quarta-feira, 4 de junho de 2014

A história de amor dos mortos: Espinhos do caminho

- Como tem passado teu senhor, criança?
- Com a graça do sangue, ele está em paz, meu lorde. Já há umas tantas décadas peregrinamos pela terra européia. Teus castelos são muito bonitos.
- São monumentos do tempo. Da fragilidade da existência e da efemeridade temporal do ser. Cada uma dessas fortalezas um dia será pó e cada deus e cada templo, uma marca oculta nas entranhas da terra.
- Eu compreendo...Perdoe-me se soei ignorante. Meu caminho é diferente do teu, lorde rimador.
- Não tive a intenção de lhe ofender e por isso peço perdão. Não cabe a um sacerdote questionar a visão de outro.
A mulher sorriu, sua pele amendoada cintilando a meia luz da taverna incinerada. A guerra havia passado por ali antes dos vampiros, e o pouco que restava do telhado rangia em um lamento seco e febril. O vilarejo como um todo era uma pequena coleção de cinzas e murmúrios sufocados. Em um canto ou outro ouvia-se um pássaro perdido, mas, além das poucas manifestações de natureza quase-morta, tudo era desolação.
Vasantasena ajeitou as longas madeixas escuras por trás dos ombros.
- Viestes até mim quando eu chamei, lorde abismal. Não me deves desculpa nenhuma, qualquer outro que compartilhasse de seu entendimento teria ignorado meu apelo.
Derek, um corpo de sombras e duvidas, moveu-se em duas dimensões para a parede próxima.Tentáculos membranosos apoiaram-se em restos de mesas enquanto borbulhavam incessantemente para dentro de si mesmos.
- Tu és filha de carne de um rei, és filha de sangue de um amigo querido. Malkav, o sábio gentil, fala por tua boca de profeta. Não cabe a mim, sacerdote das meia-noites, ignorar teu chamado.
- E mesmo assim, lorde tenebroso, não me agracias com a visão de tua imagem de carne.
O lasombra concentrou-se por um instante e deu uma quantidade incerta de olhos e bocas a sua forma de horror oblíquo. Ele mudava, regurgitando a matéria escura do abismo na face indefesa da criação.
- Perdoe-me, filha de Malkav. É parte de um rito. Meu cárcere se esvaiu de minha memória. Eu sou treva e espelho agora, sou  o reflexo de meu interior. Muito tem de acontecer para que eu possa retornar a forma de corpo.Não é por má vontade que me apresento em minha pureza, é por dedicação e oração.
Ela sorriu novamente, abraçando a si mesma, como se tentasse agarrar o calor que fugia em desespero.
- Como bem dissestes, não cabe a um sacerdote questionar a visão de outro. Se perdoares minha indulgência, acredito que seja hora de discutirmos assuntos de maior importância.
- Como queiras, Vasantasena.
Os dois discutiram por boa parte da noite e da seguinte, refugiando-se dos raios libertadores do sol no abraço da terra. Vasantasena era versada em muitos assuntos que para Derek eram uma tremenda incógnita. Ela soube do ataque a casa do pai tenebroso, ele soube do mesmo acontecimento, anteriormente,  por Boukhelpos, mas não era conveniente discutir estes detalhes com sua companheira. Por mais que lhe fosse querida, a cria de Unmada ainda era ignorante do grande esquema das coisas, e era melhor que continuasse assim.
Ela lhe contou também sobre a poderosa insurreição dos jovens, da quebra dos grilhões e da traição dos antigos.Lhe contou sobre o perigo que sua pequena corria, sobre as ambições de Adele e a conspiração do jovem Hrotger. Sobre as guerras que estavam por vir e os doces espólios da vitória. Derek, no silêncio que a idade lhe trouxe, ouviu cada argumento e cheirou cada emoção. Ele olhou nos olhos do futuro e perguntou ao abismo mais de uma vez se seus temores estavam corretos.
Em sua maior parte, estavam.
Ao fim de um longo discurso, a exausta Vasantasena tinha os olhos carregados de esperança. Pálida pela fome, ela repousava deitada no chão, com as presas em riste e a túnica umedecida pela relva.
- Virás comigo, lorde Derek, virás comigo para a capela dos espinhos, discursar sobre a liberdade que poderemos conquistar, caso não tenhamos medo de tentar?
- Receio que devo prezar pela segurança de minha cria, estimada amiga. Por mais que eu compreenda a sabedoria de tua oratória, meu dever como sacerdote tem prioridade. 
