocausto os nomes de Dagon e de seus súditos em volta do templo. Nada abandonaria o altar sem que ela soubesse.
Sofia, Ductus do bando, líder sacramentada e caçadora veterana, usou do poder de sua herança em morte para enxergar além da realidade imediata. O que ela viu garantiu a segurança do sacerdote do bando.
O templo era um círculo de rochas perfeitamente redondas. No centro deste, uma única efígie construída com barro e folhas secas. ‘Aqui moram as bruxas’, pensou a Gangrel. Aqui mora a chave do ritual.
*********
Jasmín estava confusa e frustrada. Ela leu as histórias das bruxas Catarinenses, e o que encontraram não se parecia nada com o material de referência.
Ela esperava uma das potestades mortas de panteões esquecidos, um metamorfo de uma linhagem ancestral, talvez até alguém das cortes do outro lado. O que encontraram foi, de fato, um morto.
Quando a meia-noite rugiu e o altar reagiu com a mágica inerente do local, a efígie se retorceu em diversos ângulos até partir. A terra se abriu e o ritual de contenção da Lasombra surtiu efeito imediatamente - Quando o vampiro enterrado levantou-se da sagrada sepultura, só teve tempo de mostrar as presas antes de ser imobilizado pelas membranas negras do mundo morto.
Ele era antigo e tinha cheiro de sal. Não possuía roupas, cabelos ou olhos. Suas mãos estavam amarradas com contas de oração e trazia no pescoço um colar de ferro negro. Suas presas eram seus únicos dentes, enormes e amarelos e as órbitas vazias em sua face pareciam perfeitamente conscientes do ambiente que o cercava.
Sofia aproximou-se cuidadosamente. Apanhou um punhado de terra do chão e o cheirou. Sussurrou um encantamento que fez com que seus olhos se focassem em outro tempo e lugar, após isso, lambeu a terra, saboreando-a lentamente. Jazmín fez-se em um corpo de trevas e deslizou pelo chão até estar ao lado de sua líder.
“ Ele é velho. Acho que não sabe mais quem é. O que acha?” Disse Sofia.
Jazmín fez-se corpórea novamente. O vampiro possuía símbolos estranhos e antigos no peito.
“ Acho que ele não parece ser uma bruxa e que precisamos de sangue de bruxa.”
O vampiro sorriu. Ele não estava lutando contra os tentáculos que o seguravam, seu único movimento era dos pulsos que pareciam feridos pelo rosário. Eles tremiam incessantemente.
“Tolas, tolas é o que são” Ele disse. A voz era grave e rouca. Carregava um sotaque pesado e antigo que pertencia a outra época e lugar.
A Gangrel cuspiu a terra da boca e sacou uma estaca de madeira compacta do cinto. “Quanto tempo sua magia vai mantê-lo preso, Lasombra?”
Jazmín acariciou seus olhos com a mão esquerda por um instante. Quando os abriu, eles eram negros como piche e transbordavam por seu rosto.
“O suficiente”.
*********
A Lasombra usou de sua adaga ritual com destreza e graciosidade. Traçou no pescoço do velho morto um símbolo de contenção e alimentou o feitiço com uma gota de seu sangue escuro.
O vampiro sibilou e exibiu sua língua bifurcada voluptuosamente. O vitae lhe chamava e a besta que o habitava rugia. Sofia estava de prontidão, com a estaca em punho. A noite era fria e tinha cheiro de sal.
“Estamos em segurança,, irmã. Minha magia é forte e esse cainita tem fome demais para se opor a ela”. Disse Jazmín. O morto levantou uma sobrancelha, sutil demais para que elas percebessem.
“A língua bifurcada me leva a crer que ele foi punido por mortais, mas a falta de olhos me diz que seu capataz sabia o que estava fazendo” Respondeu Sofia.
“O rosário nos pulsos possui um poder que não compreendo. Quem fez o ritual possuía os dons, mas não orava na mesma direção que nós.” Jazmín tocou o rosário com as pontas dos dedos e, um instante depois, foi arremessada por vários metros e se chocou com uma árvore. O velho morto sorriu.