Ela suspirou, e o ar expelido dos finos lábios arianos desenhou uma curva branca e lenta na noite, fumaça de pulmões mortos condensada na frieza do lasombra.
- Se a Camarilla continuar a existir e os anarquistas forem derrubados, não vai haver um amanhã para seu culto, lorde magistrado. Suplico-lhe, reconsidere sua posição.
Derek, uno com a mortalha da noite, escorreu e deslizou para perto de sua aliada. O levante do corpo noturno carregou consigo o pouco calor que aquela taverna esquecida ainda ostentava.
- Digo que não. Tua rebelião  é parte de um plano e bem sabemos quais serão os frutos dela. É um lampejo na noite escura. A Camarilla é água e a anarquia é fogo. Alimente a chama antes de pô-la a prova.
- Falas de um futuro que pode não existir, lorde da mortalha sem reflexo. Eu olho para a frente e só vejo escuridão.
- Fostes tu de meu sangue, profetisa, eu lhe ensinaria a enxergar no escuro. Mas não posso, pois esse não é o desejo da noite e teu sangue sacro seria maculado por aquilo ao qual você nunca pertenceria completamente. Peço que tenhas paciência. E isso eu lhe prometo, malkaviana, por mais doloroso que seja a principio, teu legado irá perdurar em sangue e guerra pelos séculos que virão.
- Guerra você diz, guerra por aquilo que nos é de direito, guerra para quebrar o grilhão do laço. Por que isso se faz necessário, rimador dos  perdidos? Tu me forneces tua palavra e isso é mais do que eu poderia esperar, mas ainda não me sinto satisfeita. Meu senhor não se conformará com a necessidade de derramamento de sangue e permanecerá com a Camarilla. Todo meu clã irá sofrer e definhar nas mãos dele e dos outros sábios. Mais uma vez meus irmãos serão párias, serão tolos enfeitando salões decadentes de horrores jocosos cujo único propósito é manter a chibata ao alcance da carne pueril de seus filhos e netos.
- Não cabe a mim julgar teu senhor, que é mais sábio do que eu. O que me cabe é reafirmar meu compromisso como teu aliado e defensor. Meu clã irá ao teu auxílio, Vasantasena. Os Tzimisce também. Faça de teu discurso um rugido e inflame o coração dos jovens. O mundo esta mudando e eles tem isso a seu favor. Seja chama nas veias daqueles que por muito tempo contemplaram a efemeridade frágil do cárcere. Por duas vidas de homem eu fui prisioneiro do laço e bem sei que ninguém deseja existir acorrentado. Estarei contigo, não em carne, mas em poder. Vá e sirva seu destino, sacerdotisa. Vá e pense em minhas palavras. É um grande momento e o que me resta cumprir meu desígnio das sombras.
- Elas são o teu lugar, Derek, velho entre os jovens. Tenho uma ultima pergunta, se for conveniente.
- De bom grado lhe oferecerei qualquer sabedoria que possuir, Vasantasena.
- Os velhos de teu clã, como aceitarão os jovens de nosso movimento libertador? Serão eles diferentes dos tiranos a quem nos opomos?
- Eles já estão em guerra, posso lhe garantir. A convenção é a justificativa de que precisam. A revolta é esperada por aqueles que observam. Precisam de um nome, e nenhum é melhor do que o seu neste momento, pois ele carrega sangue real e visão. Fogo e água.
-Sinto que sou mais uma das ferramentas a dispor dos estratagemas dos velhos, meu amigo.
Derek, imerso em noite, sussurrou para longe em sua língua morta. A malkaviana sorriu fechando os olhos e em um lampejo de inconsciência, deixou de resistir.
- Será feito como designastes, lorde  rimador.
- Não tema. A lua brilha da noite escura e trás a visão aos de teu augúrio. Estarei contigo quando chegar a hora.
A malkaviana dormiu e ao som de uma palavra de feitiçaria, absteve-se do mundo de seus sonhos. A  forma de sombras circulou o corpo inerte e, com um ultimo suspiro, fez com que um filete de nanquim escapasse de si e penetrasse as narinas da indefesa Vasantasena.
A noite liquida gerada pela tenebrosidade a envolveu como um manto, protegendo-a dos raios fatais do alvorecer. O lasombra desvaneceu e deixou de ser e estar.
                                                            .         .          .
Verso de minha obra, lampejo de meu poder.

Por ti canalizo o invólucro que do sul transborda.

Herdeiro de minha mácula,  eterno cetro de minha vestimenta de rei do firmamento.

Espelho de minha forma, navegante do mar de Vênus, escudo do segredo da perpétua consciência.

Chamo teu nome e o faço com a mão esquerda, Derek dos caídos, sacerdote dos desauridos.

Onde estiveres, Derek das meias-noites, ouça o chamado daquele a quem és consagrado.

Onde estiveres, filho de meu sangue, saibas que na noite, tudo nos é revelado.

Uma espada. Um caminho.
                                     .                                     .                                      .
Derek detestava a terra dos ingleses. Era um dos poucos lugares que lhe causava alguma reação que não fosse absoluta indiferença. Em sua primeira incursão ele havia encontrado um velho sacerdote gaulês que lhe ofereceu alguma sabedoria, mas além deste encontro ao acaso, tudo naquele reino apertado e fedorento lhe causava asco.
Ele era agora um pássaro feito da matéria negra do não-ser, sem olhos ou som. Suas asas eram diminutas lâminas negras, cortando a esmo o céu europeu. Vez ou  outra ele se dava ao trabalho de mergulhar sobre um cainita descuidado, cobrindo-o com a derradeira manta nanquim e fazendo-o dormir para sempre no aperto abismal.
O sangue era um carcereiro cruel com o Lasombra. Mesmo com pouco mais de seis séculos, mortais não o nutriam. Certamente que seu poder pessoal era maior do que de muitos outros com sua idade, mas ainda assim, era um preço alto a pagar.
Ele pousou sobre a abadia da sagrada coroa e escondeu sua forma com um dos poderes do sangue. O vilarejo dormia no horizonte. “Thorns”. Em sete meses, seu plano daria os primeiros frutos e os assamitas seriam acorrentados.
A Camarilla, em seus seis anos, não podia existir sem contestação. Era preciso que as fogueiras da inquisição fossem alimentadas ferrenhamente, com sangue jovem e escuro, e que os velhos tremessem de medo em seus castelos.
Lasombra reinava no mundo morto, Tzimisce liderava a insurreição sobre a carne de sua cria, Saulot, perdido em seus sonhos, esperava pelo momento de retornar.
Saulot, gentil Saulot. Derek não podia compreender como demorou tanto a entender o estratagema. Muitos de seus aliados mais queridos tinham o sangue sacro dos iluminados, e nenhum deles seria capaz de tamanha manobra por si.               
Seja como fosse, o fim almejado chegaria e o abismo devoraria toda criação.
Derek pensou por um instante em sua cria, em todas as tristezas e sofrimentos que teria que  ela iria suportar, em toda a mágoa que nutriria por ele. Sussurrou um dos nove nomes de Dagon e  clamou por quietude.
Era hora de organizar prioridades.
Sua cria precisava ser protegida a todo custo, logo, a insurreição anarquista precisaria continuar a sobreviver a inquisição e a minar os recursos da Camarilla e de seus recém-conquistados aliados Giovanni. Eles precisavam de números e ideologia. De ritos que os unificassem e ordenassem, de uma hierarquia que nunca fosse enfatizada diretamente e de um punho de ferro que os controlasse sem que soubessem. Um tirano seria tão bom quanto qualquer outro, então, por hora, Gratiano e algum koldun fossem suficientes. Eles precisariam de apoio dos outros clãs e precisariam também manchá-los com sangue Tzimisce. O rito da quebra de laço cobraria seu quinhão.
Depois, seria preciso dar tempo ao tempo e garantir que o esforço de guerra não fosse desperdiçado em meio a intrigas e maquinações de cainitas ambiciosos. Quando a civilização humana esquecesse do valor da heráldica e a nobreza de sangue fosse substituída completamente por posse material, quando a comunicação fosse veloz e o deslocamento de grandes exércitos fosse possível em poucos dias, ele chamaria o poder e inflamaria a paixão nacionalista em um país em pedaços, erguendo ali sua fortaleza. A Espanha seria uma escolha lógica se seu desprezo pela aristocracia pudesse ser mantido nos séculos seguintes, mas ela era uma solução de curto prazo. Quando a lâmina da igreja se tornasse cega, o reino todo ruiria. A Germânia, por outro lado, seria muito mais adequada a esse propósito, caso fosse exaurida o suficiente de seu orgulho e poder.
Sim, a Germânia, em um futuro podre e virulento, em guerra contra o mundo, em ruínas. Ela seria a base final de seu poder e a catalizadora do fim. Sua cria, a pequena Adele, seria rainha no mundo morto e ele, sacerdote dos abortados, teria seu merecido descanso.
A oeste,  em outro país, um lorde Ventrue conspirava com seus asseclas. Eles também sabiam do que estava por vir, e se esforçavam para mobilizar recursos e riquezas para os confins da terra. A Europa estava prestes a se tornar uma gigantesca ferida putrefata na história cainita, e muito precisava ser feito para garantir que algo restasse da convenção.
Em Moscou, uma velha Tzimisce despertou de seu sono com um rugido que calou os céus. Ela chamou a carne molhada da terra para si e tomou forma de cervo. Kella pôs-se a marchar e a matar. Para ela, seria uma longa jornada. Para Derek, mais uma vez perdido na imensidão de seus pensamentos noturnos, seria um eterno embate.
A história cainita estava prestes a se reinventar e ele, lorde rimador, alto sacerdote das meias-noites, seria a força motriz por trás de cada evento. 