“Vocês não são de minha carne, não são versadas neste mistério. Meu sangue é o sangue dos senhores dos Cárpatos e essa terra pertence a sagrada espada de Caim.”
Sofia segurou Jazmín enquanto ela se levantava. Algumas costelas haviam cedido, mas nada que não pudesse ser consertado.
A Gangrel chiou e seus olhos brilharam em um amarelo febril. “Se ele é o que diz ser, Diana vai querer que ele morra. De qualquer maneira, acho que deveríamos nos livrar dele.”
O velho grunhiu “Uma de vocês é guardiã, vocês são do Sabá. Vocês devem me prestar referência.”
Jazmín puxou a estaca das mãos de Sofia. “Seu sabá morreu por causa de déspotas como o ‘senhor’. Seus herdeiros apodrecem em uma guerra em outras terras por que a realeza morta de Caim insistiu em títulos e honrarias ao invés de nossa guerra. Não lhe devemos referência, lhe devemos nojo.”
A estaca parte a carne com a leveza de um beijo. Era encantada e sacramentada para ritos de caça. O velho morto tenta vociferar uma última maldição mas seus lábios inchados tornam-se inertes e incapazes de moldar o ar. Jazmín morde a própria língua e cospe sangue sobre a ferida, que imediatamente começa a queimar. A Lasombra usa o poder do vitae e ordena que as costelas partidas se costurem. Ela estava cançada e irritada.
Sofia segurou o morto pelas pernas e começa a arrastá-lo pelo mato. Jazmín a segue sem questionar. Após várias horas pela mata voltaram a cabana de pescadores em que cearam anteriormente. Um policial estava investigando a chacina, atônito. Foi assassinado e devorado. Com o novo carro, continuaram por trilhas incertas em meio a floresta, carregando o troféu de sua caçada no porta-malas. As noites eram incertas, inquietas. As duas sabiam que estavam sendo observadas, mas não conseguiam descobrir quem era o perseguidor.
Na noite seguinte, trocaram o carro de polícia por uma ambulância. Os socorristas que tentavam ressuscitar uma idosa infartada não foram uma ceia particularmente agradável, mas foram o suficiente. Estavam se aproximando de Florianópolis agora, prontas para encontrar seu sacerdote e sua guerreira e obter as respostas necessárias do cadáver ancestral que dividia a maca com uma senhora sem vida.
Sofia havia roubado o telefone do antigo motorista da ambulância, e usou-o para chamar Diana, sua amada e querida Tzimisce, assim que ele obteve sinal.
“Diana, meu bem, temo que nosso passeio não tenha ocorrido como o planejado.”
“É uma pena, meu amor. Patrick está tão irritado com esse lugar, vai me deixar maluca. Nada de bruxa então?”
Diana tinha uma voz doce, frágil e quase teatral. Nada nela revelava que ela era uma açougueira monstruosa e a capataz de uma dúzia de imortais. A Tzimisce possuía uma crueldade alienígena que rivalizava com a dos anciões do clã dos demônios.
“Encontramos um parente seu. Um bem antigo. Esta empacotado na carroceria.”
Houve uma leve pausa, seguida por uma risada deliciosa e exagerada.
“De todos os buracos do firmamento, ele foi se esconder aqui? Pois o traga, tenho certeza de que ele vai adorar dançar sobre o luar conosco, com nosso novo sabá.”
“Ahn...Certamente. Tiveram sorte com o Toreador?”
“Tenho certeza de que a boca dele está aqui em algum lugar, mas ele não parece muito disposto a conversar.”
Sofia desligou.O Tzimisce captivo certamente não adoraria os ritos que Diana tinha em mente. Patrick certamente faria com que ele se tornasse a mais bela boneca de vodu nas américas e com alguma sorte Jazmín não teria uma visão profética exigindo o sacrifício do ancião.
Independente do resultado, ele estava condenado. O rito precisa continuar e o velho patrono precisa ser encontrado. O Sabá morreu para renascer, e o antigo rimador guiaria a espada de Caim na guerra que está por vir.