Uma espada. Um caminho.


terça-feira, 22 de abril de 2014

A controvérsia inerente da arte, Ato I: fiz de ti paleta e cavalete


Existe uma coisa bonita na violência. Uma coisa viva.

O filho da puta agonizava no chão. Chutei a boca dele com tanta força que quase perdi o equilíbrio.
Ele já não implorava mais. Seus gritos haviam se tornado um gemido patético e molhado que se repetia a cada golfada de sangue.

Encosto a ponta do pé-de-cabra na boca aberta e o suspendo no ar. Ele segura o metal quente como se beijasse uma puta. Os lábios se curvam, os olhos, imóveis em pavor estático, encaram o vazio em busca de uma esperança há muito estuprada.

Pergunto-me se ele sabe o por quê de ter recebido minha visita. Duvido que a resposta seja positiva. Tiro a Magnum do coldre e disparo contra uma das pernas do infeliz. Ela treme e se encolhe, depois fica rígida.
O buraco na coxa é uma das coisas mais lindas da criação, estou certo disso. As veias pretas e inchadas, soltas em meio aos ossos maculados e a carne violada, dançam para mim, uma beleza que de todos os malditos, só eu poderia apreciar.

Em um momento de inocência, permito-me viajar na leveza sublime do momento. Sinto as cores, cheiros e texturas, sinto o beijo do calor ferroso da vitae estrangeira e me enamoro por ela. Claro, havia sangue por todo o quarto, mas aquele, misturado a pólvora, o cobre e as vísceras, era meu pequeno altar especial.

Meu corpo oscila e me ajoelho, soltando as armas. Esfrego meu rosto no membro ferido, lambendo a chaga putrefata de minhas blasfêmia.

O gosto é meu carrossel, o cheiro, meu parque. Sou um passageiro que, sem rumo, viaja pelo estase.
Mergulho em seu sabor e me embriago. A essência roubada desce por minha garganta me debilitando e me trazendo o orgasmo da queda do paraíso. Contemplo pedaços de memórias partidas e me torno um ceifador de centelhas.

Deus, se eu não fosse legião, eu seria você.

Interrompo o rito com um suspiro. Lambo a ferida e sinto a carícia do chumbo quente. A pobre criatura gania como um cãozinho atropelado, indefeso perante minha indiferença. Jogo os cabelos pra trás antes de cair sentado ao lado dele. Seguro o pescoço fino, levanto seu rosto e o encaro firmemente. Os olhos estáticos começavam a ficar vazios, os lábios, finas lembranças vermelhas de uma amante de outrora, balançavam debilmente e suas longas madeixas douradas estavam tão empapadas de sangue que pareciam um caldo grudento de fetos abortados.

E que Caim me perdoe pela comparação anterior, mas depois de uma semana na companhia de um sacerdote tzimisce, algumas comparações simplesmente parecem mais adequadas que outras.

Faço um beicinho zombeteiro com os lábios e me esforço na minha melhor imitação de sotaque francês.

" Você sabe por que isso esta acontecendo, não é, mon cher?"

Eu sabia que não. Ele geme. Sorrio por dentro.

" Seu senhor ordenou que você invadisse terras de meu bispo. Que comprasse mortais e os vendesse. Que incendiasse o refúgio de meu Ductus. Ele morreu gritando e eu senti no peito um vazio tão aterrador que sinceramente acreditei que morreria com ele quando soube. Eramos muito próximos, sabe. Coisas do Sabá, você não entenderia, não ainda, pelo menos. Agora eu vou te propor um acordo e você vai aceitar. Pedi um ano de férias do bando pra terminar uma obra, eles entenderam e me deram esse tempo. Minha obra vai ser você. A cada noite vou enfiar esse pé-de-cabra mais e mais fundo no seu cu até ter certeza que você começou a gostar disso. Ai vou parar e enfiar ele na sua garganta. Mas não vai parar por ai. O que você viu hoje foi só o que nós artistas chamamos de conceito. Uma ideia geral sobre o que vai acontecer no decorrer do trabalho. Cada porrada e gemido que eu arrancar da sua carcaça fedorenta vai fazer parte de algo maior. Vai ser minha obra prima. Vai ser a porra do trabalho da minha vida, filho da puta. Vou encontrar cada coisa que em algum momento te foi preciosa e vou trazer aqui pra te fazer chorar e sofrer enquanto as estupro e mato. Quando eu acabar com você, monte de merda, vou ter em mãos um pedaço gosmento de cainita que vai fazer um lorde Tzimisce vomitar e você vai estar sorrindo e batendo palmas, porquê acredite, você vai entender que é melhor sofrer sorrindo pra mim. E não pense que quando o ano acabar vai estar livre. Eu vou te fazer cavar uma cova e te enterrar lá. E você só vai sair quando estiver pronto pra se juntar ao sabá. Ai sim, querido, seu sofrimento vai começar. Vamos ter muito tempo."
 
Os olhos dele viram pra dentro e contemplo uma expressão caricata de horror congelado. Ele desmaia em meus braços e me sinto pronto pra começar a trabalhar.

Será uma longa noite.







segunda-feira, 21 de abril de 2014

A história de amor dos mortos: prelúdio para uma viagem noturna

Derek sempre sentia que estava esquecendo de alguma coisa que para alguém vivo seria muito importante.
Ele atravessou a rua da metrópole como se nada mais existisse. Invisível aos mundanos, cada cheiro e cor lhe era uma lembrança dolorosa.
Munique era velha e, como todas as coisas vivas, estava morrendo.
“Eu acredito no ódio” Lhe disse sua pequena companheira improvável. Os amantes não vistos pararam por um instante em uma grande praça aberta, de mãos dadas, escolheram um banco protegido das luzes mecânicas da noite e ali permaneceram, Adele no colo de seu senhor.
“ Acredito que já debatemos a respeito em um século passado, minha criança.” Sua voz soou mais melancólica do que ele desejava. Gotas de nanquim sangravam na realidade próxima e as flores apodreciam gritando horrorizadas.
“De fato, meu amor. Na terra dos gregos, quando encontramo-nos com a Helena. A rosa velha. Ela disse-me que somos paixão e fome,  discordastes e fizestes de nossa estadia uma lição. Afirmastes que eramos egoísmo e carne, que a paixão de nosso vício era uma manifestação negativa de algo que fomos quando vivos, caçadores, e que os séculos nos moldavam tanto quanto permitimos. Hoje eu descordo do senhor.”
Derek ponderou. Seus olhos se fecharam e uma voz morta lhe sussurrou pedaços de insanidade. Ele a calou com um abano dos dedos e desejou que houvesse treva.
O pequeno espaço foi tomado de assalto pelas vísceras pretas do mundo caído. A pouca vegetação que resistiu a presença profana da criança morreu gritando. Não havia  som e tempo, e o antigo finalmente sentiu-se em paz. Ele tocou a mãozinha diminuta de sua amada e beijou sua orelha. Ela se eriçou e se esticou, seus cachos dourados roçando o queixo fino do ancião.
“Você diz que somos ódio por ele parecer natural a nossa essência, criança minha. Quando assume tal fato me leva a pensar em um dualismo torto e romântico, em que tenhamos um oposto exato de amor. Creio que isto seja muito improvável. Poucos de nós de fato melhoram ou pioram com o tempo. Deixados alheios a nossas filosofias, permanecemos estáticos, por mais cruéis ou viciosos que sejamos. Criamos os caminhos ou somos levados a eles em uma tentativa desesperada de fugir da estaticidade aterradora de nossa maldição peculiar. O culto ao sangue, a carne, a noite... Cada um tem suas promessas, mas sabemos que, no fim, fomos nós que criamos uma ordem hierárquica de leis e tradições que mantiveram nossa sanidade e integridade ao longo dos séculos. A chama humana de nossos inimigos, o que seria se não uma negação de nosso eu interior, o ‘self’ daqueles judeus esquisitos dos livros que você tanto ama?”
Adele sorriu e apertou a mão de seu senhor. O toque suave lhe trouxe memórias de outros tempos, de todos os anos malditos que passaram distantes por todos os motivos errados do mundo.