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V5
Patrick & Diana
O casal de mortos dirigia lentamente pela ponte Pedro Ivo Campos. Mesmo a meia noite, o tráfego era lento. A Hercílio Luz brilhava em vermelho e púrpura, e sobre ela, a luz cheia pairava, indiferente ao sofrimento do mundo.
“Bela Lugosi's dead, unded, undead, undead”, disse o rádio. “Grande merda”, respondeu o vampiro.
Sua companheira, Diana, sorriu, exibindo as presas molhadas e vermelhas. No banco de trás, 2 exsanguinados dormiam o sonho dos perdidos.
“Esse lugar me deixa com um gosto estranho na boca. Cinzas e alumínio. Como se o fim do mundo estivesse atrasado e os cavaleiros do apocalipse estivessem reclamando dessa porcaria de trânsito”, disse o sacerdote. Patrick vestia uma jaqueta cinza recém-roubada e jeans rasgados que já viram dias melhores. Ele dirigia com ambas as mãos no volante e estava cansado. A viagem não tinha sido ideia dele.
“Meu amor, estamos de férias. Vamos aproveitar um pouco. Nem é tão ruim assim. Olhe lá, que ponte lindinha. Você não se sente enfeitiçado por ela?” Diana gargalhou. Ela lambeu o sangue que ainda lhe escorria dos dedos como se fosse uma gata e limpou as sobras na longa saia arrastão. Reclinou-se sobre o banco e esticou os braços tanto quanto pode antes de continuar “Logo as meninas vão chegar. Vamos nos divertir horrores. E vamos fazer seu ritual. E vamos adotar crianças e fazer essas coisas todas sorrindo e dançando, por que é isso que férias significam.”
Patrick grunhiu ao contemplar a ponte. Ele não sentia nada. Ele já não sentia nada há muito tempo. O ritual iria acontecer, cedo ou tarde, e isso o irritava. Esse não era o local correto. Diana sabia, mas não se importava. Não existem férias para o Sabá. Não existe nada que não seja a guerra.
Os vampiros permaneceram em silêncio enquanto atravessaram a ponte. Com alguma dificuldade, encontraram uma vaga de estacionamento. Abandonaram o carro e os corpos como presente para quaisquer que fossem os vampiros locais e saíram para a noite.
Não foi difícil encontrar o primeiro componente para o ritual. Guilherme Fritz, Toreador, idiota. Diana havia convencido-o de que eram anarquistas a procura de um novo lar, e que seriam muito gratos por quem quer que os apresentasse a baronesa local. Fritz insistiu que deveriam se encontrar em uma boate LGBTQ, mas desistiu quando Diana alegou ser uma Nosferatu.
Ela não era, é claro. Ela era algo muito pior. Mas o jovem Guilherme não existiria por tempo suficiente para reconhecer seu erro.
O encontro foi marcado para um heliporto no meio da avenida Beira Mar Norte. No caminho, Diana esculpiu seus braços disfarçadamente. Os ossos estalaram levemente quando romperam a pele e a Tzimisce suspirou com as veias estendidas.
O combate foi rápido e brutal. Quando o avistaram, o Toreador acenou e Patrick saltou sobre ele com o punho em riste, rápido demais para que ele pudesse reagir. A força do golpe o fez cair com as costas no chão, e um instante depois, uma estava óssea o perfurou e fez seu rosto ser congelado para sempre no grito doloroso do torpor.
O sacerdote brandiu o Atame, sua adaga de condução de ritos, e a enfiou na boca do vampiro abatido. Ele rasgou a gengiva e com a mão livre arrancou as duas presas. Sangue preto verteu da ferida e o jovem vampiro nada pode fazer para impedir o que se seguiu.
“Pra que lado é o oeste?” Disse Patrick, limpando o sangue da lâmina nas calças.
Diana fechou os olhos e apontou para o mar. “É pra lá, meu amor”.
Patrick ajoelhou-se, abriu o braço esquerdo com os dentes e derramou vitae sobre o concreto do chão. Com a poça que se formou, desenhou os nomes de Deuses mortos e abortados. Chamou-os um a um e eles foram testemunha do início do ritual.
***
Em outro noite, em outro lugar.
Patrick estava nu, exceto pelo colar feito de Guilherme. Sua companheira havia usado o estômago como cordão, e ossos dos dedos torcidos em runas e glifos de proteção.
O Toreador não estava muito contente com a situação. Pedaços dele adornavam vários cantos do altar. Suas pernas e braços não mais lhe pertenciam e a estaca de madeira de lei em seu peito lhe queimava a alma.
Diana, vestindo as sobras de seu jantar, agora era horror-feito-morte. Ela possuía longos chifres curvos e asas de couro preto. Quitina cobria sua forma horrenda e ela era parte inseto e parte Deus.
Seus braços eram terminados em bocas cheias de dentes e entre seus seios, as marcas talhadas pelo Atame do sacerdote pulsavam em um amarelo ocre e pegajoso. Seus quatro olhos eram imensos, focados, cinzentos e mortos, e seus joelhos dobravam-se como se ela estivesse preparada para voar.
Patrick orava com as mãos dispostas sobre a oferenda. Seus olhos eram órbitas negras e sua voz já não mais lhe pertencia. Seu cântico era o de línguas mortas, de potestades ausentes e de cinza e alumínio e o fim do mundo. Ele era um receptáculo e um canalizador. E ele olhava para o oeste.
“Bela Lugosi's dead, unded, undead, undead”, disse o rádio. “Grande merda”, respondeu o vampiro.
Sua companheira, Diana, sorriu, exibindo as presas molhadas e vermelhas. No banco de trás, 2 exsanguinados dormiam o sonho dos perdidos.
“Esse lugar me deixa com um gosto estranho na boca. Cinzas e alumínio. Como se o fim do mundo estivesse atrasado e os cavaleiros do apocalipse estivessem reclamando dessa porcaria de trânsito”, disse o sacerdote. Patrick vestia uma jaqueta cinza recém-roubada e jeans rasgados que já viram dias melhores. Ele dirigia com ambas as mãos no volante e estava cansado. A viagem não tinha sido ideia dele.
“Meu amor, estamos de férias. Vamos aproveitar um pouco. Nem é tão ruim assim. Olhe lá, que ponte lindinha. Você não se sente enfeitiçado por ela?” Diana gargalhou. Ela lambeu o sangue que ainda lhe escorria dos dedos como se fosse uma gata e limpou as sobras na longa saia arrastão. Reclinou-se sobre o banco e esticou os braços tanto quanto pode antes de continuar “Logo as meninas vão chegar. Vamos nos divertir horrores. E vamos fazer seu ritual. E vamos adotar crianças e fazer essas coisas todas sorrindo e dançando, por que é isso que férias significam.”
Patrick grunhiu ao contemplar a ponte. Ele não sentia nada. Ele já não sentia nada há muito tempo. O ritual iria acontecer, cedo ou tarde, e isso o irritava. Esse não era o local correto. Diana sabia, mas não se importava. Não existem férias para o Sabá. Não existe nada que não seja a guerra.
Os vampiros permaneceram em silêncio enquanto atravessaram a ponte. Com alguma dificuldade, encontraram uma vaga de estacionamento. Abandonaram o carro e os corpos como presente para quaisquer que fossem os vampiros locais e saíram para a noite.
Não foi difícil encontrar o primeiro componente para o ritual. Guilherme Fritz, Toreador, idiota. Diana havia convencido-o de que eram anarquistas a procura de um novo lar, e que seriam muito gratos por quem quer que os apresentasse a baronesa local. Fritz insistiu que deveriam se encontrar em uma boate LGBTQ, mas desistiu quando Diana alegou ser uma Nosferatu.
Ela não era, é claro. Ela era algo muito pior. Mas o jovem Guilherme não existiria por tempo suficiente para reconhecer seu erro.
O encontro foi marcado para um heliporto no meio da avenida Beira Mar Norte. No caminho, Diana esculpiu seus braços disfarçadamente. Os ossos estalaram levemente quando romperam a pele e a Tzimisce suspirou com as veias estendidas.