“Creio que não me expressei adequadamente, meu Derek.” Uma pequena pausa, um comando mental para um escravo em outro continente. “Acredito no ódio por que é ele que sinto em mim quando chamo o poder. Em algum momento eu fui uma criança oca, um pedaço de um nada. Esses judeus esquisitos que tanto desprezas tem teorias das mais interessantes a esse respeito. Somos moldados pelo meio, enquanto vivos, enquanto mortos, temos a perda deste molde  de forma gradual, e o definhamento não é atenuado pelas filosofias de morte, como dissestes, ele é disfarçado. Você se lembra do nome de sua mãe de carne? Certamente que isso foi importante um dia. Certamente que teu ofício de sacerdote e teus muitos invernos de abismo lhe tomaram essas memórias preciosas. Quando eu era jovem, você me confessou que sua mãe lhe deu um cobertor  em uma noite cruel, e que isso acabou matando-a. Por muitas noites, eu rezei escondida, agradecendo sua mãe por isso enquanto dormia em seus braços. Você teria me repreendido se eu tive lhe confessado isso na época, não? Mas estou divagando, perdoe-me. Sua mente é invulnerável a tudo exceto a seu próprio ego. Você escolheu esquecer dessas coisas, e escolheu não esquecer de mim. Você escolheu esquecer das cores do mediterrâneo para que pudesse se maravilhar com elas novamente caso viajássemos juntou outra vez, e escolheu não esquecer jamais de alguém que um dia lhe feriu, mesmo que tenha o destruído em uma era que o tempo engoliu. O mundo não se recorda de Naboslav, o cruel, mas Derek, meu sacerdote, o mataria mil vezes mais porquê isso satisfaria seu ego, mesmo sendo uma negação do caminho. Você, como eu, é amor e ódio, meu Derek, pois estas são as únicas verdades que nos mantém sãos.”
Derek desvaneceu e se fez noite. Seu ser uniu-se a treva conjurada e a engoliu, e ele tornou-se um ser líquido de sombra e horror. Adele seguiu os passos do mestre e tornou-se, também, o espelho do mundo morto.
Ele era uma coisa fria e pavorosa. Uma enorme massa surreal de tentáculos e bocas, com duzias de dentes serrilhados e opacos, e mais surgiam a cada segundo. Ela, por sua vez, era uma boneca monstruosamente  oblíqua, uma criança da noite feita de um breu profano que caçoava das amarras de toda a criação.
A consciência de Derek rugiu além das grades do universo e ao levante de sua voz uniram-se os rangidos das correntes que prendiam deuses abortados na aurora da criação.
“Somos noite, criança. Somos pavor. Você e eu não podemos nos prender as leis e conceitos daqueles menores do que nós. Você é minha rainha e eu sou seu sacerdote. Eu sou a apoteose com a noite e este é seu destino. Todos os jogos e sorrisos e discursos são menores do que a verdade do abismo e bem sabes. Eu sou o cetro do rei do firmamento, você é a  coroa. Não há filosofias ou artes maiores do que nós e bem sabes.”
Derek borbulhou e retomou seu corpo. Mais uma vez, estava nu na noite. Sua amada logo o seguiu, seu vestido delicado pairando sobre a carne macia com duzias de lacinhos vermelhos.
“Adoro quando você fica assim, Sire” Ela sorri e as covinhas de seu rosto trazem um suspiro aos lábios de Derek. “Sabe que não entendo dessas coisas nem metade do que você e que eu juro que já tentei. Você me disse pra esperar o tempo certo, me disse isso já fazem uns quinhentos anos, nunca argumentei. Eu fiz os ritos mesmo quando estávamos longe e eu me ocupei com outras mil coisas. Sei que muito de meu poder vem disso e sei que o senhor me explica tanto quanto pode. Mas as vezes acho que ainda me falta algo fundamental. Eu sinto falta de cada parte humana de mim, e cada vez que jogo esses jogos tolos, me sinto bem. Quando minha templária escova meus cabelos, eu me sinto bem. Quando o senhor me beija e quando navegamos por mares tranquilos, me sinto bem. Não peço que entendas, mas desejo que o senhor não me julgue. Isso pode ser feito, meu Derek?”
“Teu desejo é meu caminho, minha Adele.”
Ele se aproximou lentamente, abrindo os braços suavemente e então envolvendo a criança. Os dois permaneceram abraçados por um longo momento.