O combate foi rápido e brutal. Quando o avistaram, o Toreador acenou e Patrick saltou sobre ele com o punho em riste, rápido demais para que ele pudesse reagir. A força do golpe o fez cair com as costas no chão, e um instante depois, uma estava óssea o perfurou e fez seu rosto ser congelado para sempre no grito doloroso do torpor.
O sacerdote brandiu o Atame, sua adaga de condução de ritos, e a enfiou na boca do vampiro abatido. Ele rasgou a gengiva e com a mão livre arrancou as duas presas. Sangue preto verteu da ferida e o jovem vampiro nada pode fazer para impedir o que se seguiu.
“Pra que lado é o oeste?” Disse Patrick, limpando o sangue da lâmina nas calças.
Diana fechou os olhos e apontou para o mar. “É pra lá, meu amor”.
Patrick ajoelhou-se, abriu o braço esquerdo com os dentes e derramou vitae sobre o concreto do chão. Com a poça que se formou, desenhou os nomes de Deuses mortos e abortados. Chamou-os um a um e eles foram testemunha do início do ritual.
***
Em outro noite, em outro lugar.
Patrick estava nu, exceto pelo colar feito de Guilherme. Sua companheira havia usado o estômago como cordão, e ossos dos dedos torcidos em runas e glifos de proteção.
O Toreador não estava muito contente com a situação. Pedaços dele adornavam vários cantos do altar. Suas pernas e braços não mais lhe pertenciam e a estaca de madeira de lei em seu peito lhe queimava a alma.
Diana, vestindo as sobras de seu jantar, agora era horror-feito-morte. Ela possuía longos chifres curvos e asas de couro preto. Quitina cobria sua forma horrenda e ela era parte inseto e parte Deus.
Seus braços eram terminados em bocas cheias de dentes e entre seus seios, as marcas talhadas pelo Atame do sacerdote pulsavam em um amarelo ocre e pegajoso. Seus quatro olhos eram imensos, focados, cinzentos e mortos, e seus joelhos dobravam-se como se ela estivesse preparada para voar.
Patrick orava com as mãos dispostas sobre a oferenda. Seus olhos eram órbitas negras e sua voz já não mais lhe pertencia. Seu cântico era o de línguas mortas, de potestades ausentes e de cinza e alumínio e o fim do mundo. Ele era um receptáculo e um canalizador. E ele olhava para o oeste.
sexta-feira, 15 de março de 2019
V5 - Dante & Ingrid
O Nosferatu curvou-se diante do notebook, lambendo os beiços teatralmente, deixando a mostra os dentes tortos e amarelos. A tela exibia vários terminais diferentes, cada um uma serpente, um predador a espera do momento oportuno para o bote.
Dante aguardou pacientemente o retorno de seus pequenos espiões digitais, e quando a resposta chegou, enviou uma mensagem para sua assistente.
“Game on”
Ele disparou a rotina de monitoramento e ouviu um telefone tocar três vezes antes de ser atendido. A voz adocicada de Ariel iniciou o ataque.
“Boa noite, me chamo Vivian e ligo em nome da operadora Oi. Gostaria de falar com-” (interrompida)
“Eu não quero comprar nada.” Disse uma mulher rouca e insatisfeita por ter sido incomodada.
“Não estou vendendo nada senhora. Você por acaso se chama Eva? Devido a uma mudança de planos sua fatura vai ficar mais barata. Só preciso confirmar uns dados com a proprietária.”
“Ok, sou eu.”
Game over, pensou Dante. Era início da noite e o ancião se sentia extremamente sonolento e vazio. As letras brancas no display se misturavam quando sua mente vagava por mais que um instante. Alguma coisa estava mudando, alguém o estava chamando. Alguém perigoso.
“Eu preciso que a senhora clique no ícone que apareceu na área de trabalho duas vezes. Na nova tela ele vai pedir pra que você digite a senha de seu roteador, que está num adesivo embaixo do aparelho”
A garota era jovem, mas levava jeito pra coisa. Jovens aprendem rápido demais.
Um dos terminais do notebook saltou para a frente da tela com as credenciais de acesso gentilmente cedidas pela senhora Eva. O veneno surtia efeito e os logs do sistema-vítima eram rapidamente clonados.
“Muito obrigado e tenha uma boa noite. Peço que a senhora aguarde um instante para avaliar a chamada. No próximo mês sua fatura já virá com o desconto.”
Fim da chamada. Fim da resistência. Dante digita sem dificuldade os parâmetros do ataque final.
msf> ../ msfvenom logRetriever.py -Ss -Sn 0 Eva0 Eth0 pbloom.ssh
O instante antes da confirmação do sucesso carrega em si todo o peso do mundo. A ansiedade salta e os pulmões podres buscam inutilmente por ar. Vazio e medo fagulham até o surto de adrenalina correr pelas veias. O Nosferatu batuca a mesa com as pontas dos dedos e, quanto o resultado aparece na tela, o segundo de êxtase que o toma quase faz com que ele esqueça que está completa e verdadeiramente morto.
“Pegamos o filho da puta” diz a mensagem de sua aprendiz. Ela já está lançando a próxima etapa do ataque, referenciando os registros do cartão de crédito da mãe do dono de um dos maiores sites de revenge porn do Brasil com os dados usados para alugar os servidores de hospedagem na Croácia.
Dante se reclina sobre a cadeira e imagina os nós na rede que levam o computador de uma secretária aposentada até os confins mais sórdidos da pornografia amadora. Eva certamente não sabe de nada, mas isso não importa. Com os dados em sua tela, ele dispara o programa que gera os relatórios e os envia para para a polícia federal por meio de um conjunto de camadas que passa por 17 países cujas legislações são tão radicalmente diferentes que tentar rastreá-lo levaria anos, na melhor das hipóteses.
Sua cliente estaria satisfeita e lhe devia um favor. Uma semana de pesquisa, uma ligação, uma guerra contra oponentes desarmados. Sempre existe um elo frágil, e em noventa e nove por cento dos casos, esse elo frágil usa Windows desatualizado.
“Vou ir tomar um lanche. Avisa se quiser que eu traga alguém da rua”. Diz a última mensagem de Ariel. Uma moça de classe, certamente.
Ele não responde. Ainda haviam muitos negócios a serem tratados essa noite. Três mensagens. A velha bruxa dizia alguma coisa sobre o fim do mundo e cristais de Feng Shui. A Baronesa queria uma reunião urgentemente para discutir planos para uma guerra que está para acontecer desde que algum português bêbado aportou em Vera Cruz. Ingrid simplesmente disse ‘me chame‘.
Ingrid era a prioridade, sempre. Ele ligou para o chefe de segurança e pediu para que ele deixasse a visitante subir. Dante gostava de charadas e Ingrid era uma bastante difícil de decifrar. Desligou o notebook e a tela, agora escura, refletia sua face distorcida.
O Nosferatu roçou sua bochecha quitinosa com as unhas. A pele era seca e frágil, e mesmo um leve toque fazia com que pús e fedor o permeassem. Seu nariz era comprido, torto, quebrado umas tantas vezes em vida e outras tantas em morte, e seus olhos amarelos e diminutos o denunciavam como um eterno predador.
A porta do escritório se abriu, e a voz baixa e arrastada da visitante se fez presente “Saudações, rei rato. Trago-lhe oferendas.”
Ingrid era jovem, ousada e petulante. Vestia um casaco rosa roubado e jeans. O cabelo claro era ocultado pelo capuz e o pescoço pelo cachecol. Não fazia frio. Ela tirou as mãos dos bolsos e fez uma referência lenta e teatral, ainda curvada, levantou o rosto e sorriu. “O senhor fede como a peste. Em minha próxima visita, minha oferenda será de detergente”.
“Ingrid, querida” disse Dante, pausando em cada sílaba e medindo a reação da Malkaviana. “Ainda não tive oportunidade de lhe agradecer por nossa última conversa. Permita-me não destruí-la como forma de pagamento.”
Ele sorriu. Ela não.
“É muita gentileza de sua parte, meu bom senhor. No entanto, para a conversa desta noite será necessário um pagamento mais...tangível”.