“Eu senti sua falta, meu Derek. Você sempre foi tudo de humano que existia em mim. Sempre vai ser. Por mais blasfemo que seja, a noite não é maior do que o afeto que sinto por você. Você me deu amor e ódio, quer admita isso ou não. Entende meu ponto agora? Somos maiores que o ego, somos a feitiçaria profana que nos manteve unidos mesmo depois de tudo.”
Derek se recordou de uma batalha antiga ao lado de uma aliada rancorosa. Em momentos perdidos, ele se sentiu pequeno e frágil. A chama humana queimou-lhe a carne a cada noite que passou longe de sua amada criança.
“O que sou, sou por você, no abismo. Eu não sei mais odiar, minha Adele, mas sei amar. Este é meu propósito na existência, é estar a seu lado. Nossa feitiçaria é uma ferramenta para um fim, e o fim é mais claro agora. Somos um do outro e este é o sentido do ser.”
Ela intensificou o abraço, dedinhos frágeis e brancos uniram-se e tornaram-se rosados pelo esforço. Derek sentia que seu universo inteiro estava a lhe abraçar.
“Será que a velha rosa ainda existe? Eu gostaria de rever a terra dos gregos. Tio Boukhelpos também costumava passear por lá. Talvez devêssemos viajar mais, meu senhor. Tenho tanto a te mostrar.”
Derek ponderou por um instante. Helena há muito havia se escondido. Mas ele sabia onde encontrá-la. O cheiro do sangue era forte naquela terra, mesmo de linhagens tão esquecidas. E quanto a Boukhelpos, sim, seria agradável encontrar o velho guerreiro. Sua ultima conversa havia sido em uma floresta escura da Africa, enquanto caçavam a prole de Montano. Certamente que havia muito o ser aprendido com o filho do tenebroso.
“Teu desejo é nosso caminho, minha querida”
“Vamos parar em meu reino. Preciso lhe apresentar minha templária, é uma criança adorável que passou décadas ouvindo seu nome. Creio que ela tem muito a aprender com o senhor.”
“Será feito. Mas receio que eu precise de um mapa escrito em Latim para planejar a rota. E sem computadores, querida. Eles estão além de minha compreensão.”
“Eu posso cuidar disso, amor meu. Estava me perguntando se você admitiria que odeia computadores.”
O sorriso sarcástico da criança confundiu o Lasombra tremendamente. Ele se sentiu feliz e, por mais de um instante, vivo. Pensou em palavras de poder e desejou uma jornada tranquila. Pensou nos lábios de sua criança e nos beijos que trocariam em lugares perdidos e envelhecidos. Pensou no profeta louco e nas visões que compartilhariam. Pensou em Kella e se certificou de que ela estava morta e enterrada.
“Talvez tenha razão, minha querida. Mas não da maneira que imagina. Eu nunca ofendi um computador. São eles que me odeiam e ofendem. Juro que nunca os provoquei.”
“Existe uma ironia deliciosa nisso, Derek meu. Você já destruiu civilizações por elas terem me ferido, mas é incapaz de vencer um inimigo que não tem braços ou dentes. Entende que precisa mudar?”
“Eu juro que tento” Disse, incomodado, o atônito Derek.
“Daremos um jeito nisso em breve. Será a mais desafiadora das lições que já tive, tenho certeza.”
“Prometa ser paciente, minha cria.”
“Prometo que não matarei nada no treinamento”
Sorrindo, os dois amantes ofuscados deslizaram pela treva, devorando a vida que encontraram no caminho. Adele, feliz por estar sendo, pela primeira vez, a mestra, e Derek, confuso como nunca esteve antes.
Ao longe, um corvo grasnou anunciando a chuva vindoura. O corvo mudou de forma e se segurou desajeitadamente no parapeito. Aisha rastreou o antigo por quase três décadas, e agora finalmente sabia do destino dele.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Demônios na noite fria