“Isso irá depender do que você me oferecer, que-ri-da”.
Ingrid sentou-se no chão em uma meia-lótus. Fitou o vazio por um longo instante e sussurrou. “O senhor conhece o sabá?”
Dante, surpreso, levantou algo que em algum momento foi uma sobrancelha. “Mais do que gostaria. Porquê?”
Ingrid, aparentemente surpresa, respondeu “Não importa. Eles foram embora. O senhor lembra da estrela dos pesadelos?”
“A semana dos pesadelos?”
“Não. A estrela vermelha dos pesadelos. Não aquela dos comunistas. Aquela dos indianos”
“Sim. Eu me recordo.”
“Eu sonhei com ela. Lá naquele país dos terroristas. Ela está brilhando lá e o Sabá está indo matar ela, mas os velhos não querem por que eles são comunistas e tem medo dos pesadelos.”
Dante suspirou e mais uma vez agradeceu por ter instalado um sistema de microfones escondidos na sala. Ele precisaria ouvir essa conversa mais algumas vezes no futuro. A memória da semana dos pesadelos ainda lhe era pesarosa. Ele passou várias noites cuidando de seu amigo Abraham e procurando uma maneira de fazer o sangramento e os gritos cessarem. Ele falhou e Abraham se esvaiu. Ingrid continuou:
“Ai eu falei com a bruxa e ela disse que isso era porque pro diabo se reza olhando pro oeste, o que faz sentido, se você for pensar bem. Ela não reza pro diabo por que ela é bruxa e as bruxas só rezam pra terra. Você tem rezado pro diabo, senhor-Rei-roedor?”
O Nosferatu sorriu. Francisca, a bruxa Malkaviana que deve ser a vampira mais velha dessas terras, não sente o chamado. Ou talvez sinta e não perceba.
“Eu não sou comunista.” Respondeu Dante.
“Ah. E também” disse Ingrid “tinha um primo seu vindo buscar quem não fosse pra lá. Acho que chama Tuco. Nick Tuco.”
Dante, movendo-se rápido demais para que olhos jovens pudessem observá-lo, girou a chave de segurança embaixo da mesa e digitou a senha de doze dígitos. Grades pesadas caem sobre as janela de ambos os lados, bem como sobre a porta, e um notebook começou a bipar insistentemente sobre a mesa próxima. Dante saltou para a cadeira próxima e inseriu a senha de desbloqueio da máquina. Ingrid protestava pela falta de atenção, mas o Nosferatu encontrava-se em outra realidade.
ShrekNET já não mais existia, mas a mão armada do clã ainda espreitava cantos obscuros da rede. Dante lançou hideByMe, o programa que é responsável por checar as entradas e saídas dos terminais de seus aliados. Um a um, todos retornaram resultados positivos. O vampiro suspirou aliviado. As máquinas dessa rede precisam ser reativadas com uma senha cuja cifra só o clã conhece, caso alguma falhe, toda a rede é notificada. Seus aliados estavam (presumivelmente) seguros, pelo menos por enquanto.
Ingrid continuava “E aí eu disse pro guri que malkaviano não era bagunça e enfiei a cara dele no asfalto. Ei, posso ir embora?”
Dante retornou a sua mesa principal e inseriu o código de liberação da porta principal.
“Obrigado querida. Você me deu muito no que pensar. Por gentileza, diga a senhora Francisca que preciso conversar com ela. Sobre o fim do mundo e essas coisas.”
“Ah, digo sim, ela vai ficar bem feliz. Fim do mundo tem sido o assunto favorito dela nessa semana. Boa noite senhor Dante, é sempre um prazer fazer negócios com o senhor.”
Ela acena levemente e sai. Dante aciona as grades de proteção da porta novamente. Com o telefone em mãos, cancela todos os outros compromissos da noite e envia uma mensagem a Ariel.
“Tenho um novo alvo. Base64. As instruções vão estar lá quando você chegar. Não volte pra cá até que eu diga que é seguro.”
A Malkaviana responde em poucos momentos “OMW”. On my way. O Nosferatu, só e preocupado, ativa o hideByMe uma vez mais.
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