- Creio que lhe matei em nosso ultimo encontro.
- Deveras, me mataste, tenebroso. Vim lhe pedir perdão por minha presunção. Eu era jovem e tolo.
Derek levantou o cetro de rei do firmamento, um fálico pedaço de penumbra apodrecida e, de seu trono de meia-noites, ordenou que se fizesse a treva.
O salão era pedra lisa e cinzenta, o coração da noite fria,  palácio do guardião, fora esculpido em sono e pesadelo. Não haviam velas ou meios mecânicos de claridade, só a grande porta de entrada talhada em rocha virgem e as mais malditas palavras da língua morta.
Ele fechou os olhos e se concentrou em uma memória a muito perdida. A criatura a sua frente, em algum momento que a peste engoliu, levantou espada e palavra contra ele. Eram noites pesadoras de um período roto da cristandade, e ele, sacerdote que era, tornou-se furioso pela negação do absoluto poderio do abismo.
- Eu lhe destruí e viestes pedir perdão?
A coisa sorriu, dentes pontudos e pálidos, impecavelmente belos e ferozes. Era um corpo sem gênero ou vestimenta, humano e falho, de costelas salientes e cabelos longos e acobreados. Os olhos eram duas piscinas cálidas e esverdeadas, e os braços, curtos e firmes, terminavam em mãos pontudas cheias de garras.
- De certo isto é inesperado, acredito, mas ainda assim rogo para que esqueças da desfeita que te fiz, tenebroso.
O lasombra levou a mão livre ao queixo e ordenou que o trono crescesse. Era uma coisa vil, líquida e saliente, da qual transbordavam olhos cegos e apêndices membranosos que teimavam incessantemente em fugir do refúgio da noite fria e levar o terror do mundo-espelho  ao mundo-carne.
- Se não tivesses invadido meu manso, eu nunca mais recordaria de suas palavras ou ações, demônio. Nós não vemos o tempo da mesma maneira, você e eu.
- De fato, não. Foram dois séculos no inferno esculpindo minha forma para que pudesse retornar, e o fiz gritando e chorando, pois este é o quinhão dos derrotados. Uma dor ínfima se comparada a cair do céu, entenda, mas ainda assim um processo nada agradável.
- Compreendo.
Uma longa pausa. Derek não compreendia, nem tão pouco se importava. Ele mais uma vez chamou o escuro e pintou o chão e as paredes de nanquim. Ele não gostava da claridade dos olhos do visitante.
- Entenda, lorde rimador, que meu povo há muito busca contato com seus mestres. Há muito que podemos ganhar na batalha que esta por vir. Uma aliança, o mundo morto e o mundo em chamas, e certamente a vitória será nossa.
Derek considerou as implicações por um instante e usou de um comando mental para dar ordens a seus peões. Pensou em sua cria germânica e se assegurou de que estava protegida, pensou em sua aliada Tzimisce e ordenou que ela se fortalecesse em sangue virgem para o inverno vindouro. Pensou em sua senhora para sempre consumida e sussurrou seu nome. Pensou na promessa do abismo.
"Pois nove são os ciclos da alma, nove são as verdades do abismo, e nove são os legados de teu avô."
- O abismo não tem interesse em negociar com os caídos, demônio. Eu falo pelos mortos quando digo que sua guerra mesquinha não nos interessa. Nós somos a treva que antecede a primeira luz, e somos a treva que reinará quando a chama do demiurgo se apagar. Somos o início e o fim, somos o tudo no nada, somos os rimadores que criaram o verbo e os detentores das nove verdades.
O demônio franziu a testa, descrente.
- Meus senhores não tocam o abismo, mas bem podem tocar esse plano. Não os queremos como inimigos, rimador, propomos aliança e o fazemos com a mão direita, propomos lealdade e o fazemos de livre vontade. Não tome nossa gentileza como meia-verdade.
Derek estalou os dedos e a realidade se partiu.
Fragmentos do escuro vidro derretido caíram em cascata sobre o momento, roubando a cor e a força do demônio. Ele caiu e se contorceu, gemendo e se contorcendo mais uma vez, a procura do tato perdido no mergulho vertical nas eternas trevas do mundo não-nascido. Um trovão ecoou na imensidão escura, um pensamento rimado por mil legiões famintas, um sopro da inteligência ancestral dos deuses abortados.
Derek estalou os dedos novamente, e o som foi um chicote na consciência torturada da criatura que lentamente retornava a existir.
- Você vê, demônio? Temos pouca necessidade de aliança com teu reino.
O demônio vomitava um líquido escuro e pegajoso, pedaços de seu invólucro que se descolaram da pele e dos ossos na curta jornada a casa dos perdidos. Seus olhos e ouvidos sangravam e haviam poros escuros brotando de sua têmpora.
- Perdoe-me pela rispidez, mas é tarde e estou cansado. Creio que seus superiores lhe deram um prazo para conseguir sua aliança, providenciarei-lhe um quarto a altura de sua nobreza, e continuaremos esta conversa nos anos que ainda lhe restarem, Adramelech.
O som do nome fez o demônio se perder em meio ao vômito e tentar gritar, gorfando pateticamente em chiados roucos e sujos. Um circulo púrpura brilhou em volta do demônio que sentiu o pouco que lhe restava ser drenado.
- Vocês gritam seus nomes quando descem a minha casa, gritam a plenos pulmões, ainda que os mesmos sejam falsos. Temo que tenha pouco a aprender de ti, mas gostaria de conversar com teu mestre, se for possível. De qualquer modo, durma e descanse, amanhã terá uma longa noite, convidarei uma amiga para se juntar a nós, uma Tzimisce. Não compreende o que isso significa, não é? - Derek sorriu, pela primeira vez em muito tempo - Ela é uma neta de Eldest, uma das tocadas por sua parente, Kupala. Estes nomes você conhece. Durma bem.
O demônio buscou forças inutilmente, a cada tentativa pífia de movimento, o círculo pulsava e a dor se fazia ainda mais presente. Ele chamou o inferno e não obteve resposta, chamou pelas almas que havia acorrentado e elas se provaram incapazes de se manifestar.
Por fim chamou por deus e, mais uma vez, só obteve silêncio.